Parecer do Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médica
Soluções médicas para o fim da vida
Projetos de lei de suicídio assistido e de eutanásia
1- A legislação portuguesa da saúde para o fim da vida
A necessidade e a oportunidade deste Parecer decorre do facto de que está para breve a discussão na Assembleia da República de 4 Projetos de Lei para legalizar em Portugal o “Suicídio Assistido” e a “Eutanásia”, na sequência de uma Petição sobre o mesmo tema.
É importante, na ponderação de uma nova legislação em questão tão sensível e controversa, apurar o seu enquadramento nas leis portuguesas que contemplam o sistema de saúde, os diferentes tipos de cuidados de saúde, os direitos dos utentes e a medicina.
Há na nossa legislação leis que versam diretamente as questões da fase final da vida e cujo conteúdo convém lembrar. A Lei nº 25/ 2012, «Diretivas antecipadas de Vontade» (designadamente sob a forma de Testamento Vital) estabelece no seu Artigo 5º (Limites das diretivas antecipadas de vontade), consignando na alínea b) que são «juridicamente inexistentes, não produzindo qualquer efeito as diretivas antecipadas de vontade cujo cumprimento possa provocar deliberadamente a morte não natural e evitável» tal como consta nos artigos 134º e 135º do Código Penal.
A Lei de Bases dos Cuidados Paliativos (Lei Nº 52/2012) contém também disposições que convém recordar. Na Base III, definem-se os “Cuidados Paliativos” do seguinte modo:
«1- Os cuidados paliativos centram-se na prevenção e alívio do sofrimento físico, psicológico, social e espiritual, na melhoria do bem-estar e no apoio aos doentes e às suas famílias, quando associado a doença grave ou incurável, em fase avançada e progressiva.
2- Os cuidados paliativos devem respeitar a autonomia, a vontade, a individualidade, a dignidade da pessoa e a inviolabilidade da vida humana.»
Sendo esta lei recente e cuja aplicação carece ainda de meios materiais e humanos para sua aplicação adequada e justa, vale a pena citar outras partes do articulado que se prendem com o tema em consideração. Na Base IV estabelece-se que os cuidados paliativos se regem por princípios de que se destaca logo o primeiro:
«a) Afirmação da vida e do valor intrínseco de cada pessoa, considerando a morte como processo natural que não deve ser prolongado através da obstinação terapêutica;»
Na Base V, Direitos dos Doentes, estabelece-se o seguinte, que transcrevemos:
«1- O doente tem direito a:
Receber cuidados paliativos adequados à complexidade da situação e às necessidades da pessoa, incluindo a prevenção e o alívio da dor e de outros sintomas;
e) Participar nas decisões sobre cuidados paliativos que lhe são prestados, nomeadamente para efeitos de determinação de condições, limites ou interrupção dos tratamentos;»
Não deve sofrer controvérsia que muito está por fazer nesta área de cuidados para o fim da vida, no âmbito do Serviço Nacional de Saúde. E ninguém poderá negar que é esta a trave mestra de cuidados para suavizar a morte, tratando sempre que possível, cuidando, aliviando, confortando sempre, com cuidados adequados e proporcionados, com dignidade e bom senso, sem manobras ou tratamentos fúteis ou inúteis, no respeito pela pessoa do doente. Respeito esse que se baseia no reconhecimento do direito a ser informado, direito ao consentimento e recusa de tratamentos, cujos princípios de base constitucional são explicitados na Lei de Bases da Saúde (Lei 48/90) na Base XIV sobre o «Estatuto dos Utentes» e, de novo, na Lei Nº 15/2014 sobre «Direitos e Deveres dos Utentes».
Nesta legislação recente, que como se sabe carece ainda de meios para a sua completa e eficiente implementação equitativa, tanto no plano prático assistencial, como educativo e cultural, não se entrevê nada em que possa caber a solução terminal preconizada nos projetos de lei sobre suicídio assistido e eutanásia. Pelo contrário, os projetos situam-se em claro antagonismo com as leis vigentes, como um corpo estranho, desenquadrado e desnecessário. Não há nenhuma necessidade assistencial que possa justificar as medidas contidas nos projetos de lei, que parecem fundamentar-se num empolamento doutrinário baseado em legislações de uns poucos países.
Num “Guia sobre o processo de decisão relativo a tratamentos médicos em situações de fim de vida” (Conselho da Europa, 2014, edição em português) podem colher-se importantes informações para escolhas e orientações com base ética. Esta transcrição é convite para a leitura integral do guia:
«De facto, as decisões sobre cuidados de saúde são o resultado de um compromisso entre a vontade do doente e a avaliação da situação por um profissional que se deve submeter a deveres profissionais e, em especial, aos que emergem dos princípios de beneficência e não-maleficência, assim como de justiça.» (pág.ª 10)
2- A questão da eutanásia e do suicídio assistido em Portugal
Os proponentes dos projetos de lei de eutanásia e suicídio assistido utilizam uma terminologia que não é explícita, quando designam estes procedimentos como “morte medicamente assistida”, “morte assistida” e “morte antecipada”, que, de facto, são a morte a pedido do doente, executada por injeção letal (eutanásia – ativa voluntária), ou por fornecimento de uma substância mortal para administração oral (suicídio ajudado ou assistido). Estes atos estão proibidos pelo código penal, artigos 134º e 135º, pelo que os proponentes dos projetos de lei também designam as medidas como “despenalização” da “morte assistida”. Todavia, tradicionalmente, morte assistida significa morrer assistido por profissionais de saúde e acompanhado de familiares e/ou pessoas significativas. Deveria ser, de forma clara, o seguinte: despenalização de “homicídio a pedido da vítima” e de “ incitamento e ajuda ao suicídio” em certas circunstâncias a definir por nova lei que altera o código penal, acrescentando alíneas suplementares. Este tipo de homicídios consideram-se “privilegiados”, com atenuante no Código Penal. De notar que não são conhecidos em Portugal processos judiciais por aplicação destes artigos.
A projetada “despenalização” visa legalizar e instituir a eutanásia (ativa voluntária) e a ajuda ao suicídio, ações executadas a pedido do doente, em situação concreta prevista em lei. A adjetivação da palavra “eutanásia” como involuntária, passiva e indireta dá expressão a significados distintos (a expressão “eutanásia involuntária” aplica-se à ação criminosa do Estado nazi na eliminação das vidas «indignas de ser vividas» em pessoas com doenças mentais crónicas e deficiências. A expressão “eutanásia passiva” aplica-se à morte que resulta da omissão deliberada de tratamento. A expressão “eutanásia indireta” designa situações em que a terapêutica para aliviar o sofrimento resulta secundariamente no encurtamento da vida. Toda esta adjectivação, voluntária, involuntária, activa, passiva, indirecta, não deve dissimular, todavia, o facto de base de se tratar de eutanásia).
O mesmo étimo grego (thánatos = morte) combina-se com prefixos nas palavras ortotanásia e distanásia. Ortotanásia é o termo que designa as medidas de tratamento e cuidados que se enquadram dentro da legis artis para o fim da vida, no respeito do doente, suavizando o sofrimento, com aceitação do processo de morrer, no respeito da autonomia e da dignidade da pessoa. Distanásia é o termo que define um procedimento de obstinação terapêutica, de encarniçamento, inadequado e desproporcionado, prejudicando a qualidade de vida física e psíquica da pessoa na fase final da existência. Muitas pessoas, mal informadas, julgam que a eutanásia (ativa voluntária) seria a solução para pôr termo à distanásia.
Na prática de apoio ao doente terminal, com doença irreversível, tendo em atenção a vontade do próprio, a informação da família (ou de próximos) e a consulta da equipa assistencial, pode colocar-se a opção de não promover ou suspender certos tratamentos para assegurar a ortotanásia, evitando a distanásia, e pode ser decidido o uso de fármacos para alívio da dor e do sofrimento insuportável, que possam ter como efeito “secundário” indireto abreviar a vida. São decisões médicas, embora partilhadas, muitas vezes de extrema dificuldade. O objetivo não é uma antecipação “piedosa” da morte, mas permitir a fase terminal da vida com a qualidade possível, procurando tratar a dor e aliviar o sofrimento sem terapêuticas fúteis ou inúteis.
Os argumentos invocados pelos proponentes dos projetos de lei brevemente em discussão na Assembleia da República baseiam-se no princípio da autonomia da pessoa na escolha da morte, como garantia para uma “morte com dignidade”, considerando uma situação de “sofrimento insuportável” por doença incurável ou lesão definitiva. Os proponentes têm a presunção de que os projetos não colidem com o preceituado nos artigos 24º (O direito à vida é inviolável) e 25ª (O direito à integridade Física e Moral da pessoa é inviolável) da Constituição da República Portuguesa. A prova dessa presunção é formulada declarativamente mas não demonstrada. Por sua vez o “direito à dignidade”, princípio tanto enunciado, tem suficiente vagueza na sua definição operativa para poder servir a causa própria e outra. A dignidade é algo intrínseco ao ser humano que pode ser ameaçada, não respeitada, mas que nunca se perde. Por outro lado, ao ser necessária a intervenção de um médico para aceitar o pedido de matar ou proporcionar ao doente os meios para tal (consoante se trate de eutanásia ou de suicídio assistido), o problema da autonomia é transposto para o médico, que acolhe o pedido e decide, ou não, executá-lo.
Em relação ao papel da medicina e dos médicos na execução das ações para consumar a morte solicitada pelo doente, presume-se naqueles diplomas que se podem “considerar” “atos médicos” ou “procedimentos clínicos”, as diretrizes averbadas nos projetos de lei da chamada “morte assistida” ou “antecipada”.
Estes projetos de morte a pedido inserem-se dentro da questão mais geral dos cuidados para o fim da vida e respectivos procedimentos médicos, envolvendo soluções distintas em diferentes países. Presentemente, apenas três países europeus legalizaram a eutanásia e o suicídio assistido (Holanda, Bélgica e Luxemburgo) e um despenalizou o suicídio assistido (Suíça).
Por outro lado não se encontra nos códigos, convenções, declarações ou legislação internacional sobre direitos humanos e medicina, nenhuma menção legal para permitir procedimentos que são a substância dos projetos de lei agora propostas na Assembleia da República.
A aprovação de uma lei, nos termos que se perspetiva e com uma prioridade questionável, visando embora procurar soluções para problemas relevantes do fim da vida, fá-lo com soluções eticamente incorretas, sem a devida ponderação do valor da vida em pessoas muito vulneráveis. Atente-se na condição de idosos muito doentes que poderiam ser levados a requerer pôr termo à vida, de modo a deixarem de ser um “peso” para a família e para a sociedade.
3- A eutanásia e o suicídio assistido não são práticas de assistência médica e situam-se fora dos princípios da medicina
No preâmbulo do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, que é o anexo do Regulamento da Deontologia Médica (Regulamento nº 707/2016, Diário da República, 2ª série – N.º 139 – 21 de Julho de 2016), consta o seguinte:
«O Código Deontológico da Ordem dos Médicos é um conjunto de normas de comportamento que serve de orientação nos diferentes aspetos das relações humanas que se estabelecem no decurso do exercício profissional da medicina.
As condutas que o Código estabelece são condicionadas pela informação científica disponível, pelas recomendações da Ordem que, por seu lado, estão balizadas pelos princípios éticos fundamentais que constituem os pilares da profissão médica.
Um Código Deontológico, para plasmar em cada realidade temporal os valores da Ética Médica que lhe dá origem, é algo em permanente evolução, atualização e adaptação. Por outro lado, inscrevendo-se o Código Deontológico no acervo jurídico da sociedade, e retirando a sua força vinculativa da autorregulação outorgada à Ordem dos Médicos, integra-se no quadro legislativo geral.
Nas normas do presente Código foram consagradas as regras deontológicas fundamentais, atualizando-se aspetos relacionados com os conhecimentos atuais da ciência médica e procurando-se encontrar as soluções bioéticas mais consentâneas com o estado da arte.» (os sublinhados a bold não são do original).
A menção por extenso do preâmbulo é conveniente para dar a devida ênfase ao significado e importância que reveste o Código, no plano ético e deontológico, e a sua adequação temporal por recente atualização. No Capítulo III do Código, «O médico ao serviço do doente», incluem-se os artigos que de forma clara, organizada e explícita definem os direitos do doente, do artigo 19º ao artigo 26º: esclarecimento do médico ao doente, consentimento, recusa de exames e tratamentos, informação de diagnóstico e prognóstico, respeito pelas crenças e interesses. Este articulado contempla diferentes situações e consagra o princípio da autonomia da pessoa do doente como uma das bases da aliança terapêutica com o médico, muito diferente da antiga relação paternalista.
No Título II, Capítulo II, Fim da Vida, está estabelecido no artigo 65º (O fim da vida): «1- O médico deve respeitar a dignidade do doente no momento do fim da vida. 2- Ao médico é vedada a ajuda ao suicídio, a eutanásia e a distanásia.» (sublinhado a bold não está no original)
No artigo 66º, definem-se os cuidados paliativos:
«1- Nas situações de doenças avançadas e progressivas cujos tratamentos não permitem reverter a sua evolução natural, o médico deve dirigir a sua ação para o bem-estar dos doentes, evitando a futilidade terapêutica, designadamente a utilização de meios de diagnóstico e terapêutica que podem, por si próprios, induzir mais sofrimento, sem que daí advenha qualquer benefício.
Os cuidados paliativos, com o objetivo de minimizar o sofrimento e melhorar, tanto quanto possível, a qualidade de vida dos doentes, constituem o padrão do tratamento nas situações a que o número anterior se refere.» (sublinhado a bold não está no original)
Ainda é do maior interesse referir o artigo 67º, Morte, não no seu todo mas em duas alíneas de interesse particular para a questão em causa:
«3- O uso de meios extraordinários de manutenção de vida deve ser interrompido nos casos irrecuperáveis de prognóstico seguramente fatal e próximo, quando da continuação de tais terapêuticas não resulte benefício para o doente.
4 – O uso de meios extraordinários de manutenção da vida não deve ser iniciado ou continuado contra a vontade do doente.»
Por aqui se pode avaliar o cuidado com que se definem estes procedimentos no Código, no respeito da autonomia do doente, da sua dignidade e na própria orientação da medicina para a aceitação dos seus limites.
Se nos cingirmos ao que está disposto no Código Deontológico, a Eutanásia e o Suicídio Assistido estão claramente fora da medicina portuguesa, não são nem podem ser atos médicos. Mas sempre se poderia argumentar que o Código pode ser alterado e que uma lei votada na Assembleia da República se sobrepõe às disposições da deontologia médica consagrada no cânone. Assim poderia ser, se se sobrepusesse sempre o legal ao ético e ao moral, podendo-se afirmar que é um procedimento que lesa os princípios de uma classe profissional da máxima importância para a saúde e bem-estar da população, pois é o veículo determinante da ciência médica, na teoria e na prática, em todas as fases da vida, até ao fim.
Lembramos ainda a Proposta de Lei 34/XIII sobre “atos de saúde”, admitida na Assembleia da República em 18 de Outubro de 2016 e discutida no dia seguinte. Embora não aprovada ainda, pode-se desde já dar conta do conteúdo proposto para “ato médico”:
«Definição de Ato Médico:
1- O ato médico consiste na atividade de avaliação diagnóstica, prognóstica, de prescrição e execução de medidas terapêuticas farmacológicas e de técnicas médicas, cirúrgicas e de reabilitação relativas à saúde e às doenças das pessoas, grupos ou comunidades, no respeito pelos valores éticos e deontológicos da profissão médica.
2- Constituem ainda atos médicos, as atividades técnico-científicas de ensino, formação, educação e organização para a promoção da saúde e prevenção da doença, quando praticadas por médicos.»
Se não bastasse o enunciado destas leis para arredar e suster o ímpeto de uma duvidosa iniciativa legitimadora da eutanásia e do suicídio assistido, ainda haveria que considerar o próprio Código Penal. No Capítulo I (Parte Especial, Titulo I), Crimes contra a vida, a despenalização da eutanásia e do suicídio assistido seria concretizada pelo aditamento de uma 3ª alínea de exceção aos artigos 134-º (homicídio a pedido da vítima) e ao artigo 135º (Incitamento ou ajuda ao suicídio); mas será de interrogar como fazer uma alínea de exceção ao artigo 139º, Propaganda ao suicídio, cujo conteúdo é o seguinte:
«Quem, por qualquer modo, fizer propaganda ou publicidade de produto, objeto ou método preconizado como meio para produzir a morte, de forma adequada a provocar suicídio, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.» (sublinhado a bold não está no original)
Que forma mais óbvia poderá cometer o Estado para infringir este artigo do que a legitimação do conteúdo dos projetos de morte a pedido, no fundo práticas de suicídio institucionalizado para quem não é capaz por si de o cometer? Sabendo como os efeitos de sugestão social ditam os comportamentos humanos como se poderá tabicar num comportamento estanque a prática tão notória da morte executada por lei? Por conseguinte, em termos de saúde mental, este tipo de medidas é de clara nocividade cujo alcance não se pode prever. A virem a existir leis deste teor seriam sempre, por si próprias, um fator de incitamento ao suicídio não apenas dos “candidatos” elegíveis, mas também de outros, sem limite.
E como é possível absolver no Código Penal a eutanásia e o suicídio assistido de “Crime contra a integridade física”, sob a salvaguarda de “intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos” (artigo 150.º), que ponham em causa a integridade física da pessoa, “se forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal ou perturbação mental”? Neste artigo estão consignados os termos em que se pode definir o que é ato médico, nunca o ato de matar intencionalmente o doente.
Seria então a execução dos dois formatos de morte a pedido tão imperiosa que pudesses subverter códigos e leis, travestindo-se de ato médico pelo exercício de oficiantes voluntários?
De facto, a eutanásia poderia configurar-se apenas como um ato jurídico sui generis, servido por uma espécie de perícia médico-legal. O procedimento destina-se a verificar se o candidato preenche quesitos para poder ser executado ou ajudado a matar-se. É, na sua essência, um procedimento para habilitação civil sobre a capacidade de decidir e beneficiar da concretização de um direito que lhe seria facultado por lei: a morte súbita realizada por terceiros. Mas nada disto está explícito nos projetos de lei, que pretendem situar-se nas nossas legislação de forma atípica e inconsistente, beneficiando do aval da medicina por imposição. A Comissão multidisciplinar prévia ao veredito ou póstuma faz parte deste hibridismo incongruente.
No seminário de encerramento dos debates promovidos pelo Conselho de Ética para as Ciências da Vida, realizado em Lisboa, a 5 de Dezembro de 2017, ressalta esta síntese produzida por Adela Cortina, catedrática de ética e filosofia política da Universidade de Valência:
No caso das questões sobre o final da vida trata-se de debater sobre como respeitar a autonomia das pessoas, mas sabendo que essa autonomia se exerce em diálogo com familiares e profissionais, porque a autonomia humana é dialógica. É preciso criar as condições para que o diálogo seja possível. E nestes pontos há um grande acordo entre distintos grupos da sociedade civil. Vontades antecipadas, planificação de decisões com a equipa médica, cuidados paliativos integrais, recusa da obstinação terapêutica, sedação paliativa, acompanhamento familiar, recinto de intimidade, são pontos aceites por todos os grupos sociais.
4 – O papel da Ordem dos Médicos nesta problemática
A Ordem dos Médicos tem um papel fundamental em toda esta problemática do final da vida, em vários níveis de atuação:
Defender os conceitos éticos e deontológicos básicos da profissão e a legis artis
Informar, clarificar termos e ideias, desmistificar opiniões falsas e preconceitos
Tornar acessível a bibliografia e a informação sobre ética e questões legais desta temática
Promover a discussão sobre questões do fim de vida
Liderar a discussão pública de temas relacionados com o fim de vida, evitando uma abordagem restritiva da eutanásia, sem fugir à sua discussão livre e aberta
Estimular a qualificação dos médicos e outros profissionais de saúde nas questões relacionadas com o fim de vida., designadamente no ensino pré e pós-graduado
Assumir uma atitude de tolerância em relação á diversidade de opiniões, sejam elas religiosas, espirituais, políticas ou outras
Lutar pela acessibilidade equitativa das pessoas que necessitam de cuidados paliativos e pugnar pela sua qualidade.
Para concluir, o CNEDM considera que, com base nos argumentos expostos e nas invocações feitas, a Eutanásia e o Suicídio assistido NÃO poderão ter lugar na prática médica segundo a legis artis e a ética e deontologia médicas.
Nas questões suscitadas pelo final de vida, o princípio da autonomia levado ao extremo, pode conflituar com outros princípios éticos da Medicina, inviolabilidade da vida humana, beneficência, não maleficência e justiça.
Por um lado há que ter em conta, entre outros, o direito à vida e à sua protecção, o direito à autonomia e à liberdade de escolha, o direito à preservação da dignidade da pessoa humana e o respeito pela sua memória. Por outro, há que promover a dignidade da vida até ao final, desenvolvendo cuidados para suavizar a morte, tratando sempre que possível, cuidando, aliviando, confortando sempre, com decisões médicas e cuidados adequados e proporcionados, com bom senso, sem manobras ou tratamentos fúteis ou inúteis, no respeito pela pessoa do doente que se baseia no reconhecimento do direito a ser informado, direito ao consentimento e recusa de tratamentos.
Lisboa 30 de Abril de 2018
O Presidente do Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médicas (CNEDM) da Ordem dos Médicos
Manuel Mendes Silva
Relator José Manuel Jara com a colaboração de todos os outros membros do CNEDM
Anexos ao parecer original:
Legislação Internacional sobre o tema
Convenção Europeia dos direitos do Homem, em 4 de Novembro de 1950
Artigo 2º – “ O direito de todas as pessoas à vida está protegido pela lei”
(Na Constituição da República Portuguesa é referido este direito expressamente no artigo 16º – alínea 2 – «Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem.»)
Resolução do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, em 29/04/2002 (unanimidade)
“ Não será possível criar um direito à autodeterminação que conferisse a qualquer pessoa o direito a escolher a morte em vez de viver”.
Recomendação número 1418 (1999) da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa
A vocação do Conselho da Europa é proteger a dignidade de todos os seres humanos e os direitos que daí decorrem.
(…)
Os direitos fundamentais que derivam da dignidade da pessoa em estado terminal são ameaçados por vários fatores:
– Prolongamento artificial do processo de morrer e por uso desproporcionado de medidas médicas ou por dar continuidade ao tratamento sem o consentimento do doente.
9-C- Apoiando a proibição contra tirar a vida de um doente terminal ou de uma pessoa a morrer
Reconhecer que o direito à vida especialmente em relação ao doente terminal ou a morrer é garantida pelos estados membros de acordo com o artigo 2) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos que estabelece que ninguém deverá ser privado da sua vida intencionalmente.
Reconhecendo que o desejo de morrer de um doente terminal ou de uma pessoa que está a morrer não constitui nunca fundamento para legalizar a morte às mãos de outra pessoa.
Reconhecendo que o desejo de morrer de um doente terminal ou de uma pessoa a morrer não pode por si constituir fundamento para uma justificação legal para exercer ações com a intenção de conduzir à morte
A Resolução nº 1859/2012, aprovada na Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa (PACE) em 25 de Janeiro de 2012 estabelece que a eutanásia deve ser sempre proibida
Associação Médica Mundial
Na 53ª Assembleia Geral, de Outubro de 2012, com pequenas revisões na sessão do Conselho, em Abril de 2013, confirma a declaração sobre eutanásia adotada na Assembleia de Outubro de 1987 (Madrid), reafirmada em França (Maio de 2005, na 170ª. Sessão do Conselho da WMA.
“ A eutanásia, isto é o ato deliberado de pôr fim à vida de um doente, mesmo a pedido do doente ou de familiares próximos não é ética. Tal facto não é impeditivo de que o médico possa respeitar a vontade do doente de permitir que o processo natural da morte siga o seu curso na fase terminal da doença.”
A Declaração sobre o ‘Suicídio medicamente assistido’ da World Medical Association (44ª Assembleia, setembro de 1992, revista em Paris, em 2005)
Estabelece o seguinte: “O suicídio assistido medicamente, tal como a eutanásia não é ético e deve ser condenado pela profissão médica. Sempre que a assistência do médico se oriente intencionalmente e deliberadamente para permitir que um indivíduo ponha termo à sua vida o médico atua de modo não ético. Contudo, o direito de um doente a recusar um tratamento é um direito básico e o médico não age de modo não ético se respeitar essa vontade mesmo que daí possa decorrer a sua morte. A Associação Médica Mundial (WMA) reafirma a sua firme convicção de que a eutanásia conflitua com princípios éticos básicos da prática médica.
Em Outubro de 2016, em Chicago (EUA) é aprovada uma versão atualizada da Declaração de Genebra da WMA em que é acrescentado no redação do Compromisso da Médico, “Respeitarei a autonomia e a dignidade do meu doente”. Contrariamente a algumas informações a redação do princípio do respeito pela vida humana não sofreu alterações de conteúdo, exprimindo-se na versão portuguesa por “máximo respeito pela vida humana”, tradução da versão inglesa “utmost respect” (de versões anteriores em inglês).
Declaração de Madrid sobre padrões de ética na prática psiquiátrica (Assembleia Geral de 25/08 /1996, confirmada em Hamburgo, 8/08/1999; Yokohama, 26/08/2002; Egito, 12/09/2005; Buenos Aires, 21/09/2011)
O primeiro dever do médico é a promoção da saúde, a redução do sofrimento e a proteção da vida. O psiquiatra, entre cujos doentes estão alguns gravemente incapacitados e impossibilitados de assumir uma decisão informada, deve ter extremo cuidado em evitar quaisquer actos que possa levar à morte dos que não se conseguem proteger a si próprios devido à deficiência/ défice. O psiquiatra deve estar muito consciente de que as opiniões de um doente podem ser distorcidas por doenças mentais como a depressão. Em tais situações o papel do médico é tratar a doença.
Parecer em PDF – Informação_CNEDM16 Eutanásia_CNEDM
Declaração de Voto em PDF – Declaração de voto – Joaquim da Silva Viana CNEDM16