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Utentes “sem médico de família” os mesmos direitos, a mesma realidade?

Autora: Sara Guimarães Fernandes, médica interna no 4º ano de Formação Especifica em Medicina Geral e Familiar na USF Nova Via (ACES Grande Porto VIII – Espinho/Gaia)

 

Segundo o último relatório da Primavera de 2019, do Observatório Português dos Sistemas de Saúde1, em abril de 2019 existiam 710 377 utentes sem médico de família. As suas necessidades de saúde e os seus direitos enquanto cidadãos são os mesmos dos utentes que se encontram inscritos nas nossas unidades de saúde. De facto, segundo a ideologia do Serviço Nacional de Saúde, o acesso aos cuidados deve ser equitativo.

Encontro-me a trabalhar em Vila Nova de Gaia, que apesar de ser uma área abonada na oferta de cuidados de saúde primários, vê a maior parte das suas unidades com números de utentes superiores aos desejáveis.

Na unidade onde trabalho, o atendimento dos utentes sem médico de família realiza-se mediante inscrições esporádicas, segundo uma escala estipulada em parceria com outra unidade de saúde familiar local. Estes utentes não têm a possibilidade de agendamento de consulta, o que faz com que recorram à consulta de intersubstituição, que tem a duração expectável de 15 minutos, muitas vezes com motivos que seriam melhor avaliados em consulta programada. Isto traduz-se num atendimento desigual, não só pelo tempo disponível para a consulta, como na oferta disponibilizada dos cuidados de saúde. Muitas vezes são utentes pertencentes a grupos vulneráveis (grávidas, crianças e utentes em idade fértil) e de risco (hipertensos e diabéticos) que necessitam de consulta de enfermagem e médica com regularidade, que não conseguimos garantir. Por outro lado, quando o motivo de consulta é de facto uma doença aguda, muitas vezes somos confrontados com doenças crónicas agudizadas, que precisariam de reavaliação posterior, a qual não conseguimos agendar, pelo menos de uma forma oficial. Pedidos de atestado médico para renovação de carta de condução, de exames complementares de diagnóstico ou da sua interpretação e de renovação de medicação crónica, muitas vezes sem um histórico prévio de prescrição são também frequentes. Para isto é necessária uma visão mais global do doente, dos seus problemas de saúde e da sua orientação, o que é difícil de realizar não só pelo tempo de consulta disponível, como pela informação médica registada destes utentes.

Por outro lado, com esta forma de atendimento diminuímos a acessibilidade à consulta de urgência aos doentes inscritos na unidade de saúde, acessibilidade já difícil de garantir devido ao número elevado de utentes por lista de médico de família.

A incapacidade na resposta às necessidades destes utentes gera ansiedade e frustração no utente e médico, muitas vezes o primeiro canalizando-as, erradamente, para o profissional de saúde que o está a atender. Já tive de pedir a um utente para voltar com as caixas de toda a sua medicação para perceber o que estava realmente a tomar. Encontrava-se a fazer três inibidores de conversão da angiotensina diferentes.

Estas assimetrias no acesso aos cuidados de saúde acentuaram-se face à situação que estamos a viver atualmente. Questiono-me sobre o tipo de atendimento que estamos a garantir a estes utentes. O que estamos a realizar não é uma prestação de cuidados de saúde arcaica, com maior probabilidade de erro, comparativamente aos cuidados prestados aos utentes inscritos nas nossas unidades? Não existem cidadãos de primeira nem de segunda… Não deveriam ser discriminados apenas por não terem tido a “sorte” de conseguirem uma vaga na unidade de saúde mais próxima.

É importante olharmos para isto com maior seriedade. Não podemos continuar a ignorar uma desigualdade tão veemente no nosso Serviço Nacional de Saúde. A nossa função enquanto médicos de família é garantir cuidados centrados na pessoa, com uma visão holística da mesma. São necessárias mais unidades e mais profissionais de saúde, de forma a conseguirmos garantir este tipo de cuidados a todos os utentes do Serviço Nacional de Saúde.

 

Bibliografia

  1. Saúde um Direito Humano – Relatório de Primavera 2019, Observatório Português dos Sistemas de Saúde