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Uma reflexão fora da caixa para tempos modernos

Autor: Gonçalo Melo, Médico especialista em Medicina Geral e Familiar com a Competência em Gestão de Unidades de Saúde

 

O SNS encontra-se perto de um beco sem saída com a redução brutal do número de Médicos de Família1.

As causas redundam num denominador comum: a insatisfação dos profissionais com as suas condições de trabalho, quer em termos de volume e carga exigida, quer em termos de tipologia de atividades impostas, quer ainda, em termos de progressão na carreira, quer finalmente, no reconhecimento do seu papel primordial na manutenção da saúde dos indivíduos a seu cargo, tanto pela Administração, como pela população2.

Por outro lado, embora os fundamentos da Medicina Geral e Familiar se mantenham atuais, o padrão de procura de cuidados parece seguir uma dinâmica bem distinta da existente há uns meros 20 anos.

O desenvolvimento tecnológico entretanto ocorrido permitiu uma acessibilidade quase instantânea e em qualquer lugar a inúmeras fontes de informação. Em contrapartida, e em paralelo, também se verifica a incapacidade de avaliar a qualidade da informação obtida com as ferramentas tecnológicas de informação e comunicação disponibilizadas.

O ritmo acelerado das sociedades atuais globalizadas e acentuadamente mercantilistas, fomenta a adoção de uma conduta individualista baseada na satisfação de quaisquer necessidades e de forma imediata, não escapando, naturalmente, as necessidades sentidas em saúde. Acresce a isto, a dificuldade na conciliação das várias atividades do quotidiano que são impostas, dificultando assim os naturais processos de ajustamento e ocasionando baixa tolerância à frustração e dificuldades na gestão emocional de quem procura a prestação de cuidados.

Os padrões e dinâmicas familiares, à semelhança das várias vertentes societárias, também se liberalizaram3, impondo uma adaptação do papel do Médico de Família, com novos desafios.

O que parece evidente manter-se, e até agravar-se, é a previsibilidade da lei dos cuidados inversos que estipula que a maior oferta de cuidados ocasiona uma maior procura, uma exceção bem particular e já conhecida, de uma das principais leis da economia de mercado4, em que a sociedade atual se encontra inserida.

Todo o conjunto de condicionantes referidas aumentam a procura enquanto a oferta diminui, exaurindo os médicos de família, que por isso saem do SNS, num ciclo repetitivo e ininterrupto, obrigando a uma reflexão acerca da definição do papel dos Médicos de Família e da tipologia de atividades a exercer.

O “core business” do Médico de Família5 é o seguimento de uma lista de utentes, estruturada por agregação familiar, com o objetivo de promover a manutenção do estado de saúde e a prevenção da doença, baseada numa dinâmica relacional empática de conhecimento mútuo, respeito e confiança bilaterais, construídas ao longo de anos.

O “core business” do Médico de Família, não é o atendimento em contexto de doença aguda ou o atendimento esporádico de utentes que não conhece, com os quais não estabeleceu qualquer relação terapêutica, nem com os quais conseguirá estabelecer um plano de seguimento.

O seguimento de uma lista de utentes é uma atividade programada, logo, com uma possibilidade de flexibilidade de gestão muito alargada, o que permitiria, por exemplo, a adoção de regime de trabalho de 4 dias, com sucesso comprovado na redução da taxa de exaustão dos profissionais6.

As facilidades permitidas pelas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) possibilitariam a adoção de um dia por semana em regime de teletrabalho, com acesso à RIS, para, por exemplo, programação de atividades assistenciais não presenciais ou domiciliárias, atividades não assistenciais (do Conselho Técnico, da Coordenação de Unidades Funcionais ou de Projetos de Intervenção na Comunidade, de formação e investigação, de gestão de lista, de estudos de caso, de preparação de reuniões de serviço, de monitorização de desempenho individual e da equipa, de avaliação do sistema de gestão da qualidade da Unidade Funcional, de apoio ao Conselho Clínico e de Saúde do ACeS respetivo, entre outros possíveis), mitigando as dificuldades de gestão da agenda pessoal dos Médicos de Família, sem contudo comprometer o cumprimento das suas obrigações profissionais ou do Plano de Ação da Unidade Funcional, diminuindo inclusive o consumo de recursos que seria necessário em caso de atividade presencial.

O horário de funcionamento das Unidades Funcionais poder-se-ia manter até ao máximo das 8h às 20h nos dias úteis para atendimento dos utentes inscritos na respetiva Unidade Funcional, com equipa de saúde familiar atribuída, em regime de intersubstituição, e cada ACeS deveria disponibilizar pelo menos um local de atendimento, também no máximo das 8h às 20h, nos fins-de-semana e feriados, para todo e qualquer utente inscrito no respetivo ACeS com necessidade de avaliação por doença aguda, com recurso a trabalho extraordinário voluntário ou a contratos de trabalho com profissionais externos. Entre as 20h e as 8h, os utentes com suspeita de necessidade de avaliação clínica teriam a disponibilidade de orientação pela linha SNS24 ou dirigirem-se diretamente aos serviços de urgência hospitalares, sendo também possível a orientação clínica por consulta à distância em moldes a configurar, com minimização de recursos necessários para o efeito.

Aproveitando a configuração das Unidades Locais de Saúde, a atividade clínica mais indiferenciada de atendimento à doença aguda de baixa gravidade, sem necessidade de avaliação hospitalar, poderia ser assumida pelos médicos internos da Formação Geral, com a devida tutoria, pelos médicos da Formação Específica em Medicina Geral e Familiar, e por médicos sem especialização, nomeadamente, pelos vulgos tarefeiros, cuja atividade, pelo grau de diferenciação obtida, independentemente da experiência detida, se adequa mais a cuidados de ambulatório que a cuidados hospitalares, podendo ser estes “cedidos” pela ULS aos CSP e não o contrário – requisitar Médicos de Família para fazerem trabalho em contexto de serviço de urgência hospitalar, quando os CSP estão já completamente depauperados.

Sendo a Medicina Geral e Familiar, a disciplina médica que avalia o indivíduo de forma holística, teria sido também já tempo de repensar o processo de elaboração dos horários de trabalho dos Médicos de Família assim como a fragmentação das suas agendas de trabalho.

A codificação das consultas nas agendas médicas deveria obedecer apenas a 3 tipos de tipologia: consulta programada, consulta não programada e consulta domiciliária. As restantes tipologias de consulta atualmente em vigor, consoante o Programa de Vigilância de grupo de risco ou vulnerável em que se inserem, seriam facilmente avaliáveis, para efeitos estatísticos, pela codificação feita pelo Médico de Família aquando do registo clínico. Mais ainda, a tipologia da consulta seria feita na hora, consoante a disponibilidade e desejo do utente, de acordo com o horário de trabalho do Médico de Família, e não, como até agora, nas vagas horárias disponibilizadas para aquela tipologia específica de consulta. Isto sim, permitiria e muito, aumentar a acessibilidade e a satisfação dos utentes. A compartimentação das agendas e das consultas dos Médicos de Família é completamente antagónica ao que é a essência da disciplina da Medicina Geral e Familiar.

Finalmente, a utilização de sistemas de inteligência artificial poderia permitir tornar mais efetivos os cuidados prestados. A inclusão de um algoritmo nos sistemas de informação clínica que, por um lado, alertasse o Médico de Família para a necessidade de reavaliação em face do risco associado à situação clínica conhecida ou em caso de inexistência de registos por tempo superior ao preconizado pelos Programas de Vigilância em vigor; e que por outro lado, alertasse o administrativo no caso de pedido de consultas programadas fora dos “timings” preconizados, tornando assim mais eficiente a disponibilidade da agenda médica.

Este sistema seria complementado pela inclusão de um algoritmo disponibilizado na app SNS24 e no Portal do Utente que, ligado em rede e através da adoção de um processo clínico eletrónico único, alertasse o utente para a necessidade de uma reavaliação face à sua situação clínica, assim como disponibilizasse, com atualizações periódicas, as necessidades em saúde previsíveis a médio prazo (cinco anos), com possibilidade de agendamento automático de consulta médica. Esta possibilidade de avaliação a médio prazo, não só permitiria aumentar a literacia em saúde da população, como tornaria as atividades dos Médicos de Família mais centradas em Valor em Saúde, com obtenção de ganhos em saúde para as comunidades, com otimização de recursos e diminuição de custos.

O conjunto de medidas propostas permitiria inovar os Cuidados de Saúde Primários e tornar mais eficientes e efetivos os cuidados prestados à população, permitindo ainda aumentar a atratividade dos jovens médicos internos para a escolha de ingresso na carreira especial médica na área de especialização da Medicina Geral e Familiar.

 

Referências bibliográficas

  1. https://www.cfp.pt/uploads/publicacoes_ficheiros/cfp-rel-07-2023.pdf
  2. https://apah.pt/wp-content/uploads/2023/04/Barometro-da-Cultura-Organizacional-associada-a-Prestacao-de-Cuidados.pdf
  3. https://www.ffms.pt/sites/default/files/2022-07/Fam%C3%ADlias-em-mudan%C3%A7a.pdf
  4. Brito Sá, A. Preconceitos, desinformação e a lei dos cuidados inversos. Rev Port Clin Geral 2002;18:199-200.
  5. http://bdjur.almedina.net/citem.php?field=item_id&value=2206212
  6. https://4dayweek.io/country/iceland
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