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Um artigo sobre política portuguesa num espaço de opinião para médicos

Autor: M.M. Camilo Sequeira, Médico aposentado

Portugal acaba de viver um dos momentos capitais da vida democrática, um acto eleitoral, que em Janeiro de 2021 nos permitiu eleger o primeiro magistrado do país.

Tivemos oportunidade de escolher entre a continuidade de um Presidente em exercício e várias alternativas ideológicas que deveriam ser inequívocas demonstrações do crescimento democrático dos eleitores. Infelizmente julgo que o resultado final não o confirma.

Porque o segundo candidato mais votado nesta eleição, pessoa com um percurso pessoal público de persistência na defesa da democracia plural através de intervenções onde chama a atenção para os erros e fraquezas desta e para a necessidade de se corrigirem como protecção da mesma, teve menos votos que a soma de outros dois concorrentes que utilizam esses mesmos erros e fraquezas como suporte de projectos políticos contrários aos valores democráticos. (12,97% e 15,12% pela soma 11,9% e 3,22%).

Que significará isto? Que apenas 13% do eleitorado acredita na democracia crítica havendo já mais de 15% que consideram a democracia um regime ultrapassado que deve ser destruído?

Aparentemente sim. Mas alguém que nasceu após a segunda guerra mundial e cresceu num regime ditatorial não pode fazer esta interpretação. É necessário ler os resultados eleitorais de outra forma e tentar compreender porque é que a aceitação de princípios anti-democráticos mobiliza tantos portugueses (e “outros” nacionais de “outras” democracias que parecem estar em falência).

Será que os resultados deste acto eleitoral mostram a falência democrática em Portugal?

Nesta eleição dois dos concorrentes representaram partidos ideologicamente comprometidos com a crítica ao poder em abstracto. Fizeram campanha a defender valores que, embora com relevância social no tempo de hoje, são por muitos considerados como desadequados ao crescimento que consideram ter como pai o capitalismo. Representam 8,27% do eleitorado. É um valor baixo mas que confirma haver quem, sem os identificar como órgãos de poder, os percebe como sendo, nas democracias que designam como burguesas, relevante opinião crítica. Opinião que se acredita ser impeditiva de um potencial esquecimento do estado social por parte dos seus parceiros parlamentares a quem couber a responsabilidade de governar. Acho que cumpriram a sua obrigação: disseram-nos que podemos continuar a contar com eles para este propósito.

Também o candidato que se apresentou como representante do povo cumpriu o papel que eu julgo ser aquele a que se propôs: dizer ao país que os portugueses que nunca são ouvidos por serem pobres, iletrados, indiferenciados, laboral e socialmente, existem ao lado dos outros e querem ser parte da solução que os ajude a deixar de o ser. Sem se envergonharem do que são, porque são o que conseguem ser, não querem ser párias da pátria que, de facto, os exclui. Teve apenas 122743 votos mas não nos iludamos porque “o povo” que ele quer representar são muitíssimos mais.

Quanto aos 2 candidatos mais votados têm em comum o quererem representar o povo, como o seu opositor que se apresentou como “delegado” desse povo, querem ser bases do poder democrático influenciando o poder da governação, de certa maneira como os seus opositores ideologicamente comprometidos com a crítica ao poder e queriam ter uma identidade ideológica que os separasse. O que lhes é impossível pois ambos se situam no abrangente espaço político da social-democracia que defendem usando palavras diferentes.

Será então correcto afirmar-se que 73,67% do eleitorado português é social democrata? Era “bonito” e bom para o futuro, mas não o creio. Lamentavelmente ainda se vota nos partidos como se escolhe o clube do coração: e é-se do Benfica, do Sporting, de outro clube qualquer… porque sim. Em política serão muitos ainda os votantes no PS, no PSD ou no CDS, por exemplo, que o são… porque sim.

Os projectos programáticos destes grupos raramente são apreciados pelos seus adeptos e nem sei se os que se pretendem cristãos democratas conhecerão a doutrina social da igreja cristã católica romana que as encíclicas “Rerum Novarum” e “Quadragesimo Anno” precisaram e confirmaram. E que fizeram da social democracia, um ideário criado trinta anos antes, um programa político defensável pelos fiéis desta confissão.

Nove anos depois da publicação da primeira destas encíclicas, a social democracia como expressão de poder governativo teve a sua fórmula-tipo num documento de Lenine (esse mesmo, o Vladimir Ilyich Oulyanov) chamado “projecto de programa do partido operário social-democrata da Rússia” cujos normativos “C” e “D” continuam a ser a sua base teórico-prática: soberania do povo, sufrágio universal, igualdade de deveres e direitos sem qualquer tipo de discriminação, inviolabilidade de pessoas com liberdades de consciência, palavra, imprensa e associação, direito a protecção judicial, a ensino geral gratuito, a horários de trabalho e regimes salariais controlados impedindo especulação e usura, direito a pensões do Estado no final da vida laboral, enfim, direito à saúde.

Sabemos que a prática de poder do autor pouco ou nada teve que ver com o programa proposto, mas este ficou para a História e os seus valores, mais sociais menos sociais, são quase universalmente aceites como “de progresso”.

É neste “mais ou menos sociais” que se devem situar os referidos 73,67% de eleitores portugueses. Sendo este “mais ou menos” o espaço onde julgo encontrar-se a oportunidade da democracia para se afastar do espectro da falência e, ao mesmo tempo, se demarcar dos anti-democratas.

O PS ao ocupar cada vez mais a área da social democracia que o PSD julgava exclusivo seu criou a este partido uma estreita margem de afirmação porquanto a oposição “de direita” não se pode fazer contra uma política “de direita”. Dito de outra forma, a social democracia do PSD não tem espaço de alternativa política na governação social democrata, o socialismo democrático, do PS. E sentindo-se encurralado e sem imaginação para se reafirmar na “sua” social democracia, o PSD vai-se descaracterizando ao se inventar oposição através de parcerias com anti democratas. E justificando este injustificável com uma ilusão: a de terem em comum o “serem de direita”.

Mas serão?

As políticas sociais do PSD são conciliáveis com as teses que condenam a democracia? As bases de acção política dos governos social democratas, ou seja, os normativos orientadores da construção de mais ou menos estado social são integráveis nos programas políticos que consideram o estado social um conceito indefensável? Defender o estado social é política “de esquerda” ou é valor construtor e suporte da própria democracia? Abandonar o objectivo de alargar o direito a uma vida feliz e saudável para todos num mundo de interesses partilhados deixou de ser programa da doutrina social da igreja que tantos militantes social democratas têm como orientador moral?

Não, de forma nenhuma, pelo que há algo de incoerente e anti-natural na opção do PSD de se isolar num conservadorismo dependente do apoio da extrema direita para crescer ou ser poder. Se esta é contra os princípios identitários da social democracia esta parceria só funcionará se mudar a social democracia ou então se mudar o PSD.

(Parêntesis: Nos Estados Unidos da América do Norte apenas dois partidos têm acesso ao poder: dizemos que são os Democratas, que “hoje” associamos ao progresso e os Republicanos que são “hoje” a direita conservadora e reaccionária. O singular é que estes dois grupos políticos são, ideologicamente, praticamente o mesmo. Em ambos há progressistas com interesses sociais e em ambos há políticos retrógrados mais ou menos absurdos nos valores que defendem. O número de uns e outros varia em cada um dos partidos mas estão lá. O que os separa é a vontade, dominante em ambos, de governarem o país. Por isso quando um defende um princípio o outro está contra sendo natural para os americanos que os progressistas de hoje tenham sido os conservadores de um ontem não muito distante e vice-versa. É a ausência de conflito ideológico que os torna mais ou menos sensíveis aos problemas sociais de acordo com interesses de poder e, admito-o, quando algum dirigente se salienta na defesa desses valores. Até ao tempo actual, em que algo muito grave se está a passar neste país, estas aparentes incongruências eram aceites pacificamente porque “ideologicamente não há diferenças entre eles”. Fim de parêntesis.)

A questão política portuguesa de hoje parece poder (dever) ser interpretada desta forma: o PSD tem de orientar a oposição ao PS defendendo a “sua” social democracia com corajosa afirmação da componente social do seu programa. Procurando assim ocupar parte do espaço onde o PS se vê valorizado e “empurrá-lo” para uma redefinição dos seus objectivos. Ou quer manter-se no centro, seja este o que for, ou tem de reapreciar o seu projecto social para contrariar o do PSD. Desta forma ambos poderão dar especial relevo às suas diferenças sobre o conceito e o valor relativo da “social democracia” dos seus programas. Que agora não são evidentes porque ambos a defendem em abstracto, mas que serão claríssimas se o PSD “fugir” para a extrema direita, com inequívoco prejuízo para a democracia. Parece-me não ter sentido acreditar que existam sociais democratas que queiram destruir a democracia. E julgo que “todos” os sociais democratas sabem que abrir o partido à extrema direita é a sua perda como cidadãos de um mundo plural, cultivador da diferença, onde não há excluídos, o mundo que o manifesto de Lenine tão bem descreveu.

E como seria benéfico para a muito grande maioria dos portugueses e para o reforço da nossa debilitada democracia se estes partidos de governação se confrontassem com programas onde cada um agisse com o objectivo de ser mais social democrata que o outro. Decerto que os erros e as fragilidades que têm sido (muitas vezes com razão) suporte da contestação aos valores democráticos se reduziriam, que seriam mais denunciados e penalizados, que o discurso político ficaria mais qualificado e que o sentido e dever de votar ganharia nova expressão. Provavelmente a abstenção reduzir-se-ia porque estaria mais assegurada e seria controlada, a relação entre o que se propõe como programa político e o que se executa quando poder. E acredito que controlar a proximidade destes dois vectores da governação seria democratizar a democracia e dar ao democrata o direito de viver intensamente os valores democráticos.

Ao se aceitar como imagem definidora do PSD a democraticidade dos seus apoiantes e aceitando igualmente que os valores democráticos do PS são a base da sua existência, parece razoável ter esperança na democracia como futuro no país onde vivemos. A semelhança dos valores políticos destes opositores deve ser utilizada para melhor definirem os particulares das suas pequenas diferenças, o que é a direita social e o que é a esquerda social. Dessa interminável discussão sairá um amanhã vivido em Portugal de acordo com os princípios da social democracia e sem o espectro de um doloroso renascimento dos regimes autoritários mais ou menos ditatoriais.

(Segundo parêntesis: Mas porquê um artigo sobre política teórica num espaço dos Médicos? A resposta é simples: porque se justifica visto a prática clínica ser uma actividade profissional fundamentalmente democrática. Claro que há e felizmente, outras actividades que satisfazem esta condição. Mas o simbólico especial da prática assistencial advém de lidar com um desconhecido perturbador, ditatorial, chamado sofrimento ou risco de morte. A prática clínica tem como propósito primeiro, segundo e terceiro cuidar, cuidar de quem carece de cuidados saiba-o ou não. Cuidar de todos sem exclusões. O Médico é naturalmente cuidador até do seu adversário se este necessitar de ser cuidado porque se o não fizesse deixava de ter direito a dizer-se Médico. Claro que há Médicos com opiniões políticas que vão da extrema direita à extrema esquerda. Divergem na forma como pensam dever ser a governação mas têm, todos sem excepção repito, o compromisso de democraticamente cuidar do pobre e do rico, do saudável que se julga doente e do doente que o está mesmo, dos sofredores em abstracto seja qual for a cor da sua pele, o seu projecto político, a sua convicção religiosa ou as suas manias e preconceitos. Ora cuidar de quem precisa de cuidados só porque precisa de cuidados é uma das expressões da democracia. Será então descabido falar de política democrática numa publicação para Médicos? Eu acho que não…)