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Stayaway Covid? Stayaway Ditadura!

Com a autorização do autor, publicamos este artigo de autoria de António Garcia Pereira, originalmente publicado pela – http://www.noticiasonline.eu/stayaway-covid-stayaway-ditadura/

 

O mesmo Primeiro-ministro, António Costa, que há semanas atrás jurava a pés juntos que a aplicação STAYAWAY COVID era voluntária e essa era uma das principais razões para que todos aceitássemos instalá-la, é, afinal, o mesmo que, com a maior desfaçatez e sempre sob o pretexto da tecnologia “neutral” (alegadamente ao serviço do combate à pandemia) procura agora impor uma lei que, a ser aprovada pelo Parlamento, não só impõe a obrigatoriedade dessa instalação como confere indefinidos e indeterminados poderes às polícias para fiscalizarem os cidadãos e para lhes aplicarem coimas que podem ir até 500€.

A não separação de poderes?

António Costa é ainda o mesmo governante que, quando tal lhe convém (por exemplo, para se distanciar dos seus correligionários de partido envolvidos em processos judiciais…), sabe invocar a separação de poderes, que neste momento – e com a cumplicidade activa de Marcelo Rebelo de Sousa – ameaça os portugueses e chantageia claramente o Parlamento, no sentido de que, se aquela lei não for aprovada pela Assembleia da República, logo tratará de obter nova declaração do estado de emergência e, com ela, nova suspensão de direitos constitucionais!…

Assim, importa antes de mais questionar: qual a diferença de substância entre esta forma de governar de Costa e, por exemplo, a de Cavaco, que, como bem nos lembramos, considerava “forças de bloqueio” todos os que dele discordassem e fazia do Parlamento uma mera caixa de ressonância do Governo?

A proposta de lei do governo

A proposta de lei em causa[1] trata de tornar obrigatória para “os utilizadores de equipamento que a permita” a instalação e utilização da aplicação STAYAWAY COVID “em contexto laboral ou equiparado, escolar e académico”[2], bem como a inserção na mesma aplicação do código de teste positivo (para assim supostamente avisar todos os que com o utilizador em causa estiveram em contacto durante pelo menos 15 minutos ao longo dos últimos 14 dias), atribuindo à GNR, PSP, Polícia Marítima e polícias municipais todos os poderes de fiscalização do cumprimento dessas obrigações[3]. E, logo de seguida e com a prestimosa ajuda da Comunicação Social amiga – isto é, quase toda a que proclama que “em tempo de incêndios não se atacam os bombeiros” e, com isso, justifica a censura de tudo o que divirja do “unanimismo” oficial –  o governo do Sr. Costa tratou de fazer espalhar ainda mais medo, agora inclusive com a ideia de que as polícias até poderiam começar a entrar, sem mandado, em casa das pessoas para exercerem os ditos poderes de fiscalização!

Tudo isto tem sido feito e dito sob a argumentação de António Costa de que – pasme-se – “não gosta de ser autoritário”, mas que esta obrigatoriedade da aplicação seria adequada e indispensável para combater o avanço da pandemia.

A verdade, porém, é que, como veremos, esta medida pouco ou mesmo nada tem a ver com o efectivo e eficaz combate à Covid-19 e antes representa um gravíssimo atentado aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e, também, um autêntico balão de ensaio para novas e mais gravosas investidas contra os mesmos cidadãos. Sobretudo quando se vai tornando tão mais trágico quanto indisfarçável que há um aumento cada vez mais acelerado da pobreza, da miséria e mesmo da fome no nosso País[4], mas o pior da crise económica e social ainda está para vir, em particular quando cessarem os apoios sociais actualmente em vigor e se multiplicarem os despedimentos em massa, muitos deles até já previamente anunciados[5].

A imposição da obrigatoriedade da instalação e uso da aplicação STAYAWAY COVID e o abrir da porta a toda a sorte de “bufices” e perseguições policiais é uma medida tão ineficaz, e até inútil no combate à pandemia, quanto inconstitucional, ardilosa, hipócrita e mesmo terrorista.

Uma medida habilidosa e ardilosa

É habilidosa e ardilosa porquanto, ao fazer desencadear toda a polémica actualmente já em curso – polémica essa que, porém, é democraticamente saudável que tenha surgido agora, ao invés do que no passado sempre sucedera, aos gritos do “é o novo normal e temos que o aceitar” ou do “os fins justificam os meios”, relativamente a toda a série de barbaridades inconstitucionais anti-constitucionais cometidas pelos governos central e regionais e por diversas autoridades administrativas –, aquilo que António Costa conseguiu foi que não se fale, ou pelo menos não se fale o necessário e suficiente, do que é verdadeiramente essencial no combate, quer preventivo, quer curativo, às doenças (a da Covid-19 e também as outras, em particular as graves e emergentes, como as oncológicas e cardíacas, por exemplo, cujos pacientes têm estado a ser deixados para trás com um aumento muito significativo da mortalidade não-Covid[6]).

A necessidade do reforço significativo dos meios, logísticos, materiais e  humanos no Serviço Nacional de Saúde, o aumento determinante da testagem e do rastreamento das infecções, a realização integral dos inquéritos epidemiológicos, as medidas especiais de protecção aos mais expostos (como os profissionais de saúde, os bombeiros, os agentes das forças policiais e serviços de protecção civil, os trabalhadores de atendimento ao público e os da recolha e tratamento dos lixos, entre outros) e aos mais vulneráveis (como os velhos enclausurados em lares sem o mínimo de condições, sejam legais ou ilegais, e que a Segurança Social nem sequer conhece e muito menos fiscaliza), o aumento da quantidade e da qualidade da oferta dos transportes públicos e a imposição de que ela seja suficiente para transportar toda a gente, em segurança e a tempo de chegar aos seus destinos, tudo isto é esquecido, como é esquecida a responsabilidade, antes de mais política, de todos os responsáveis por, para mais ao fim de 7 meses de pandemia, praticamente nada disso estar bem tratado e muito menos resolvido.

A hipocrisia da medida

Aliás, numa linha de hipocrisia e de discriminação que já vem de trás, criticam-se violentamente os jovens que se juntam aos magotes às portas das escolas ou em locais de convívio, mas proclama-se que não há problema nenhum de contágio com os passageiros empilhados como sardinhas em lata à hora de ponta, por exemplo nos comboios da linha de Sintra ou nas carruagens do Metro.

O cidadão que tenha estado em contacto com outro que testou positivo tem de ficar de quarentena durante 14 dias, mas se for conselheiro de Estado ou jogador da selecção nacional de futebol pode ser dispensado dessa quarentena. Um jovem duma escola de Rio de Mouro é castigado com 1 dia de suspensão por ter partilhado uma sandes com um ou vários colegas, mas o Presidente Marcelo já pode partilhar uma bola de Berlim com uma criança numa praia. Quando todos os exemplos têm de vir de cima, esta forma de agir retira qualquer espécie de confiança e de legitimidade aos discursos dos governantes que pregam para os outros aquilo que, para si próprios, não querem nem fazem.

Acresce que, pretender fazer crer que só com a obrigatoriedade da aplicação STAYAWAY COVID é que se consegue combater a Covid-19, representa uma completa falsidade de que os seus defensores, até pelas experiências já conhecidas de outros países, não podem, com o mínimo de razoabilidade, pretender que não se aperceberam.

Mas, obviamente, essa forma de agir baseia-se no medo e na sua “gestão científica”, criando na generalidade das pessoas um estado de choque tal que as leva a não reagir e a aceitar tudo aquilo que se lhes queira impor, por mais desajustado e até brutal que seja, com a maioria dos meios de comunicação social transformados em amplificadores e até em verdadeiras “fábricas do medo” para usar a feliz expressão de José Luís Diaz Ripollés.

A inconstitucionalidade da proposta de lei 

Com efeito, fora do estado de sítio ou de emergência, os direitos, liberdades e garantias não podem nunca ser suspensos[7], mas, quando muito, e em casos devidamente justificados, sofrer algumas restrições. Mas estas restrições, para além de só poderem ser operadas por lei (da Assembleia da República, ou do Governo desde que munido de autorização legislativa do Parlamento, visto se tratar de matéria de reserva de competência deste[8]), com natureza geral e abstracta e sem efeitos retroactivos, têm sempre de obedecer aos critérios da estrita necessidade (para salvaguardar outos direitos ou interesses constitucionalmente protegidos), da adequação e da proporcionalidade, não podendo jamais diminuir a extensão e alcance do conteúdo essencial dos outros preceitos constitucionais[9].

Por esta razão, uma restrição de direitos fundamentais que se revele desadequada ou desnecessária ou desproporcionada, será sempre e irremediavelmente inconstitucional e todos os tribunais do país têm não só o poder como o dever de a desaplicar em qualquer questão que tenham de decidir. Ora, a imposição da obrigatoriedade da aplicação em causa – saloiamente denominada em inglês, para assim se lhe tentar conferir um verniz de cientificidade, não obstante a língua oficial do nosso País ser, por força do art.º 11º, nº3, da Constituição, o português… – é completamente desadequada, desnecessária e desproporcional para atingir a finalidade que supostamente visaria prosseguir.

Com efeito, e como bem salientou em entrevista recente, Luís Filipe Antunes, Director do Centro de Competências em Cibersegurança e Privacidade da Universidade do Porto, está desde logo demonstrado, também pela experiência de outros países próximos do nosso, que, da totalidade da nossa população, há 20% (crianças até aos 9 anos e parte significativa dos idosos) que, desde logo, não têm sequer telemóvel, muito menos que permita a aplicação, e, dos que o possuem, outros 20%, por falta de suficiente literacia digital, não a conseguirão instalar, o que deixa à partida pelo menos 4 milhões de pessoas fora de qualquer hipótese de serem abrangidas pela STAY AWAY COVID. A que acrescerão ainda todos os que têm telemóvel e até saberiam fazer a instalação, mas cujo respectivo aparelho não a comporta. E depois, mesmo quanto aos restantes, é muito baixa a taxa de introdução dos códigos de alerta. Em Itália, por exemplo, com 8,3 milhões de aplicações instaladas, verificaram-se 887 alertas apenas. E os dados conhecidos em Portugal apontam para números ainda mais irrisórios.

Porém, o mais importante ainda é o gigantesco número de falsos alertas que este sistema proporciona – no caso italiano, dos tais 887 alertas registados, apenas 13, ou seja, 1,5%, foram confirmados com testes positivos! E isto porquê? Porque a aplicação assinala as pessoas que estiveram, nas 2 últimas semanas e durante pelo menos 15 minutos, perto da pessoa que testou positivo, o que significa o envio de alertas a todas essas pessoas, mesmo que, embora próximas, elas tenham estado por completo fisicamente separadas do testado positivo (o vizinho do lado, do outro lado da parede, o funcionário de atendimento totalmente separado por uma parede de acrílico  do utente do serviço, os condutores e acompanhantes das viaturas que, no trânsito, ficam próximas, etc.) e, logo, não foram contagiadas por ele.

Por outro lado ainda, a aplicação só poderia ser eficaz e adequada no combate à pandemia se, uma vez emitidos os alertas, todos os que os recebessem fossem de imediato testados. Ora, basta pensar que se, na sexta-feira passada, houve 2608 novos infectados e se cada um deles tivesse, por dia, estado próximo, nas duas últimas semanas, de meia dúzia de pessoas diferentes – o que é, aliás, reconhecidamente um número baixo – isso significaria que, para a aplicação ser adequada e eficaz, se teriam de testar de imediato 2.600 x 6 x 14 = 219.072 pessoas! Mesmo a uma média de 1.500 infectados diários e de 5 pessoas por eles contactadas por dia, tal representaria 1.500 x 5 x 14 = 105.000 pessoas a testar.

Ora, como é óbvio, o Serviço Nacional de Saúde não tem qualquer capacidade de resposta para conseguir realizar tamanha tarefa. Pelo que a imposição da obrigatoriedade da instalação e utilização da aplicação STAYAWAY COVID constituiria um completo, desnecessário, desadequado e irresponsável disparate e, ele sim, produtor de uma falsíssima sensação de combate à Covid-19.

Uma aplicação concebida para ser voluntária

A dita aplicação não foi sequer concebida e desenvolvida para ter uma utilização obrigatória e tem por base uma tecnologia pensada e construída para cumprir com o seu cariz voluntário, com o qual, aliás, e conforme já referido, António Costa inicialmente argumentou para a defender. Paulo dos Santos, presidente da Ubirider – uma das chamadas start-ups que participou no desenvolvimento do projecto – declarou com toda a clareza: “Esta app tal como está, nunca pode ser obrigatória. Não pode.”. E decerto, também por razões idênticas, a Comissão Europeia – que António Costa, noutras questões, tanto gosta de citar e de seguir – desaconselha a obrigatoriedade do uso da aplicação. E, tal como a Comissão Nacional de Protecção de Dados igualmente assinalou, de acordo com um relatório apresentado na semana passada pelo Conselho da Europa, nenhum país, do total dos 55 aderentes à Convenção de Protecção de Dados, implementou, com carácter obrigatório, este tipo de aplicação…

Acresce a tudo isto que, para funcionar, a aplicação não exige apenas a sua instalação inicial, mas ainda que estejam ligados quer o Bluetooth (uma especificação de rede pessoal, por radiação electromagnética, que permite comunicações sem cabos ou fios entre dispositivos a uma certa distância), quer os “dados móveis” ou o wi-fi (para aceder à internet, o que a aplicação necessita de fazer pelo menos uma vez por dia), quer, enfim, as chamadas “notificações de exposição” (que permitem receber notificações em caso de contacto com alguém infectado). Ora, tal como esclareceu o próprio Rui Oliveira – o coordenador do projecto STAYAWAY COVID, do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (INESC-TE) –, basta que qualquer uma destas três funções esteja desligada para que a aplicação já não funcione…

Deste modo, a exigência de que cada cidadão tenha não só de ter a aplicação instalada no seu telemóvel (e este tem que ser um que a suporte), como também que tenha acesso a um wi-fi ou então tenha, com os custos inerentes, adquirido um “pacote” de dados, e ainda que tenha o Bluetooth permanentemente ligado é, para os cidadãos, cara e sobretudo perigosa pelas grandes possibilidades de devassa da sua privacidade. Como todos os governos, incluindo o do Sr. António Costa, e as suas polícias e serviços de informações, muito bem sabem…

A devassa da privacidade

Para além da extrema facilidade com que governos, polícias, serviços secretos e também grandes multinacionais (como a Google, o Facebook e a Apple) podem aceder – e, como bem sabemos, têm efectivamente acedido – à localização e movimentação dos cidadãos e aos respectivos dados pessoais, a permanente ligação ao Bluetooth expõe-os ainda mais e de forma tão desmesurada como praticamente incontrolável.

Para além de softwares maliciosos, como o BlueBorne (que permite tomar controlo do aparelho visado e aceder aos dados pessoais do seu portador) ou o Greyball (capaz de introduzir o caos tecnológico, dificultando ou até impedindo as acções inspectivas das autoridades e que terá sido uma das razões pelas quais a Uber foi impedida de operar em Londres), são também conhecidas diversas (e tenebrosas) experiências de acesso indevido a dados pessoais de cidadãos.

O caso mais célebre terá sido o ocorrido na cidade inglesa de Bath, onde milhares de moradores, durante cinco dias e meio e sem a sua autorização, viram os seus dados, deslocações diárias a actividades monitorizados por meio de 9 “scanners” de Bluetooth espalhados pelas ruas da cidade, e depois passados para o securitário projecto municipal Cityware[10]. Algo de similar pode ser, e é, feito através do software Car Whisperer relativamente a todas as chamadas telefónicas feitas em viaturas próximas através do sistema de “mãos livres” por Bluetooth. E se os incautos cidadãos deixarem ficar, nos respectivos aparelhos, as senhas de fábrica, todas estas intromissões – praticadas em todo o mundo por serviços de informações, polícias e também por grandes grupos económicos e financeiros (em particular os que vivem de comprar, manipular e vender “informação”) – se tornam ainda mais fáceis[11].

Escancarar as portas aos abusos policiais

É também manifesto que esta lei do Sr. António Costa, a ser aprovada, abriria a porta a toda a sorte de atropelos e abusos policiais. Aliás, a Comunicação Social amiga do Governo começou logo a propalar autênticas barbaridades como a de que, sob o pretexto de irem fiscalizar o cumprimento das obrigações ali estabelecidas, os polícias até já poderiam entrar, sem mandado judicial e inclusive de noite, em casa dos cidadãos! E logo houve também uns “especialistas” que, invocando a Lei de Bases da Protecção Civil, apareceram a pretender sustentar essa pidesca teoria, “esquecendo-se” de que, nos termos do art.º 34º, n.ºs 2 e 3, da Constituição, salvo os “casos de criminalidade altamente organizada, incluindo o terrorismo e o tráfico de pessoas, de armas e de estupefacientes”, tal entrada no domicílio de uma pessoa contra a sua vontade só pode ser feita com mandado judicial. Ou será que o Sr. Costa vai também tentar qualificar de “terrorismo” o não se ter a sua tão querida aplicação?…

Ora, ainda que sem fundamento legal ou constitucional, esta situação mostra com clareza para onde facilmente descambariam as coisas com esta lei e até onde poderia chegar a “imaginação policial”. Por exemplo, se o cidadão não tem telemóvel ou tem um muito antigo, é obrigado a ir comprar, do seu bolso, é claro, e de última geração? E se não o comprar (ou for desencantar o velho Nokia…), fica impedido de circular e, nomeadamente, de ir trabalhar? E, se diante do polícia “fiscalizador”, numa das tais “operações STOP” que decerto se iriam multiplicar, disser que não possui tal aparelho, aquele pode revistá-lo, a ele e ao carro? E, já agora, também aos restantes ocupantes da viatura? E se invocar que o tem, mas que ele não permite a aplicação, o polícia vai-lhe espiolhar o mesmo para confirmar a veracidade? E se ele não fornecer o PIN de abertura, o polícia leva-o para a esquadra (ou para o Presidência do Conselho de Ministros”) até que ele “vomite” os 4 dígitos?

Todas as dúvidas e reservas são fundadas e legítimas

Acresce que, não obstante todas as juras do Primeiro-ministro em contrário (e já vimos, precisamente quanto a esta app, o que elas valem…), o certo é que, como denunciou Ricardo Lafuente Vice-presidente da Associação D3-Defesa dos Direitos Digitais, o código-fonte do software da STAYAWAY COVID não está publicado na íntegra, pois falta a componente fundamental relativa à parte que é controlada pela Google e pela Apple, e cujo funcionamento é desconhecido.

Assim, são mais que legítimas todas as dúvidas e preocupações que se possam colocar relativamente à obtenção, manuseamento, armazenamento e utilização de todos os dados com ela recolhidos. E a “explicação”, entretanto dada pelo responsável do INESC-TE, no sentido de que não haveria problema algum de risco de violação da privacidade dos cidadãos porquanto, por um lado, tais dados não dão a localização de ninguém e, por outro, ficarão alojados, durante um certo período de tempo, num servidor na Imprensa Nacional-Casa da Moeda e serão acessíveis a todo o mundo, seria de rir até às lágrimas não fosse a enorme gravidade do problema.

É que, como é óbvio, a identificação dos telemóveis das pessoas com quem se esteve em contacto nas últimas duas semanas, permite saber, pelo menos, com quem o cidadão esteve e, a partir daí e em grande parte dos casos, onde esteve e, logo, descortinar a fazer o quê. Depois, não é pela circunstância de a violação da privacidade dos cidadãos ser escancarada a toda a gente (incluindo às polícias e aos serviços de informações…) que ela deixa de ser o que é.

Ora, nenhum de nós pode ter a certeza de que amanhã o Sr. Costa não vem dizer que, afinal, para combater a pandemia, também é precisa a geo-localização dos cidadãos para assim se saber por onde andam os delinquentes dos contaminadores. E também, não existindo mecanismos de auditoria e fiscalização independentes, nenhum cidadão pode ter o mínimo de segurança acerca do que irão fazer com tais dados, eventualmente cruzando-os com outros (como os dos movimentos dos cartões bancários ou dos passes de transportes, ou dos registos das portagens, por exemplo), não só os governos e as suas polícias, mas também grupos poderosíssimos como a Google e a Apple.

E é também por isso que a Comissão Nacional de Protecção de Dados, a Ordem dos Médicos e (vá lá!) também a Ordem dos Advogados já tomaram posição abertamente contra a solução legal da obrigatoriedade da instalação e do uso da aplicação STAYAWAY COVID. E vários constitucionalistas como Jorge Reis Novais, e também Pedro Bacelar de Vasconcelos e Isabel Moreira, ambos deputados do PS, já se pronunciaram, e de forma clara, sobre a patente inconstitucionalidade deste inefável projecto de lei[12].

O jogo viciado de António Costa

Ora, o governo do Sr. António Costa não pode ignorar tudo isto, desde a completa desnecessidade, desadequação e desproporcionalidade da solução que quer impor, até às graves inconstitucionalidades de que ela padece. Mas insiste na exigência da sua aprovação, chegando ao ponto de chantagear o Parlamento com a ameaça de que, se este não lhe aprovar a lei, ele já se entendeu entretanto com o Presidente da República para impor algo ainda mais gravoso e ofensivo dos direitos dos cidadãos, e que é uma nova declaração do estado de emergência.

E fá-lo por duas razões essenciais, e cada uma pior do que a outra: por um lado, para, como já se referiu, assim conseguir desviar as atenções da sua inépcia e incompetência (que começam a ser criminosas) no verdadeiro combate à pandemia, combate esse para que todas as forças e todos os meios (e não a demagogia e o sound bite do folclore mediático) deveriam ser mobilizados. Por outro lado, porque está habilidosamente a tentar jogar um jogo em que ganha sempre – se o projecto de lei for aprovado, apresentará isso como uma vitória pessoal contra ventos e marés, inclusive dentro do seu próprio partido ( e logo a imprensa amiga salientará e elogiará fartamente a sua “inteligência” e “habilidade” política);  se não for aprovado, embora rilhe os dentes, dirá que encara esse resultado com a maior naturalidade (como, à cautela, já mandou a ministra Mariana Vieira da Silva ir dizendo[13]…) mas tratará doravante de  procurar responsabilizar todos os que se manifestaram contra a lei pelos seus insucessos no combate à pandemia e até com isso justificar a pretensa inevitabilidade de outras medidas tão ou mais gravosas quanto esta.

Combater este projecto, eis o que nos resta!

Mas, como os cidadãos portugueses há muito aprenderam, à chantagem não se cede, nunca! E perante a força e a arrogância do Poder, só temos um caminho a seguir: não ceder nem ajoelhar perante ele e lutar, lutar sempre! Porque resistir é vencer!

De pé, pois, caros concidadãos!

António Garcia Pereira


[1] Proposta de lei n.º 62/XIV.

[2] Art.º 4º, n.º 1.

[3] Art.º 4º, n.º 3.

[4] Vejam-se as filas enormes de gente aguardando por comida nos centros de distribuição em Lisboa e os relatos cada vez mais preocupados dos responsáveis por instituições de solidariedade social como a Caritas, por exemplo.

[5] Em alguns casos, às centenas ou mesmo aos milhares, como na TAP e na Banca (Montepio, Santander, etc.).

[6] Conforme a Ordem dos Médicos vem, desde Abril passado, a chamar a atenção.

[7] Art.º 19º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

[8] Art.º 165º, n.º 1, al. b) da CRP.

[9] Art.º 18º, n.ºs 2 e 3 da CRP.

[10] Eiko Yoneki, Pan Hui e Jon Crowcroft (2007) “Wireless Epidemic Spread in Dynamic Human Networks”, in Pietro Liò, Eiko Yoneki, Jon Crowcroft and Dinesh C. Verma (eds.), Bio-Inspired Computing and Communication, Berlin: Springer, 116-132.

[11] A conferência de software e tecnologias da informação DEFCON 2019, realizada m Agosto de 2020 em Las Vegas, permitiu conhecer e divulgar muitas destas práticas.

[12] Os Tribunais não só poderão como deverão desaplicar tal lei – se vier a existir – em toda as questões que lhes sejam submetidas, por força do estabelecido no art.º 204º da CRP.

[13] Em declarações à Lusa, prestadas na sexta-feira 16/10, a Ministra de Estado e da Presidência declarou explicitamente o seguinte: “O Governo está confortável com qualquer que seja a decisão que a Assembleia da República venha a tomar, porque o que está em causa são dúvidas e esclarecimentos, que todos temos consciência que existem.”.