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Ser Médico de Família em França

Autora: Soraia Alves Dantas, Interna de Formação Específica de MGF (USF Nova Via)

Resumo: Com este artigo a autora pretende partilhar a sua experiência de um estágio curto de 2 semanas em França, e desse modo apresentar a forma como a especialidade de Medicina Geral e Familiar é exercida nesse país.

 

Iniciei o meu percurso pelo mundo da medicina em 2007, quando ingressei na faculdade. Os relatos de experiências em outros contextos sempre me despertaram interesse, sempre tive curiosidade relativamente ao funcionamento do sistema de saúde fora de Portugal, mas a verdade é que, até este ano, o último do meu internato, ainda não tinha tido qualquer contacto com outra realidade (profissional) que não a do nosso país. O Hippokrates Exchange Programme possibilitou que eu vivenciasse essa experiência, mais concretamente em Saint-Gobain.

Saint-Gobain é uma pequena comuna no departamento de Aisne, nos Altos de França, com uma população de cerca de 2300 habitantes. É uma vila rural, inserida na natureza, onde a tranquilidade e o sossego reinam.

À semelhança do que acontece no nosso país, também em França se verifica uma enorme carência médica nas zonas rurais, os doentes chegam a percorrer 20, 30km para serem observados por um médico.

A médica que acompanhei é portuguesa e está emigrada em França desde há 2 anos. Tem uma lista de aproximadamente 1200 utentes, feita ao longo do primeiro ano de trabalho, entre os quais cerca de 30 domicílios.

Quando fui para o intercâmbio não sabia ao certo o que iria encontrar. A curiosidade era muita. Tinha ideia que existiam diferenças no sistema de saúde e na forma de trabalhar, mas questionava-me se conseguiriam praticar uma verdadeira “medicina da família”, algo essencial para mim. A resposta é sim, conseguem!

Os médicos têm uma prática individualizada, em consultórios próprios, algo semelhante ao sistema privado do nosso país, não existindo o trabalho de equipa com enfermagem. Precisando dos seus serviços é feita uma referenciação (como aquelas que se fazem para um colega de outra especialidade), mas na maioria dos casos é o próprio médico que assume os procedimentos necessários, como administrar vacinas, medir a pressão arterial, pesar, cuidados de penso, entre outros. Do mesmo modo, no caso de não querer contratar ninguém para o cargo, o médico também pode assumir o papel de secretário clínico.

Atualmente tem-se assistido à criação das chamadas “Maison de Santé”, o mais semelhante ao nosso centro de saúde, reunindo os diferentes médicos de família de determinada localidade. Para além destes, contam com uma equipa de enfermagem e de secretariado, podendo também albergar várias outras áreas, desde ortopedia, psicologia, medicina dentária, etc., conforme as necessidades e ofertas do meio em questão. Contudo, a prática clínica continua a ser mais individualizada, em comparação com o modelo português, aspeto que pessoalmente menos aprecio.

A carga horária e organização das consultas é gerida pelo próprio médico. Por opção, a colega com quem eu estava, tinha os períodos da manhã sem marcação: os doentes eram observados por ordem de chegada; e os da tarde com marcação prévia. As consultas não estão forçosamente organizadas por tipologia, mas os médicos fazem um acompanhamento dos diferentes grupos semelhante ao nosso. As consultas domiciliárias são em tudo semelhantes às nossas, de ressalvar apenas que não existe uma área de abrangência específica. Não existem contactos indiretos, ou seja, tudo é tratado e resolvido presencialmente, inclusive a renovação de medicação crónica, continuação de tratamentos de fisioterapia, entre outros. Mas desengane-se quem pensa que tudo é “um mar de rosas”… À semelhança do sistema de saúde português, também no país dos Gauleses, a burocracia ocupa um lugar de destaque.

O pagamento da consulta é feito na íntegra pelo doente ao médico, sendo posteriormente reembolsado, em grande parte desse valor. Pelo que me fui apercebendo, apesar de o médico na França receber (bem) mais do que nós, o encargo para os doentes acaba por ser menor. Curioso…

Os programas informáticos com que trabalham apresentam algumas semelhanças ao nosso SClínico® e PEM®, contudo, no que diz respeito a consultar dados hospitalares, já é algo mais arcaico, não possuem acesso informatizado a esse conteúdo.

A articulação existente entre os diferentes níveis e setores de saúde foi algo que muito me surpreendeu. Os doentes têm autonomia para marcar consulta para o médico que desejarem, mesmo não sendo o seu médico de família. Podem até fazê-lo diretamente ao nível dos cuidados de saúde hospitalares. Contudo, se o fizerem por essa via, irão ter custos associados superiores.

Por norma as referenciações para urgência ou consulta de outra especialidade são processadas via carta, que o doente entrega em mãos na instituição/hospital onde pretende ser seguido. Após observação o colega da especialidade envia feedback para o médico de família. Notei, efetivamente, uma maior proximidade com os colegas hospitalares, com relativa facilidade em trocar ideias, dúvidas, opiniões, quer por carta, e-mail ou telefone.

Os farmacêuticos têm um papel muito mais ativo no que diz respeito à medicação, nomeadamente à posologia, às contraindicações e novas orientações, alertando o médico, sempre que necessário, para as mesmas. Não se limitam apenas a ler o receituário e vender o produto. Desempenham o papel de farmacêuticos, no verdadeiro sentido da palavra, ou melhor, da profissão.

Também com os laboratórios e clínicas de exames se verifica um melhor entendimento e dinâmica. Os resultados dos exames pedidos são enviados para o doente e diretamente para o médico que os tenha solicitado, facilitando toda essa gestão, evitando eventuais perdas, e colmatando o problema dos esquecimentos quando vão a consulta de vigilância ou reavaliação.

Quanto aos doentes… confirma-se, existem de “todo o tipo”, como cá. Mas, de forma geral, um aspeto que pude constatar, é que dão mais valor ao médico, que o respeitam e que conseguem ser mais tolerantes, quando a situação assim o exige. Face à situação precária que, infelizmente, vivenciamos no nosso país, é de “invejar” o devido valor que é dado à classe médica, o reconhecimento, quer por parte da população, quer do Sistema Nacional de Saúde.

Em jeito de conclusão, trata-se de uma organização distinta, com uma prática clinica própria, com as vantagens e desvantagens que daí advêm, mas com alguns pontos em comum com o sistema de saúde português, sobretudo num aspeto que para mim se apresenta crucial, que é o ser um verdadeiro médico de família, assistir e acompanhar as famílias ao longo das diversas etapas da sua vida, estar sempre presente, prestar cuidados continuados.

Nesse sentido, considero que este estágio foi uma mais-valia na minha formação, quer profissional, como também pessoal. Conhecer outro contexto, outra realidade, e perceber a capacidade que temos para nos moldarmos e adaptarmos a essas circunstâncias, é sempre uma experiência enriquecedora.

Quem sabe um dia conseguiremos ter o melhor dos dois mundos…?