+351 21 151 71 00

Saúde, doença e economia em tempos de pandemia

Autor: José MD Poças (Médico Internista e Infeciologista; Diretor do Serviço de Doenças Infeciosas do CHS; autor do Livro “Ode ou Requiem”; coautor e editor do Livro “A Relação Médico-Doente” da OM, Provedor da Pessoa Doente da LAHSB; Autor do site josepocas.com que tem como lema “Medicina: Cultura, Ciência e Humanização”; ex-Coordenador da Comissão de Crise da COVID-19 no CHS, ex-Membro do Grupo de Crise da OM e pequeno empresário de turismo, proprietário da Carmos´s Residence Art Apartements em Setúbal)

 

Saúde, doença e economia em tempos de pandemia: reflexões a partir de duas histórias, duas comemorações virtuais, seis sentidas dedicatórias e uma dúzia de missivas

 

A necessidade de procurar a verdadeira felicidade é o fundamento da nossa liberdade” (John Locke, médico e filósofo inglês, 1632-1704)

Temam menos a morte e mais a vida insuficiente” (Bertolt Brecht, dramaturgo alemão, 1898-1956)

Como vos acho pobres de vida quando achais que a economia é a virtude por excelência” (Friedrich Nietzsche, filósofo alemão, 1844-1900)

 

I)- Introdução

Não há princípio nem fim, apenas uma infinita paixão pela vida” (Frederico Felini, cineasta italiano, 1920-1993)

Um homem sábio tem a obrigação de saber que a saúde é o seu bem mais precioso” (Hipócrates, médico grego, 460 AC – 370 AC)

Não podemos simplesmente retomar a economia e ignorar a pilha de cadáveres” (Bill Gates, empresário e filantropo norte-americano, 1955- )

 

Os complicados tempos por que passamos levam-nos a almejar sermos capazes de conciliar proposições que diríamos antes serem completamente contraditórias. Mais. Impõem-nos que o façamos agora com determinação, como se de um verdadeiro desígnio de sobrevivência se tratasse, sem receio de sermos apelidados de incoerentes. E não apenas num circuito fechado de supostos iluminados omniscientes, mas antes de uma forma o mais abrangente e generalizada possível. Governantes e governados. Setor público e setor privado. Profissionais de saúde e doentes. Porque todos somos cidadãos e vivemos numa autêntica aldeia global, onde não é legítimo alguém vir a esconder-se por trás de falsos subterfúgios, alegando ignorância, desmotivação ou incompreensão. Todos. Em são e genuíno uníssono. Porque cada um de nós tem um papel próprio cuja importância não deve jamais alienar e porque o contributo de cada um é sempre determinante para o bem coletivo, sobretudo no atual contexto sanitário e social.

Primeiro, preconizou-se a necessidade imperiosa de um quase total confinamento domiciliário, criticando quem era cético ou incumpridor relativamente a tais recomendações. Agora, as pessoas fartaram-se do isolamento e querem que as deixem reestabelecer os contactos afetivos com a família e os amigos e que a economia possa voltar a funcionar, ainda que dentro dos óbvios limites do bom senso adequado às circunstâncias, condenando veementemente quem preconiza que se deva voltar a aplicar o anterior plano para se fazer face ao recrudescimento desta terrível (e inoportuna) pandemia. Realidade que tem, contudo, a indesmentível utilidade de nos fazer recordar que devemos ser humildes perante as forças incomensuráveis da Mãe-Natureza, bem como solidários enquanto membros ativos da Sociedade. Que reconheçamos que, por mais ciência e tecnologia existir ou for inventada, nem sempre se consegue o domínio de tudo e de todos. Que somos um pequeno, e, muitas vezes, muito nefasto membro constitutivo de um infindável cosmos cujas regras próprias de funcionamento ainda agora começamos a descodificar.  Que, no atual contexto, as incertezas quanto ao futuro próximo não nos permitem, sequer, prever o amanhã com uma suficiente certeza capaz de tranquilizar definitivamente os estados de alma e de evitar os constantes sobressaltos que têm caracterizado o dia-a-dia no decorrer dos últimos meses do corrente ano, como expliquei no meu anterior artigo intitulado “Incertezas e indecisões”. Porque, ninguém, em sã consciência, se deve considerar a salvo. Por mais influente, poderoso e rico que for, dado que devemos sempre ter bem presente que é uma intemporal verdade o facto de sermos todos iguais no nascimento e na morte, mas apenas diferentes enquanto vivemos. História que nos ensina, ainda, a não desesperar e a ter a convicção que havemos, em conjunto, de ultrapassar esta crise, quiçá mais fortes e conscientes do que antes do seu início.

 

II)- A Saúde

A vida de uma pessoa não é o que lhe acontece, mas aquilo que recorda e a maneira como recorda” (Gabriel Garcia Marquez, escritor colombiano e Prémio Nobel da Literatura, 1927-2014)

A miséria só principia quando temos empobrecimento até de esperança” (Emanuel Wertheimar, filósofo húngaro, 1846-1916)

A economia é uma virtude distributiva e consiste não em poupar, mas em escolher” (Edmund Burke, filósofo e político irlandês, 1729-1797)

 

A saúde é, a par da liberdade, aquilo que nos habituámos a prezar mais e a pretender salvaguardar a todo o custo nas sociedades contemporâneas ditas democráticas, como é o caso da nossa e a dos países onde nos inserimos histórica, geográfica, cultural e politicamente.

Ser saudável, depende de fatores que estamos ainda longe de dominar completamente (como o envelhecimento e os determinantes genéticos herdados dos progenitores), tal como dos que derivam do comportamento individual (padrão de consumo de substâncias de adição e de ingestão alimentar), dos hábitos (de exercício físico ou de sedentarismo e os relativos ao sono), do cumprimento das regras de proteção individual (no local de trabalho ou na prática desportiva), do respeito pelas normas de segurança em sociedade (na condução de veículos ou de outros meios de transporte), etc., bem como daquilo que decorre direta ou indiretamente da qualidade do meio ambiente envolvente, do grau de literacia e das habilitações académicas de cada cidadão, e, finalmente, da capacidade económica individual e da estrutura social do agregado familiar e do próprio país.

A saúde deve, assim, ser globalmente entendida, como o define (e bem) a Organização Mundial de Saúde, nas dimensões orgânica, psicológica e social, pois é dessa equilibrada simbiose que depende o âmago deste conceito. Se é um inalienável direito civilizacional, comporta um dever de igual dimensão e importância: o de fazermos tudo o que for legitimamente possível para a preservarmos e de nunca contribuirmos para que a mesma falte aos nossos circundantes por nossa omissão ou dolosa iniciativa.

A atual pandemia é sentida, pela grande maioria das pessoas, como uma séria ameaça à sua saúde individual e do seu núcleo relacional mais próximo, embora pululem, paralelamente, várias teorias conspirativas que conseguiram arregimentar surpreendentemente alguns inesperados cultores, inexplicavelmente inebriados com o seu lado novelesco,  o que só conduz a que nos afastemos do foco que nos deve agora orientar para a lúcida luta sem quartel contra esta doença, com vista a ultrapassarmos, com o mínimo impacto negativo possível, a eminente catástrofe que nos esperará, se não formos capazes de entender o fenómeno e as suas causas, tal como de respeitar aquilo que se recomenda ser mais adequado ao seu eficaz controlo.

 

III)- A Doença

A vida só pode ser compreendida olhando para trás, mas tem de ser vivida olhando para a frente” (Soren Kirkegaard, filósofo dinamarquês, 1813-1855)

A libertação começa pela aceitação. Para nos curarmos, abraçamos as trevas. Atravessamos o vale a caminho da luz” (Edith Eger, psicóloga húngara, judia sobrevivente de Auschwitz, 1927- )

“Aquele que acredita que o dinheiro fará tudo, pode bem ser suspeito de fazer tudo por dinheiro” (Benjamin Franklin, inventor e político norte-americano, 1706- 1790)

 

De entre o vasto e complexo grupo de doenças que afetam o Ser Humano, um subgrupo apresenta uma caraterística muito peculiar: a de poder contagiar os conviventes, ou seja, de ter a capacidade de ser transmissível de uma pessoa infetada a outra que ainda não o esteja. Umas vezes, o portador de determinado microrganismo nem sequer sabe dessa sua condição. Noutras, o contágio dá-se por mera displicência ou por falha inesperada dos meios de proteção recomendados. Mas, em certos casos, infelizmente, através de pérfido propósito…

Desde os primórdios da civilização greco-romana que, mesmo sem se saber que o veículo da transmissão desse tipo de doenças era, afinal, um ser microscópico, acreditava-se que algo de vagamente indefinido que pairava no ar, podia fazer com que as maleitas se espalhassem no seio da sociedade, o que fez com que, já desde o alvor da Idade Média, o distanciamento do individuo afetado, ou de um grupo restrito de supostos portadores do mesmo mal, fosse imposto sob diversas formas bastante coercivas, no intuito de prevenir o temido contágio. As doenças desta natureza eram vulgarmente apelidadas de “Pestes”, embora se viesse posteriormente a verificar que nem todas foram causadas pela “Yersinia pestis”, agente etiológico da verdadeira Peste (Bubónica) de má memória e que teve em Portugal (no Porto e nos Açores) os últimos surtos registados no Velho Continente. Os denominados “lazaretos” (nome derivado de outra doença também eivada de acentuado misticismo bíblico, a lepra), onde igualmente se isolavam os “pestosos” em quarentena, pululavam por todo o lado, e, desse modo, se pensava poder evitar o desastre sanitário decorrente das sucessivas epidemias que fustigaram a Europa, em intermitentes vagas, dizimando milhões de pessoas, realidade que se estendeu até meados do século XX e que marcou, indelevelmente, tanto o imaginário popular, quanto as políticas de saúde pública até ao presente.

Outro grupo, não menos ameaçador da qualidade de vida e muitas vezes independente da vontade do indivíduo, vem assumindo uma progressiva importância para a sociedade, para as famílias ou para os cidadãos. Refiro-me às denominadas doenças degenerativas crónicas, cuja importância é crescente e se caracterizam por terem um muito diversificado padrão evolutivo, desde aquelas que são compatíveis como uma longa sobrevivência e escasso impacto na qualidade de vida, até às que conduzem inexoravelmente à morte a curto prazo, amiúde com acentuado sofrimento do seu portador. Algumas, não têm ainda terapêutica específica disponível, sendo apenas sujeitas a estratégias de paleação. Muitas destas são idiopáticas, ou seja, não possuem etiologia (causa) conhecida. Contudo, algumas são também transmissíveis intergeracionalmente, dos progenitores para a sua descendência, através de mutações genéticas ao nível cromossómico, passíveis de serem identificadas previamente à conceção ou numa fase mais ou menos precoce do desenvolvimento embrionário.

Se, no primeiro caso, são preponderantes os nefastos comportamentos estigmatizantes dos conviventes para com os infetados, em especial se a afeção resultou de fatores comportamentais e, mais ainda, se aqueles forem da esfera sexual, no segundo, os seus portadores são geralmente olhados como sendo vítimas do injusto infortúnio e, portanto, merecedores de toda solidariedade por parte dos seus semelhantes e das instituições. Constata-se, deste modo, que o comportamento humano é capaz de oscilar, mesmo hoje em dia, entre o atávico medo dos “peçonhentos”, tal como na “Idade das Trevas” (como, por vezes, se denomina a “Idade Média”), e o acolhimento “natural” daqueles que estão isentos de qualquer sentimento de “culpa” ou de “pecado”, dicotomia que vai reconhecidamente mergulhar as suas raízes na tradição de cariz religioso judaico-cristão.

O que se comprova pelo facto de, naqueles idos e distantes tempos eivados da maior obscuridão científica e humanística, após cada vaga de Peste, ser então vulgar encarcerarem-se os judeus nos mesmos “lazaretos” ou, então, sujeitá-los a bárbaras sevícias, pois acreditava-se que tais catástrofes ocorriam como castigo divino, decorrente do facto das comunidades cristãs terem ousado, contra os cânones dos mais “puristas” da crença religiosa dominante, acolher no seu seio os descendentes dos que se acreditava terem traído Jesus Cristo umas centenas de anos antes, pelo que tal terrível atrevimento só poderia ser expiado, infligindo-lhes “merecidos e exemplares castigos”, consubstanciados na privação da liberdade ou em serem literalmente atirados para a fogueira, o que, frequentemente, acabava na morte desses desgraçados infelizes, tal como aconteceu intermitentemente na Europa (da dita civilização…) até ao dealbar do Holocausto Nazi.

A doença conhecida pela sigla de COVID-19, distingue-se de todas as pandemias que até agora fustigaram a Humanidade, por ser a primeira da era da informatização à larga escala planetária, o que tem permitido, a qualquer um de nós, ter acesso quase instantâneo à contabilização do número de casos e de mortes, pelo que podemos afirmar, sem rodeios, que vivemos na era da hiperinformação, na qual a distinção entre a realidade e a ficção assume, com uma crescente e ameaçadora frequência, uma ténue e difusa fronteira, o que só estimula o surgimento e a disseminação das nefastas teorias conspirativas já antes referidas.

 

IV)- A Economia

Não conseguimos livrar-nos de uma coisa evitando-a, mas apenas atravessando-a” (Cesare Pavese, escritor e poeta italiano, 1908-1950)

“A economia não trata de coisas ou de objetos materiais tangíveis; trata de homens, das suas apreciações e das ações que daí derivam” (Ludwig von Mises, economista e filósofo norte-americano, 1881-1973)

“O pensamento político está reduzido à economia, como se tudo pudesse ser calculado” (Edgar Morin, sociólogo e filósofo francês, 1921- )

 

A Economia não se deveria restringir, nunca, na opinião de muitas pessoas (e na  minha também), ao âmbito daquilo que remete apenas para os aspetos financeiros mas, deveria constituir-se, acima de tudo, como um meio privilegiado através do qual a Política passasse a ter bases razoáveis para calcular a repartição da riqueza de uma determinada Nação, produzida pelos seus cidadãos e pelas suas empresas, de uma forma justa e adequada às idiossincrasias de cada grupo específico. É, portanto, assim entendida, tal como a própria Medicina, uma atividade da mais relevante importância, feita pelos Homens e para a Sociedade, supostamente, a favor da felicidade dos Cidadãos e da sua realização pessoal e profissional.

Tem-se discutido muito acerca do papel do Estado nesta missão, entendendo-se este como uma imanação abstrata dos Cidadãos e da Sociedade, pretensamente organizado em instituições eleitas que asseguram a sua representatividade oficial, sujeitas a cíclico sufrágio popular (Presidente, Parlamento e Governo), e que, por sua vez, se assumem como os seus veículos legítimos pelos quais se exprime e tomam decisões em nome (e no suposto proveito exclusivo) dos cidadãos e dos eleitores… Para alguns, o bom Estado, é aquele que tenderá a resumir-se ao papel de mero regulador do sistema político-económico, não interferindo diretamente enquanto prestador direto. Para outros, deve assumir a gestão direta de uma parte significativa de alguns setores ditos fundamentais (defesa, segurança, justiça, saúde, educação e segurança social), intervindo ativa e precocemente sempre que alguma grave crise possa começar a despontar sem aparente controlo e com potencial grande impacto negativo na Sociedade. Para outros, ainda, pura e simplesmente, não deveria deixar qualquer margem à iniciativa privada, na suposição que este setor nunca agirá em favor do bem comum, causando apenas inaceitáveis e cada vez mais graves desigualdades sociais.

Tenho, para mim, como certo que, os do primeiro grupo, o que inconfessadamente querem, é a asfixia progressiva dos poderes do Estado, até ao seu completo desaparecimento, para assim imporem as suas condições ao dito “Mercado” sem qualquer controlo ou limite, esquecendo-se que um Estado Regulador só pode ser efetivamente útil e capaz de cumprir a sua missão, se for forte e dispuser de efetivos instrumentos para controlar com equidade e eficácia os diversos atores, embora o que os defensores desta teoria querem, no fundo, é negar tal possibilidade; que os do segundo, desvalorizam cada vez mais o nefasto e ostensivo papel que a generalização progressiva do nepotismo e da corrupção, enquanto personificação da negação absoluta do espírito de cidadania, condiciona. Postura que tem conduzido ao progressivo descrédito da imagem pública das instituições e, por arrasto, da própria democracia em si mesma, o que se reflete no cada vez maior abstencionismo que se regista nas pugnas eleitorais periódicas; e, por fim, os do último grupo, que pretendem ocultar que o que os move é a defesa egocêntrica, nos bastidores, dos interesses de uma muito restrita oligarquia reinante e inamovível, atuando como se negassem aos vulgares Cidadãos o direito a realizarem aquilo que faz parte indissociável da Natureza Humana, ou seja, a saudável ambição de concretizar sonhos.

Convém ter presente que, a este propósito, até os mais intrépidos defensores do mais radical liberalismo, clamaram pela necessidade da intervenção do Estado na anterior crise económica ocorrida na década passada, que teve o seu epicentro no sistema bancário, tal o fizeram agora, na presente crise sanitária, cujas implicações na economia mundial são muito mais gravosas, embora se espere que com um eventual e mais rápido potencial de recuperação. A ninguém serviria deixar sem qualquer proteção, quer as pessoas, quer as empresas viáveis, porque isso é a mínima condição de decência civilizacional. Os Seres Humanos e o fruto da sua iniciativa jamais deverão ser uma mera mercadoria descartável numa Sociedade digna.

E acrescentaria que, se o Projeto Europeu quer provar que é efetivamente aquilo que clama e que esteve no “utópico” espírito da sua génese, tem de ser capaz de reagir finalmente como um “Todo” e para “Todos”, e não como se fez inicialmente, na resposta dada aquando da anterior crise. Vivemos num Mundo cada vez mais globalizado, sendo por isso que estratégias diferentes implementadas para enfrentar a pandemia (ex. A Suécia versus Portugal e muitos outros países da CEE) acabaram por não produzir efeitos tão diferentes sobre a degradação da economia, o que deveria ser motivo de serena reflexão. Exemplos que vemos diariamente expostos nos meios de comunicação social, como sejam os casos de Trump (nos EUA) e de Bolsonaro (no Brasil), líderes máximos de dois dos países onde as consequências têm sido mais devastadores, quer ao nível sanitário, quer económico, deveriam fazer-nos concluir que a estratégia de obsceno desprezo pela ciência e a história não deve ser, jamais, o caminho a seguir.

É com base no facto de alguns argumentarem que, na denominada pandemia de gripe espanhola, a mortalidade ter sido, em grande parte, atribuída, na última fase, à fome que se lhe seguiu, que clamam que se aproveite agora o incomensurável maior avanço científico e tecnológico, para gizar estratégias alternativas com suficiente eficácia, que sejam capazes de esbater o potencial efeito devastador sobre a economia, produzido pelo prolongamento indefinido do confinamento social. Em todo o caso, teremos de ter sempre presente que existem patentes diferenças entre o que se passou na primeira fase desta pandemia e o que estamos presentemente a vivenciar. Enquanto, no início, o grande drama era o facto de não sermos rapidamente capazes de distinguir os doentes suspeitos dos realmente infetados, não dispormos de material de proteção individual ou de ventiladores em quantidade suficiente, tal como de terapêutica específica comprovadamente eficaz, agora, temos indiscutível maior capacidade de diagnóstico e de tratamento, conhecemos melhor a dinâmica epidemiológica da infeção e o acesso à vacina estará, supostamente, mais próximo do que antes. Contudo, alguns constrangimentos se devem acrescentar em desfavor, como sejam o cansaço psicológico do confinamento, a enorme fatura decorrente da anterior suspensão temporária das atividades económicas e alguma falta de coragem política dos responsáveis, evidenciada pela incoerência de certas decisões e pela falta de oportunidade na implementação de outras.

 

V)- A Pandemia

“Independentemente dos avanços da ciência e da medicina, as epidemias mortíferas são mais ameaçadoras do que nunca” (Christian de Dove, bioquímico belga e Prémio Nobel da Medicina, 1917-2013)

Em tempos de perigo, como o que surge como resultado de uma epidemia, muitas facetas trágicas e cruéis da natureza humana são trazidas à tona, assim como muitas outras de coragem e altruísmo” (William Gorgas, Médico e Militar norte-americano, 1854-1920)

Existe uma crise que não é política- uma epidemia de solidão e tristeza- e nós somos completamente incapazes de saber lidar com isso…” (Richard Flanagan, escritor australiano, 1961- )

 

Muitos dos meus colegas foram dizendo (tal como eu próprio), alguns ao longo de uma vida inteira, que depois da grande Pandemia de Gripe Influenza, que tendo tido origem nos EUA (e não em Espanha, como se supôs pelo nome que lhe foi dado) atingiu toda a Humanidade no meio de outros dois eventos políticos de incontornável magnitude, ou seja, a Primeira Guerra Mundial e a Guerra Civil Russa (que levou ao poder os bolcheviques, através da aniquilação do regime czarista), outra de dimensão idêntica haveria de despontar um dia. Igual ou parecida. Com início num país do lote dos considerados mais problemáticos, como no caso do SARS-CoV-1, com ponto de partida na China (tal como o SARS-CoV-2, causa da COVID-19) ou noutro qualquer a que se atribuísse mais baixa probabilidade, como no caso da Gripe Influenza por H1N1 (mais conhecida por Gripe A), com origem no México. Por uma variante de um microrganismo já conhecido, ou por um completamente novo para a ciência e que, entretanto, viesse a ser descoberto. Alguns daqueles visionários morreram sem nunca ver concretizado o seu presságio, embora certamente conscientes que o futuro se encarregaria de lhes vir a dar razão, como me poderia ter acontecido a mim mesmo, se esta pandemia, afinal, nunca tivesse existido.

O mesmo se poderá afirmar hoje. Ainda que estejamos a presenciar uma Pandemia em tempo real, não será difícil profetizar que uma outra se lhe seguirá, não sendo possível determinar, contudo, com segurança, onde irá emergir, quando e qual a sua origem. Mas que isso acontecerá, não há quem hoje tenha a mínima dúvida. Que será de natureza zoonótica (ligada a agentes microbianos com reservatório animal, eventualmente transmitidos por vetores, capazes de ultrapassarem a denominada barreira de espécie), também não deverá deixar de o ser, porque cerca de 75% das doenças infeciosas emergentes registadas no último quartel o são, e, porque, como é patente, tudo isto resulta da conjunção explosiva de vários fenómenos, onde se incluem a sobrepopulação humana e a sua elevada concentração citadina, a desenfreada devastação dos redutos ecológicos mais bem preservados, a par, obviamente, da pecuária superintensiva, das vertiginosas alterações climatéricas provenientes do aumento acentuado da poluição urbana e industrial à escala planetária.

A pandemia da COVID-19, caracterizando-se essencialmente por ser uma doença com uma epidemiologia estreitamente dependente da proximidade humana, faz com que não nos possamos admirar que a ansiada abertura progressiva da sociedade que foi promovida a seguir ao confinamento, conduzisse logicamente ao aumento substancial do número de casos, o que, na perspetiva de poder coincidir temporal e espacialmente com a gripe sazonal, poderá vir a acelerar a saturação dos serviços de saúde e, mesmo, conduzir à eventual rotura global do sistema de saúde, o que seria um cenário terrível, mesmo para uma infeção com um índice não muito elevado de mortalidade intrínseca, mas que tem uma notável capacidade de difusão entre a população.

Contudo, mau grado todos os avanços científicos verificados e que permitiram atingir um nível de conhecimento já muito mais profundo do que o que tínhamos inicialmente, muitas diferenças não têm ainda uma explicação óbvia e sem contestação, tais como os resultados, por exemplo, das taxas comparativas de mortalidade entre os países, embora haja que reconhecer que as metodologias utilizadas não tenham a desejada homogeneidade para uma análise mais fina e conclusiva. O mesmo se podendo dizer, também, acerca de outros candentes índices que importaria considerar, tais como as taxas de transmissão e de internamento hospitalar, uma vez que, por exemplo, os critérios de utilização dos testes de diagnóstico perante os casos suspeitos ou dos contactantes de um caso positivo, têm sido muito diversos. Outras realidades mais complexas a ter em conta, devem ser igualmente ponderadas para a melhor compreensão do fenómeno, como sejam o nível de educação cívica e sanitária dos povos, que é bastante diverso, a capacidade técnica, logística e de meios humanos especializados, quer ao nível dos cuidados primários de saúde e da saúde pública, quer ao nível dos cuidados hospitalares, o mesmo se podendo dizer a respeito da qualidade dos cuidados domiciliários ou institucionais na velhice e na dependência, dado que estes são maioritariamente, como é sabido, aqueles grupos que têm muito mais grave prognóstico.

 

VI)- As duas histórias

O que mais desespera, não é o impossível. Mas o possível não alcançado” (Robert Mallet, historiador inglês, 1961- )

“A esperança seria a maior das forças humanas, se não existisse o desespero” (Victor Hugo, escritor e político francês, 1802-1885)

“Só pela compaixão se pode ser bom” (Joseph Juubert, filósofo francês, 1754-1824)

 

Sem se exemplificar a exposição dos princípios explanados com histórias clínicas que retratem a vida real das pessoas, tudo poderia parecer impessoal e desprovido de sentido, o que é exatamente o oposto daquilo que pretendo transmitir, tal como concebi para o livro “A relação Médico-Doente” de que fui coautor e editor. O exercício da Medicina supõe, sempre, Humanismo, pois é feito por Homens e visa o Ser Humano na sua mais profunda e ampla dimensão.

A forma como a mancha sinistra desta epidemia chegou ao nosso País e nele se disseminou, jamais poderei esquecer, pela relação estreita com alguns outros acontecimentos que passarei a expor. Tinha estado literalmente mergulhado, durante quase dois anos, a liderar um projeto da OM (Ordem dos Médicos), ou seja, a feitura do livro referido no parágrafo anterior, que reuniu mais de oito dezenas de outras personalidades, quase todas do mesmo mister do Pai da Medicina. Fiz a apresentação nacional na Torre do Tombo no dia a seguir a chegar de uma memorável viagem à Jordânia e a Israel, altura em que se pensa que os primeiros casos da infeção se terão iniciado de forma silenciosa(?) na terra de Confúcio.

Cerimónia que se repetiu em Setúbal, precisamente no dia em que o Presidente da República convocou de súbito os principais dirigentes da OM e os seus ex-Bastonários, para discutir alguns problemas candentes do setor da saúde nacional, o que fez com que o meu colega Miguel Guimarães, seu atual Bastonário, tivesse de se ausentar antes que a mesma tivesse terminado, altura em que o número de infetados começava a assumir uma proporção preocupante no norte de Itália. As apresentações de Coimbra e do Porto foram agendadas para daí a três semanas, a primeira para uma sexta-feira e a outra para a segunda-feira seguinte. Perante a eminência do surto poder chegar a Portugal, a Comissão que assessorava o Bastonário da OM (que eu tinha passado a integrar havia pouco tempo) foi convocada para uma reunião de urgência pela Ministra da Saúde, na mesma segunda-feira de manhã, dia em que teria que estar no Porto ao final da tarde, o que me obrigou a fazer este trajeto quatro vezes no espaço de três dias, duas das quais nesse mesmo dia. Aproveitou-se para reunir os elementos do grupo, mas a dita reunião com a Ministra não teve lugar, porque esta quis ocupar essa hora para fazer a declaração solene ao País que os dois primeiros casos haviam sido diagnosticados na véspera, precisamente no Porto, pelo que utilizamos esse tempo para aprovarmos um dos primeiros, de muitos comunicados que a OM tem feito chegar à hierarquia ministerial, muitas vezes, pelo menos aparentemente, em vão.

Lembro-me de estar a ler o meu discurso no auditório da sede da OM no Porto, onde comparecerem alguns dos meus familiares, amigos e colegas e, pensar, em surdina, para comigo mesmo, que certamente se iriam aproximar dias muito difíceis para todos os portugueses e que a minha ideia de aproveitar para descansar um pouco das esgotantes tarefas que rodearam a feitura daquele livro, não se iria concretizar tão cedo. A reunião com a Ministra da Saúde foi convocada de novo para daí a cerca de uma semana, por nova coincidência, para o mesmo dia em que fui investido na função de Coordenador da Comissão de Crise do Hospital onde trabalho há quase quarenta anos, pelo que decidi, não só não comparecer à mesma, mas igualmente pedir escusa da Comissão da OM, pois pensei ser muito mais importante dedicar-me inteiramente a estas novas e irrecusáveis funções, que antevi serem muitíssimo absorventes e incompatíveis com qualquer dispersão de energias, tal como verifiquei ao longo dos dois inesquecíveis meses que se seguiram. Lembro-me de ter dado, nessa mesma tarde, uma das únicas entrevistas a um canal televisivo, das muitas para que me convidaram, na minha própria casa, na qual afirmei, com a voz embargada de emoção: “Estou mesmo convencido que nos arriscamos a que isto venha mesmo a ser terrível”, pois só me vinha á mente o drama diário que via escarrapachado nas reportagens televisivas, onde se mostrava o caos vivido nos hospitais de Itália e de Espanha e que temi poder chegar até nós, como já está presentemente a começar de se aproximar disso, se algo não  fizer rapidamente inverter o atual curso dos acontecimentos.

Entendi que deveria dar o exemplo e voltar a fazer períodos de 24 horas de urgência, pelo que me escalei para o primeiro sábado, após ter sido dado início à constituição das equipas médicas de apoio específico ao atendimento dos doentes que começaram rapidamente a encher a enfermaria de quartos de isolamento respiratório do Hospital e que, no espaço de mais quatro semanas, esgotaram outras duas que lhe eram contíguas. Das múltiplas dificuldades na abordagem clínica inicial que pude constatar de imediato, foi não ter meios para distinguir rapidamente e com segurança, os doentes suspeitos dos que efetivamente estavam infetados por SARS-CoV-2 e ter de aprender a integrar na decisão clínica, testes cujos resultados só chegavam ao fim de 2 a 4 dias e ainda por cima com uma sensibilidade longe do ideal.

Mas, algo de muito mais dilacerante estava ainda para acontecer. Dividi as tarefas dessas 24 horas com o Francisco, um interno do meu Serviço, a quem disse que quem iria observar o doente que entrou pelas 4.00 horas da madrugada, seria eu mesmo. Lá me equipei convenientemente e entrei de seguida, resolutamente, pelo quarto dentro, mal imaginando com o que me iria confrontar. Tratava-se de um homem que rondava os 90 anos de idade. Quando o vi, já deitado na cama e rodeado por toda a parafernália tecnológica própria da moderna medicina para monitorizar as funções vitais de doentes graves e lhe comecei a fazer a história clínica, verifiquei tratar-se da pessoa que ocupava a suite ao lado da que era da minha mãe, na Residência dos Professores em Setúbal, onde a mesma se encontra desde há cerca de dois anos. Este apresentava uma pneumonia bilateral em tudo compatível com o diagnóstico de COVID-19. Pelas 8.00 horas da manhã, decidi telefonar para a colega Guida que exercia as funções de médica generalista nessa unidade, no intuito de a alertar para começar a tomar as providências necessárias e adequadas à “má nova” que lhe transmiti, emocionado e, logicamente, muito preocupado. Constatei, atónito, que a mesma se encontrava febril e com um quadro clínico de tosse seca persistente, também sugestivo da mesma afeção.

Aí, não resisti a pensar no que se iria certamente precipitar muito rapidamente e que, só por um acaso, pouparia a minha própria mãe. Impedido de a visitar há mais de duas semanas, só pensava em ter coragem para respeitar a vontade que sei ter exarado no seu testamento vital que registou atempadamente conforme a lei prevê, antes de deixar a sua casa para ir morar na minha e onde permaneceu dois anos e meio: nada de tratamentos invasivos que lhe aumentassem o sofrimento e não propiciassem a dignidade que pretendia ter nos últimos momentos de vida, pois já tinha ultrapassado uma tuberculose, uma neoplasia e sido submetida a imensos tratamentos e intervenções cirúrgicas, desde a adolescência.

Há muito tempo que me vinha procurando mentalizar que um certo dia teria mesmo que me confrontar com uma má notícia, mas nunca imaginei que fosse nestas circunstâncias. Só esperava que não acontecesse o que se passou com o meu próprio pai e o meu sogro, pois estava de urgência ao Hospital no dia em que ambos faleceram, tal como o descrevi no meu livro “Ode ou Requiem”. Felizmente, o que temia não se verificou, e, mesmo apesar de três enfermeiras da residência terem sido dadas como infetadas por aquele vírus nos dias seguintes, tal não aconteceu, nem ao doente que eu observara, nem à colega da residência, nem tampouco a nenhum dos idosos ali internados, incluindo a minha própria mãe. Até ao momento…

Embora se saiba que o prognóstico das pessoas com mais de 80 anos é, quase sempre, muito mais gravoso do que nas restantes faixas etárias, nem sempre isso acontece, como foi o caso da minha madrinha, mãe de um primo meu, o Tó-Zé, pediatra e professor universitário que, com mais de 90 anos, resistiu como se tivesse sido acometida apenas por uma vulgar constipação, custando-lhe muito mais terem-na transferido da residência, para onde foi morar com o marido muito pouco tempo antes de ficar viúva, há cerca de três anos, para o Hospital Universitário do Porto onde o seu filho era médico e docente, dado nem se ter apercebido bem dos motivos ou sequer percecionar o perigo que correu. Daí que, à semelhança de outros países, se tenha passado a optar, e bem, sempre que possível, em manter estes doentes no seu ambiente, desde que devidamente apoiados e sempre com o respeito pelas medidas de controlo de infeção que evitem a contaminação de outros residentes ou dos profissionais, o que não tem acontecido em muitas ocasiões no nosso País, onde presentemente os surtos se vão sucedendo a uma cadência cada vez mais preocupante.

A outra história é de cariz bem diferente, mas capaz de completar plenamente a anterior, com vista à melhor compreensão das mensagens que pretendo transmitir. Muito recentemente. fui instado telefonicamente por um doente que sigo em ambulatório no meu consultório  há já alguns anos, nas vésperas deste se ausentar para uma deslocação de cariz profissional ao longínquo Paquistão, onde terá de permanecer longas semanas, dizendo-me que tinha ido visitar o seu irmão e queria saber se eu poderia ajudá-lo. Conhecia ambos, pois tinham sido meus colegas no liceu nacional de Setúbal durante o ensino secundário e recordava-me vagamente de até já o ter também observado em consulta há um bom par de anos, embora não soubesse dizer agora exatamente porquê.

Pelo seu tom de voz, percebi que o Jorge estava muito preocupado, mas eu confessei que, apesar de vivermos numa cidade onde muita gente da nossa geração se encontra e troca informações acerca das pessoas que conhecemos, eu nunca ouvira dizer nada acerca da situação clínica do seu irmão. Fiquei a saber que, apesar de ter os bons hábitos de fazer exercício físico regularmente, subindo inclusive a serra da Arrábida de bicicleta com frequência, até ao início do confinamento, estava neste momento imobilizado numa cadeira de rodas, quase sem conseguir sequer mexer os dedos das mãos para comer, teclar o computador ou manusear o telemóvel, pois tinham-lhe diagnosticado uma doença do neurónio motor (ELA- Esclerose Lateral Amiotrófica). Não sendo especialista em Neurologia, disse-lhe que já tinha observado alguns doentes com esta patologia e que conhecia a história de algumas figuras públicas de renome que dela tinham padecido, desde o caso do famosíssimo astrofísico Stephen Hawking, ou do cantautor português, Zeca Afonso, que faleceu na UCI do Hospital de Setúbal, num dia em que estava de serviço à urgência, o que jamais esquecerei.

Predispus-me a ser contactado pelo doente quando este quisesse e, no dia seguinte, lá recebi um email e tivemos seguidamente a primeira conversa telefónica. Tinha uma voz perfeitamente percetível que transmitia um misto de aparente segurança e de serenidade. Queria saber, acima de tudo, se eu poderia obter informações mais precisas a propósito de uns certos tratamentos que tinha sabido estarem em processo de investigação através de uma pesquisa na internet, num site de uma associação internacional de doentes com esta mesma enfermidade. Ao saber que as referidas moléculas tinham origem em Israel e no Japão, imediatamente me servi de alguns contactos conhecidos com vista a esse mesmo esclarecimento e à remota possibilidade do mesmo poder ir ainda a tempo de integrar, eventualmente, um ensaio clínico que existisse. Deu-me o nome do médico neurologista que o tinha passado a seguir no Serviço Universitário de um dos hospitais centrais de Lisboa e eu consegui obter o seu contacto através de colegas em comum, com o objetivo de me inteirar melhor do seu plano de seguimento clínico, bem como para lhe transmitir a informação que a doença avançava a um ritmo vertiginoso, e, ainda, para lhe falar da vontade do doente em poder ter acesso aos alegados tratamento inovadores que lhe fossem capazes de acender, ainda que tenuemente, uma luz de esperança.

O colega Mamede Carvalho, mostrou simpaticamente total abertura para discutir todas essas questões, dizendo-me que se lembrava perfeitamente do doente e da sua filha, uma atleta medalhada. Caracterizou-o de imediato como sendo um homem muito decidido, o que condizia bem com a profissão de engenheiro. Tinha a intenção de lhe agendar uma reavaliação clínica em breve e concluiu aquela curta conversa telefónica, esclarecendo-me que tudo indicava, que o medicamento japonês não representaria, afinal, qualquer avanço significativo relativamente aos fármacos que hoje já dispomos, mas que, quanto ao outro, o cientista israelita que tinha descoberto a dita molécula, tinha ido para os EUA para aprofundar a sua pesquisa e os resultados da fase III iriam ficar publicamente disponíveis daí a sensivelmente um mês, sendo de admitir que viessem a ser encorajadores, no seguimento dos já anteriormente divulgados. Tendo estas informações em consideração, pedi para suspender as iniciativas que estavam a ser desencadeadas pelos primos José e Jorge Beatriz que se haviam tornado imediatamente disponíveis para a missão de interceder junto de amigos seus no Império do Sol Nascente.

Foi precisamente isso que transmiti pessoalmente ao Fernando no fim de semana seguinte quando, por mera coincidência, tinha aceite um convite de um simpático casal, a Manuela e o Rui, seus vizinhos, para ir almoçar, na companhia da minha esposa, também médica, de outra colega, a Maria José, bem como do Frei Miguel, com quem tínhamos ido, em Novembro do ano anterior a uma viagem a Israel (que referi anteriormente) e, a quem eu havia também pedido, dadas as suas profundas ligações a confrades desse país, que intercedesse, pelos meios possíveis, com vista a corresponder ao apelo que recebi, em relação ao outro medicamento eventualmente mais promissor.

Essa conversa, que decorreu após o almoço e antes de ir visitar a minha mãe, em casa dos seus vizinhos, deu para confirmar o que já tinha intuído. Estava perfeitamente consciente da gravidade da sua situação, do prognóstico e dizia dispor-se, acaso fosse necessário, a meter-se num avião e a ir diretamente ao centro coordenador dos estudos nos EUA, para oferecer-se como voluntário, se o aceitassem como tal. Por fim, lamentou-se, logicamente um pouco desiludido, pelo facto do email que lhes tinha remetido na semana anterior, não tivesse tido qualquer resposta até aquele dia. A contemplar o rio, pela janela do andar situado no último piso de um prédio situado junto à avenida marginal da cidade, de frente para a península de Troia, rematou, resolutamente, a terminar a conversa: irei enquanto o posso fazer, pois não haverá muito mais tempo útil a perder. Talvez que aquela magnífica paisagem lhe tivesse incutido a necessária coragem e esperança para continuar a resistir e a lutar, pensei.

Sempre que tenho este género de conversas com doentes com este tipo de prognóstico, por padecerem de doenças evolutivas, mas que poupam a consciência e a lucidez, acabo sempre por concluir que o temos que fazer sem reservas ou sem clichés previamente estabelecidos, deixando fluir espontaneamente o discurso, valorizando a importância da linguagem gestual, do olhar, do tom de voz e da tranquilidade do ambiente circundante. Nunca fugirmos ao âmago das questões, jamais tratando o doente como se fosse um ignorante. Sabermos transmitir a verdade, o que supõe o conhecimento da sua personalidade e a capacidade de nos darmos a conhecer também como pessoas. Sabermos reconhecer abertamente o que não sabemos e dispormo-nos a pedir pareceres a colegas mais sabedores e experientes. Respeitar as suas vontades e os seus valores, mas sendo simultaneamente firmes e cautelosos a desmontar a teia de ideias desprovidas de qualquer base científica, porém, sem nunca retirarmos a última réstia de esperança. Algo que se aprende com a experiência, com o diálogo com os nossos mestres e com os próprios doentes, seus familiares e amigos, tal como com a vital reflexão constante acerca da nossa própria práxis profissional e dos seus fundamentos, escrevendo, lendo, analisando e discutindo. Diria, em suma, que a verdadeira Medicina, ou é isto, ou não é nada daquilo que a veneranda tradição, que remonta a Hipócrates, nos foi sendo transmitida ao longo dos séculos.

Terminei, acrescentando que o viria visitar daí a uns dias, depois da sua próxima consulta de neurologia e de falar com o seu médico assistente, com o intuito de lhe mostrar este mesmo texto, que estava nessa altura a começar de escrever, o que o surpreendeu, mas que agradeceu silenciosamente através de uma apelativa troca de olhares.

Todos (políticos, cidadãos, doentes e profissionais de saúde) vivemos muito legitimamente preocupados com os efeitos desta horrível pandemia, mas importa manter a lucidez e a o espírito de solidariedade suficientes para não desprezarmos as profundas consequências sobre a saúde mental que esta epidemia está a produzir em todos, embora de forma especial nos idosos que estão fechados há longos meses nas mais diversas instituições. Tal como para não deixarmos sem acompanhamento clínico os restantes doentes com todas as outras patologias, sendo decisivo que a investigação científica não fique suspensa, preservando o acesso atempado à inovação terapêutica, sobretudo para as doenças que não têm, ainda, um tratamento aceitavelmente eficaz, onde se inclui, logicamente, a próprio COVID-19, e que devem ser disponibilizadas a preço comportáveis pela riqueza disponível das diversas nações, no intuito de não deixar ninguém para trás.

 

VII)- Missivas e comemorações virtuais

Um homem que sofre antes de ser necessário sofre mais do que o necessário” (Séneca, filósofo romano, 4 AC – 65 DC)

O silêncio é a mais perfeita expressão do desdém” (George Bernard Shaw, escritor irlandês, 1956-1950)

É urgente acabar com a hipocrisia do mundo moderno e regressar à sinceridade grega: ser conviva dum banquete universal e fazer por pensar bem durante ele” (Miguel Torga, médico e escritor português, 1907-1995)

 

Sobre a presente pandemia, várias personalidades da cultura têm refletido e escrito, das quais destacaria as seguintes: Paolo Giordano, um doutorado em física e escritor, que defende a tese que o seu impacto mais negativo situa-se ao nível das relações afetivas, Bernard-Henry Levy, um filósofo e pensador, que argumenta que é necessário acreditar que a vida dita “normal” irá voltar a ser aquilo que era dantes, pois tal é indispensável à preservação da dignidade do cidadão comum na dita “civilização ocidental”, Slavoj Zizek, um psicanalista e docente esloveno, que antecipa que as consequências dos efeitos (e das causas…) da mesma, só poderão encontrar resposta através de edificação de uma nova e “utópica” sociedade “comunitarista”, enquanto Byung-Chul Han, um filósofo coreano, nos adverte contra o lado perigosamente desumano de uma sociedade sem sofrimento. Escreveu ele: “quanto mais a vida é uma sobrevivência mais medo se tem da morte… O prazer também tem de recuar perante a sobrevivência. Em nome da sobrevivência, sacrificamos tudo o que dá valor à vida. A morte domina completamente a vida e esvazia-a em nome da sobrevivência. A vida é despojada de qualquer narrativa com sentido. Ela deixa de ser narratível e passa a ser mensurável. A vida fica nua e mesmo obscena. A vida e a morte associam-se numa permuta simbólica. Hoje, é particularmente difícil morrer, pois já não é possível terminar a vida de uma forma significativa. Ela termina de forma intempestiva. Envelhecemos sem nos tornarmos velhos. Perante a pandemia não se dá simplesmente prioridade à saúde sobre a economia. A própria economia do crescimento e do desempenho é importante para a sobrevivência. Estamos demasiado vivos para morrer e demasiado mortos para viver. Na preocupação excessiva da sobrevivência, assemelhamo-nos ao vírus, este morto-vivo que só se reproduz, ou seja, que só sobrevive sem viver. O vírus é um terror vindo do ar. Todos são suspeitos de serem potenciais portadores do vírus, o que provoca uma sociedade de quarentena e terá como consequência um regime de vigilância biopolítica. A pandemia não oferece perspetiva de outro modo de vida. Na guerra contra o vírus, a vida é mais do que nunca uma sobrevivência. A histeria da sobrevivência intensifica-se e torna-se viral. Irá impor-se o reconhecimento de que na luta contra a pandemia é imprescindível centrar a atenção no indivíduo. Quem quer eliminar toda a dor também terá de abolir a morte. Mas a vida sem morte não é uma vida humana. O homem anula-se a si mesmo para sobreviver. Talvez venha a alcançar a imortalidade, mas à custa da vida. Sem dor pelo outro, não temos acesso à dor do outro”.

A leitura de alguns escritos de outros dois filósofos, poderão igualmente ajudar a compreender melhor toda a complexidade das implicações para o presente e para o futuro deste fenómeno transversal a toda a Humanidade, dos quais destacaria Hannah Arendt e Edgar Morin. A primeira, chama-nos pungentemente a atenção para alguns aspetos vivenciais de candente importância, como sejam os do envelhecimento e da imortalidade. Escreveu ela: “recentemente, a ciência tem-se esforçado por tornar “artificial” a própria vida, por cortar o último laço que faz do Homem um filho da natureza… talvez o desejo de fugir à condição humana esteja presente na esperança de prolongar a vida humana para além do limite dos 100 anos… este homem futuro, parece motivado por uma rebelião contra a existência humana tal qual nos foi dada- um dom gratuito vindo do nada… que ele deseja trocar, por assim dizer, por algo produzido por ele mesmo. A questão é apenas a de saber se desejamos usar nessa direção o nosso conhecimento científico e técnico- e esta questão não pode ser resolvida por meios científicos: é uma questão política de primeira grandeza, e, portanto, não deve ser decidida por cientistas profissionais ou por políticos profissionais”. Quanto ao segundo, destacaria a sua profunda análise acerca da morte, quiçá o enigma que mais tem perseguido o Homem desde os primórdios da civilização. Escreveu ele: “é impossível conhecer o Homem sem lhe estudar a morte, porque talvez mais do que na vida, é na morte que o homem se revela. O caminho da morte deve levar-nos mais fundo na vida, como o caminho da vida deve levar-nos mais fundo na morte. Para lutar contra a morte, a vida necessita de a integrar no mais íntimo de si mesma. A nova aventura não consiste em assegurarmo-nos da propriedade do planeta Terra, do seu subúrbio Lua ou até do sistema solar e de um talhão galáctico, mas sim, impelidos pelo amor e pela curiosidade, nos dedicarmos à itinerância pelos aléns, entregues ao acaso, à incerteza e à morte”.

Contudo, independentemente destas e de outras oportunas e interpelantes reflexões, a verdade quotidianamente sentida por cada um dos cidadãos dos diferentes países, é que se registou uma notória variação da perceção e das consequências da pandemia, conforme a valorização de um conjunto muito diverso e complexo de fatores, cujo peso foi oscilando muito ao longo do tempo, durante o qual esta crise sanitária e social se foi arrastando. A forma como decorreu a conceção e a implementação das políticas de saúde e os seus respetivos resultados, tal como as previsões quanto à dinâmica epidemiológica, também foram bastante heterogenias, não havendo, por ora, para todas as diferenças encontradas, uma explicação muito evidente. No que concerne à realidade portuguesa e de forma resumida, entendo ser oportuno transmitir as seguintes missivas a quem de direito, segundo a minha perspetiva pessoal, fruto de uma vivência muito próxima que tenho tido, tendo em consideração a minha área de especialização e as funções que desempenho, no intuito de ajudar à causa de melhor conciliar as respostas às crises social e sanitária, ou seja, da economia com a saúde, e, assim, salvar(mos) o SNS:

  • É iminentemente decisivo melhorar a capacidade didática de comunicação do Ministério da Saúde com os cidadãos e a sociedade em geral, porque despejar diariamente números e estatísticas não é manifestamente suficiente, dado ser vital levar a bom porto a estratégia de responsabilidade individual e de priorizar a defesa do contágio às populações mais vulneráveis. Há que usar o bom senso e a inteligência inata, sem esperar que tudo tenha que ser inequivocamente demonstrado, para só depois se fazerem recomendações. Se se trata de uma doença em que a possibilidade de transmissão está diretamente ligada à concentração humana, não se compreende ter sido posto em dúvida que haveria um sério problema potencial, por exemplo, com a utilização dos transportes públicos ou de se ter desprezado a utilidade do uso generalizado de máscaras, tanto mais que existem fundadas dúvidas acerca da eficácia de alguns tratamentos que estão a ser utilizados, tal como da possível valia das vacinas que tanto almejamos poder vir a ter a curto prazo;
  • Importa sobremaneira reconhecer que ninguém é capaz de aceitar ou compreender a importância decisiva de estar “obrigado” a adotar determinados comportamentos que trazem alguma incomodidade ao próprio, mas que são aceites em função da perceção do superior interesse do bem coletivo, quando os critérios das decisões imanadas superiormente não têm tido, nalgumas circunstâncias, a necessária e imprescindível coerência, o que só descredibiliza os seus responsáveis;
  • Importaria, e muito, do ponto de vista da ética e da deontologia profissional, promover a elaboração de uma norma nacional o mais consensual possível, que dê orientações concretas aos profissionais de saúde e que seja do amplo conhecimento da população, no que concerne à tomada das decisões clínicas de particular melindre, quando os médicos se depararem com um cenário de incapacidade absoluta de atender adequadamente todos os doentes. Salvar os primeiros que chegam ou preterir os mais débeis, é o dilacerante dilema em questão. Sem esquecer, também, a eterna dúvida de se saber qual o peso a atribuir ao fator idade nessa angustiante decisão;
  • Não se pense que o teletrabalho e a telemedicina são mais do que um meio possível, embora meramente transitório, atendendo ao atual contexto pandémico muito particular, pois jamais serão capazes de resolver, a longo prazo, a maioria das disfuncionalidades relativas à missão das profissões ligadas à saúde e que prestam cuidados clínicos diretos, porque o contacto humano é algo de insubstituível, uma vez que só através dele se pode exercer o ato médico com toda a sua plena humanização;
  • Não é jamais possível ou adequado tentar que continue a ser o SNS o único a ter de responder a todo este conjunto magnânimo de problemas. As consequências, para os doentes, para os profissionais (já em acentuado estado de burnout) e para o próprio sistema globalmente considerado, poderão vir a ser devastadoras a curto prazo, se não se operacionalizar rapidamente um plano de cooperação que conte com todos os outros setores que prestam cuidados de saúde às populações em regime de complementaridade. Assim, o SNS (Sistema Nacional de Saúde) dever-se-á fundir na ação contra este inimigo comum, transitoriamente, com o outro SNS (Serviço Nacional de Saúde), ou vice-versa;
  • Pretender admitir que a resposta ao nível hospitalar se poderá continuar fazer sem o sacrifício da atividade dita programada, sobretudo a do foro cirúrgico, é perseguir uma falsa quimera que só pode vir a esbarrar naquilo que a força das circunstâncias irá certamente determinar em breve;
  • Tem de se reconhecer, factual e honestamente falando, que atender em simultâneo, no atual contexto, todos os doentes COVID e não COVID, dedicando a cada um deles o tempo que os mesmos necessitam e merecem, é uma verdadeira impossibilidade, sobretudo ao nível dos cuidados primários de saúde e no domínio da saúde pública, com os escassos recursos humanos e logísticos atualmente existentes;
  • É absolutamente premente operacionalizar a centralização de uma estrutura que faça a gestão das camas hospitalares, sobretudo ao nível dos cuidados intensivos, para cada hospital saber para onde poderá transferir os doentes que excederem a sua capacidade de resposta, como perigosamente acontece com frequência crescente;
  • O SNS está muito depauperado em termos de meios humanos, os quadros médicos estão muito envelhecidos, existe uma grande falta de outros profissionais (enfermeiros, secretariado clínico, técnicos superiores especializados, farmacêuticos, psicólogos, assistentes sociais, nutricionistas, fisioterapeutas, auxiliares de ação médica, etc.). Algumas especialidades atingiram níveis mais do que preocupantes de exiguidade de médicos especialistas (anestesiologia, medicina intensiva, anatomia patológica, microbiologia clínica, imagiologia, obstetrícia, infeciologia, etc.) o que trará a muito curto prazo dificuldades inultrapassáveis de gestão clínica em muitos hospitais e dificultará muitíssimo a qualidade da formação das novas gerações de médicos;
  • As instalações e o parque tecnológico, em muitos casos, estão obscenamente degradados e desatualizados. Existem muitos exemplos deste enorme atraso do País, que passam pela exiguidade das camas em geral e sobretudo das que servem para o tratamento adequado do doente crítico, pela avassaladora precarização na constituição das equipas de urgência em várias especialidades de muitos dos hospitais púbicos, ou pela existência de alguns Serviços que possuem apenas um médico no quadro permanente, fazendo deste um diretor de si mesmo, etc. Constata-se uma enorme carência nos domínios dos cuidados paliativos, cuidados continuados e cuidados de reabilitação, que dificultam até ao limite do absurdo as altas hospitalares dos doentes, a sua qualidade de vida e a respetiva capacidade de recuperação. Para exemplificar estas magnânimas disfuncionalidades, basta ver a dificuldade de separar os circuitos de doentes supostamente infetados dos que se pensa não o estarem, que obriga a ter de internar na mesma enfermaria, muitas vezes, os doentes infetados por SARS CoV-2 com os portadores do bacilo da Tuberculose, sem esquecer as intermináveis filas à porta de alguns Centros de Saúde, das Consulta Externas dos Hospitais ou dos laboratórios de análises clínicas, ou a extrema dificuldade em ter acesso à vacina da gripe;
  • Só através de uma política séria de criação de estímulos de atratividade, aos níveis salarial, de progressão das carreiras, da proteção na saúde através da integração num seguro público (ADSE, ou equivalente) e da reconversão tecnológica capaz de propiciar uma sensação de realização profissional plena, o caminho para um inexorável declínio se poderá inverter ao nível do SNS, e evitar os fenómenos, cada vez mais generalizados e prejudiciais, do multiemprego e dos horários parciais. Atente-se à recente dificuldade de constituir equipas pluridisciplinar para acorrer aos surtos da COVID-19 em Lares, pois eram para ser compostas também por médicos, acabando por sê-lo apenas com outros profissionais de saúde;
  • Se não se criarem condições de confiança efetiva nas intenções anunciadas e nas políticas implementadas, cada vez mais profissionais e doentes irão procurar outras alternativas fora da esfera do SNS isoladamente considerado. É, assim, inadmissível que estes sejam desconsiderados num momento tão melindroso como este, naquilo que concerne à sua respeitabilidade pessoal e profissional, como foi patente naquilo que o Primeiro Ministro disse em “off” a um grande órgão de comunicação social a propósito dos médicos, ou ao que estará subjacente ao que a atual Ministra da Saúde afirmou publicamente a propósito do previsto reforço de verbas para o setor da saúde no Orçamento de Estado do próximo ano e que está a ser agora discutido no Parlamento, quando disse que “chegou a hora do SNS provar que merece esse investimento”. É bom que não restem quaisquer dúvidas a ninguém, que os médicos e os restantes profissionais de saúde sempre mostraram, e designadamente durante a presente pandemia, que sabem sacrificar-se imenso a favor da superior missão de bem tratar os doentes, mesmo sem terem as condições logísticas que deveriam ter e que o poder político se deveria responsabilizar em propiciar. Os elogios que muitas vezes nos fazem, não poderão, pois, ser palavras vãs de circunstância apenas.

 

Comecei a escrever este texto em 11 de outubro de 2020, dia do nonagésimo aniversário da minha mãe e terminei-o no dia em que fui fazer a segunda visita ao Fernando, o que coincidiu com a data, 1 de novembro, em que decorreu, há 265 anos, o maior cataclismo natural jamais registado na Europa que, para além de Lisboa, também destruiu grande parte da cidade de Setúbal. O fenómeno que vivemos agora, sendo bem diferente em vários domínios, não deixa também de ser devastador, como se depreende daquilo que tenho vindo a expor e é sentido por todos os cidadãos mais atentos e conscientes.

A primeira visita ao Fernando foi muito mais intimista do que a segunda, dado que, nesta, estava acompanhado quando lá estive. Disse-me que iria a nova consulta no dia seguinte para começar a fazer ventilação não invasiva na sua própria casa. Tinha consciência que não aguentaria por muito mais tempo respirar sem se cansar, em especial durante a noite. Transmitiu-me que tinha passado a ter também muito mais dificuldade nalguns gestos que antes nem sequer valorizava e para os quais o constrangia pedir ajuda dos conviventes. Continuava, contudo, com uma enorme esperança na nova terapêutica e deu nota de alguma perplexidade, com um olhar interrogativo, por ter sido informado que, nalguns casos de que vai tomando conhecimento, a doença parece ter alturas em que a involução das capacidades motoras parece ficar suspensa por algum tempo. Intui que que queria acreditar que o mesmo se poderia vir a passar com ele mesmo. Respondi-lhe, como o já fiz muitas vezes a outros doentes para tentar esclarecê-los acerca destas aparentes e enigmáticas incongruências, que uma mesma doença em doentes diferentes, é uma doença diferente e que a ciência não consegue, ainda, explicar tudo. Acrescentei que, não sendo suficiente, o facto de alguém ter uma postura positiva perante um qualquer problema grave de saúde, era muitíssimo importante e, poderia, nalguns doentes e em certas ocasiões, fazer a diferença. Antes de me despedir, perguntou-me onde iria publicar este texto. Respondi-lhe que ainda não sabia, nem isso era o mais importante neste preciso momento, mas que ainda nessa noite lhe enviaria a versão definitiva, no intuito de renovar a sua aprovação.

Escrever, para mim, começa por ser sempre uma atividade solitária e introspetiva, e só depois é que penso em partilhar o que escrevo com alguém. Como disse ao meu colega que trata o Fernando, se outro propósito este texto não conseguir ter, ajudá-lo a resistir melhor a este terrível mal, já terá valido a pena. Por último, disse-lhe que teria muita dificuldade em retornar a visitá-lo nos próximos tempos, pois existia a possibilidade de voltar a estar inteiramente dedicado à Comissão de Crise do CHS, durante cerca de dois meses, por causa do súbito e enorme agravamento da presente situação pandémica.

Por nova coincidência, no já referido dia do aniversário da minha mãe, uns escassos segundos a seguir ao entrar no meu escritório, vindo do consultório e depois ter jantado com a minha esposa e de ter colocado um CD para relaxar ao som de música, ao abrir o computador para começar a trabalhar, como o faço todos os serões, na imensidão de emails que diariamente recebo, reparei na newsletter que a firma de vinhos Poças Júnior me tinha remetido. Impelido, de imediato, subconscientemente, pelo facto de não ter conseguido, pela primeira vez, celebrar o seu aniversário, junto dela e do meu irmão Jorge Manuel, que havia comemorado o seu na véspera, reenderecei este mesmo email para alguns familiares e amigos, deste e do outro lado do Atlântico, comentando em inglês: “tenho muito orgulho na minha família e estão todos convidados para virem celebrar, em minha casa, com o vinho que está destacado no folheto informativo anexo (um “Poças Fora de Série”), o fim da COVID-19”. As respostas foram prontas, quer do EUA, quer do Brasil, quer do meu primo Manuel, ex-gerente da referida firma (hoje sob a responsabilidade da nova geração), fundada pelo meu Tio-Avô, também Manoel de seu nome. Iniciativa que nem imagino não levar a cabo e que, estou convicto, realizarei, não sei bem quando, mas que será certamente inesquecível para todos, não tenho a mínima dúvida. É, para mim, imperioso acreditar nisso, pois o genuíno gosto pela celebração da vida e da amizade é o que me faz gostar de ser médico e anfitrião. Porque isso ajuda os outros, tanto quanto a mim mesmo, sobretudo em tempos de tão chocante e amarga frieza afetiva.

 

VIII)- Dedicatórias

O homem superior é o que permanece sempre fiel à esperança” (Eurípides, poeta grego, 480 AC – 406 AC)

Este tempo que nos é dado escapa-se-nos de forma veloz e rápida que a maioria já chegou ao fim quando finalmente estaria preparada para viver” (Séneca, escritor romano, 4 AC – 65 DC)

O amor é o único assunto. Na vida humana tudo é acerca do amor ou da sua ausência” (Salman Rushdie, escritor indiano, 1947 – )

 

Dedico, então, este texto, às seguintes pessoas:

Ao Manuel Pintão, herdeiro de uma centenária tradição familiar que se mantém conforme o seu fundador imaginou, e, através dele, a todos os empresários que estão a atravessar enormes e inesperadas dificuldades, mas que não perderam a noção do enorme valor da missão social das suas empresas, porque criar e distribuir riqueza é uma das funções mais nobres que se pode desempenhar em Sociedade. Foi com um Porto Poças que as cerimónias de apresentação do livro “A Relação Médico-Doente” foi brindada em Coimbra e no Porto e não por mero acaso;

Ao Paul Alan Smith (empresário da indústria do cinema em Hollywood, que conheci há cerca de quarenta anos numa carruagem de comboio, quando fizemos a viagem entre Budapeste e Viena de Áustria, que já me visitou várias vezes e que me recebeu, bem como à minha esposa e aos meus filhos ainda pequenos, na sua casa de Beverly Hills, aquando da primeira de muitas viagens que já fiz aos EUA); ao casal Tom e Kathy Drooger (como lhes chamo, os “pais americanos” dos meus filhos Joana e João, pois acolheram-nos com verdadeiro amor paternal, quando ambos estudaram na terra do Tio Sam, com quem já fiz várias viagens em Portugal, e que a atual pandemia impediu de poder ter o enorme gosto de lhes ir servir de cicerone a uma viagem que tínhamos programado em Junho deste ano ao Algonquin National Park, situado na província  de Ontário, no Canadá, onde já estivera há um bom par de anos); e ao casal Osvaldo e Rita (colegas de profissão, que tiraram o seu curso em Portugal e que retornaram depois deste terminado, para desenvolver o seu projeto de vida profissional e familiar na terra natal de ambos, com quem já fiz também várias viagens no Brasil, me visitam sempre que vêm a Portugal e que são os melhores anfitriões com quem já pude conviver), porque, ter verdadeiros amigos, nos conturbados tempos que correm, é vital para conseguirmos resistir a esta avassaladora provação que a todos atingiu;

Ao Fernando, pela enorme dignidade e resiliência com que encarou o infortúnio que o atingiu de rompante, e, através dele, a todos os doentes que padecem de doenças crónicas degenerativas de carácter evolutivo e que anseiam, sem desistir, que a ciência descubra um tratamento eficaz, para poderem retomar os seus naturais projetos de vida;

Aos colegas Francisco Vale, Guida Rolita e Mamede Carvalho, e através deles, a todos os médicos e restantes profissionais de saúde que, muitas vezes com risco da própria vida, sem olhar ao seu direito ao descanso, aceitaram trabalhar horas atrás de infindas horas consecutivas sob grande stress emocional e físico, muitas vezes afastando-se preventiva e temporariamente da sua própria família, no intuito de darem o seu contributo incondicional para o bem estar de todos os doentes, sendo assim merecedores de tudo, menos de elogios cínicos ou de soezes insultos;

À minha madrinha Dulce, e através dela, a todos os que, pela idade avançada ou pela dependência, vivem em instituições onde estão impedidos de manterem os laços afetivos vitais à humanização dos últimos anos de vida, cuja dignidade nunca poderá ser posta em causa, numa sociedade que se autointitula de solidária, e, muito em especial, para as vítimas desta infeção, quer os que sobreviveram, quer os que não resistiram aos seus nefastos efeitos;

Finalmente, à minha querida Mãe, Lucília de seu nome, pela forma exemplar com que resistiu, ao ver frustrada, pelo seu pai, uma eventual carreira artística fulgurante nos palcos dos teatros da capital, pelo modo como soube encarar, sucessivamente, o extremo isolamento com que viveu os primeiros anos depois do casamento, a infinidade de doenças que a assaltaram ao longo dos anos, a viuvez precoce que lhe amputou a companhia que hoje ainda poderia desfrutar, o afastamento da sua casa onde ainda conseguiu gozar, durante alguns anos, a independência com que sempre sonhou e que, agora, em vez de receber a minha visita, na qual se deliciava com os jornais que religiosamente lhe levava diariamente, ao ver-se privada de tudo, menos das suas remotas memórias, me tenta confortar ao telefone, exclamando com voz doce: “oh meu querido filho, não te incomodes a perder tempo com telefonemas ou com visitas a cada duas semanas. Dá muitos beijinhos à Anita” (diminutivo com que carinhosamente trata a minha esposa). Noutras ocasiões, exclama: “Então já chegaste”, habituada que estava às minhas viagens de férias no estrangeiro, pois interpreta as minhas longas ausências dessa forma. Ao que respondo, com o coração apertado: “Não, minha mãe, existe por aí uma doença causada por um vírus e eu agora tenho é que tratar dos doentes”. Até quando durará tudo isto, pergunto? Quando poderei (emos) finalmente fazer o prometido brinde, questiono-me? O que é que sobrará daquilo que conhecíamos até há um ano atrás apenas? Como será a vida depois disto? E o exercício da medicina?

 

IX)- Bibliografia Consultada

Sejam quais forem os resultados com êxito ou não, o importante é que no final cada um possa dizer: Fiz o que pude” (Louis Pasteur, bioquímico e microbiologista francês, 1822-1895)

 “Como é possível esperar que a humanidade ouça conselhos, se nem sequer ouve advertências” (Jonathan Swift, escritor e político irlandês, 1607-1745)

A presença do perigo confere génio ao homem sensato” (Stendhal, escritor francês, 1783-1842)

 

  1. Arendt H. A condição humana. Lisboa. Relógio de Água. 2001
  2. Giordano P. Frente ao contágio. Lisboa. Relógio de Água. 2020
  3. Han B-C. A sociedade paliativa. Lisboa. Relógio de Água. 2020
  4. Kucharski A. As leis do contágio. Porto. Porto Editora. 2020
  5. Levy BH. Este vírus que nos enlouquece. Lisboa. Guerra e Paz. 2020
  6. Morin E. Ciência com consciência. Lisboa. Publicações Europa-América. 1994
  7. Morin E. O Homem e a Morte. Lisboa. Publicações Europa América. 1975
  8. “A Relação Médico-Doente”. Lisboa. ByTheBook, 2019
  9. Pinto JN. Contágios- 2500 anos de pestes. Lisboa. D. Quixote. 2020
  10. Poças J. “Ode ou Requem”, Lisboa. ByTheBook. 2018
  11. Quammen D. Contágio- Uma história dos vírus que estão a mudar o mundo. Lisboa. Objetiva. 2020
  12. Zizek S. A pandemia que abalou o mundo. Lisboa. Relógio de Água. 2020

 

Nota Final:

Os nomes das pessoas citadas são verdadeiros e todos autorizaram a sua inclusão neste texto.

2020/11/01

José MD Poças