Autor: Gonçalo Melo, Especialista em Medicina Geral e Familiar com a Competência em Gestão de Unidades de Saúde
TÃtulo: Revigorar a Medicina Geral e Familiar
A Medicina Geral e Familiar está amplamente reconhecida e estabelecida como uma especialidade médica diferenciada, desde a década de 80 do século passado.
A sociedade, e como tal os utentes, tem-se, contudo, modificado. A visão paternalista da Medicina neste momento é irrealista: o utente assume cada vez mais um papel ativo e responsável pela sua saúde, sendo o médico de famÃlia portador de informação cientÃfica e a decisão terapêutica baseando-se num acordo informado e esclarecido entre médico e doente. Tal como a disciplina da Medicina Geral e Familiar deve evoluir, também os sistemas de saúde devem acompanhar essa evolução. Nessa ótica surgiram as Unidades de Saúde Familiar (USF) que vieram permitir maior efetividade de cuidados e consequentemente maior satisfação de utentes, mas também de profissionais.
Neste momento, existem grandes diferenças entre o modelo organizativo das USF e o modelo clássico que ainda vigora. Antes de repensar modelos, haverá que garantir um mÃnimo de uniformidade e homogeneização entre ambos os modelos organizacionais por forma a manter a equidade quer na prestação de cuidados, quer na valorização dos médicos de famÃlia.
A qualidade na prestação dos cuidados à população deverá ser o primum movens da atividade do médico de famÃlia. Tal desÃgnio só será possÃvel dando tempo ao utente e aos profissionais para que os cuidados prestados estejam de acordo com as leges artis. E tal só será possÃvel, se em primeiro lugar, forem respeitadas as normas internacionalmente definidas para a prática do exercÃcio da Medicina Geral e Familiar, conforme definida pela Organização Mundial de Médicos de FamÃlia (WONCA), que defende a constituição de listas de utentes, em média, com dimensão de 1500 indivÃduos, o que permitirá superar continuamente a qualidade dos serviços prestados sem acarretar a exaustão dos profissionais, com trabalho extraordinário que nem sequer é reconhecido como tal pela tutela.
Um médico de famÃlia tem uma lista de utentes, inscritos por processo familiar, e adquiriu competências especÃficas não só para a gestão clÃnica dos problemas de saúde dos seus utentes, mas também para a gestão dos restantes determinantes da saúde numa perspetiva holÃstica. Foi para isso que foi formado e é isso que ele quer poder fazer como especialista no SNS.
Os médicos de famÃlia querem ser responsabilizados por se organizarem por forma a darem assistência à população inscrita nas respetivas Unidades Funcionais onde exercem as suas funções durante o horário de funcionamento destas e responsabilizando-se, solidariamente, por garantir o cumprimento das obrigações dos demais elementos da equipa durante os perÃodos de ausência programada e nos perÃodos de ausência não programada, desde que estes últimos sejam por tempo limitado e referente a atividades imprescindÃveis.
Os médicos de famÃlia estão inclusivamente dispostos a serem aliciados a aumentarem o número de utentes nas suas listas até ao limite legalmente previsto, como aliás já acontece com a grande maioria dos colegas, sem qualquer tipo de reconhecimento, desde que lhes sejam facultadas condições que permitam fazê-lo. E isso é incompatÃvel com o exaurir dos médicos de famÃlia com atividades a utentes sem equipa de saúde familiar ou em atendimento em horas extraordinárias infindáveis, fruto de uma ausência total de planificação a nÃvel de recursos humanos, da qual são completamente alheios.
Os utentes sem Médico de FamÃlia são responsabilidade das ARS, da ACSS e do Governo. Criem condições atrativas para manter os recém-especialistas no SNS. Não imponham mais sobrecarga nos médicos de famÃlia que já se encontram no terreno, exaustos.
A tipologia de resposta à procura de cuidados não urgentes fora do horário de funcionamento das UCSP e USF é também responsabilidade dos atores polÃticos. Numa época de digitalização de serviços, os mesmos não podem ser criados, inovando assim a resposta em saúde, fomentando a literacia em saúde e empoderando os utentes na autogestão do seu estado de saúde? E quais as situações não urgentes que não podem aguardar 48h por uma avaliação presencial? Se não podem, certamente é porque serão urgentes e necessitarão de acesso a outros nÃveis de prestação de cuidados. Também os médicos contratados no âmbito de prestação de serviços por empresas externas, normalmente, não especialistas, poderiam ser deslocalizados dos serviços de urgência hospitalar para os serviços de atendimento a situações agudas nos cuidados de saúde primários, o que estaria mais conforme ao seu grau de diferenciação técnica e profissional. Prevenia-se a exaustão dos médicos de famÃlia, recentrava-se a sal ação naquilo que gostam e estão habilitados a fazer, e provavelmente assistir-se-ia a uma redução da despesa, não só através da diminuição do valor do pagamento de horas extraordinárias aos médicos de famÃlia, assim como a uma deslocalização dos utentes dos serviços de urgência hospitalar, tendencialmente mais onerosos.
Apostem na formação através da aplicação efetiva e atempada dos Incentivos Institucionais nas UCSP e USF que os merecem, discriminando positivamente.
Valorizem a qualidade em detrimento da quantidade. Atualmente, a contratualização das Unidades Funcionais propõe limites máximos à s atividades assistenciais nos ACeS oito vezes superiores aos dedicados a atividades de governação clÃnica!
Melhorem as condições fÃsicas de funcionamento de todas as Unidades Funcionais por forma a garantir a dignidade e a minimização de riscos fÃsicos e psÃquicos de profissionais e utentes. Neste âmbito, bastará seguir o guião que o próprio Ministério da Saúde produziu, cabendo-lhe a responsabilidade na garantia de que todas essas condições estão asseguradas, o que não tem sido feito com a rapidez e amplitude devidas.
Valorizem e uniformizem o pagamento de suplementos remuneratórios aos médicos de famÃlia, remunerando todos os médicos de famÃlia, independentemente do modelo de prestação de cuidados em que se encontrem inseridos, pelos aumentos de utentes nas respetivas listas e pelas atividades especÃficas efetuadas, o que provavelmente reteria médicos de famÃlia recém-especialistas.
Está perfeitamente comprovado que a exaustão dos profissionais condiciona a sua capacidade empática comprometendo a sua atuação e a relação terapêutica com o seu doente. Não podemos permitir que tal aconteça.
O SNS terá que proporcionar condições de trabalho atrativas para que possa cada vez mais ser a opção dos médicos de famÃlia recém-especialistas, o que contribuirá, a prazo, para a atribuição de um Médico de FamÃlia a cada português, com prestação de cuidados de saúde efetivos e de qualidade e satisfação de profissionais, utentes e gestores.
Chega de tapar buracos que outros criaram por incúria.