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Questões de ética e deontologia médica, em véspera da votação dos 5 projetos de lei sobre eutanásia e suicídio assistido

Questões de ética e deontologia médica, enunciadas em véspera da votação na generalidade dos 5 projetos de lei sobre eutanásia e suicídio assistido

Texto completo da entrevista a José Manuel Jara, conduzida pela jornalista Ana Mafalda Inácio, publicada no Diário de Notícias em 15 de Fevereiro de 2020

 

(Ana Mafalda Inácio) É médico psiquiatra, um ativista dos direitos dos doentes, passou pela política, e é contra a eutanásia. É contra pela sua condição humanista, pela sua prática profissional ou não distingue uma identidade de outra?

Sou contra fundamentalmente pela minha prática profissional, pela minha experiência de relação médico-doente, como psiquiatra, consciente da subjetividade das opções das pessoas e da dificuldade de ajuizar sobre as suas intenções, interessado no bem-estar das pessoa, no limite da própria existência. Tenho consciência de que a finitude do ser humano acarreta muitos sobressaltos e preocupações, de que o ser humano, consciente da vida e da morte, erra muitas vezes. Por isso, defendo que não devemos criar nem institucionalizar soluções que tendam para extremismos no fim da vida. E a eutanásia é uma forma extremada de ver o fim da vida.

Não é uma forma de aliviar o sofrimento, como defendem os partidos que agora apresentam projetos de lei? Não olha para eutanásia dessa forma?

Se não houvesse quaisquer alternativas a questão seria diferente, mas, hoje, a medicina no seu progresso e os meios assistenciais vertidos nas leis, por exemplo, sobre cuidados paliativos, e o próprio Código Deontológico da Medicina, têm em vista uma prática da medicina que não deve ser exercida para além de um certo limite. Uma prática que deve respeitar a vontade do doente, a sua autonomia e o seu querer, permitindo-lhe interromper o tratamento em situações terminais. Hoje, há meios técnicos para atenuar a dor e permitir que a pessoa tenha uma morte natural com o mínimo de sofrimento. Por exemplo, a sedação paliativa terminal, a pedido do doente e em concordância com a equipa de saúde e os próximos, assegura a morte suave, sem a crueza do processo jurídico-administrativo, rotulado como “morte medicamente assistida”, que é eutanásia ativa voluntária preconizada nos projetos.

Então, o que é a eutanásia?

A opção pela eutanásia é uma opção radical, que pode difundir-se por sugestão e levar as pessoas para um caminho errado. Não devemos ignorar que as pessoas não vivem numa redoma de vidro, vivem num certo contexto. Se a vida social caminhar no sentido do individualismo, desapossada de valores humanistas e com uma assistência médica sem os recursos necessários ou meios adequados, tanto técnicos como humanos, as pessoas podem ser tentadas a procurar uma solução radical como a eutanásia, que é sempre um suicídio a pedido, uma morte requerida por alguém em desespero, que não consegue praticá-lo. As leis que visam legitimar a eutanásia direta e o suicídio assistido, comprometem o Estado a propiciar a morte ao requerente segundo certos condicionalismos regulamentares.

Foi o relator dos pareceres da Ordem dos Médicos aos projetos de lei entregues na Assembleia da República. Nestes é referido que a eutanásia não se enquadra na medicina, porquê? Apenas por ter uma função letal?

Não se enquadra na medicina por tudo o que já está instituído. A medicina não começou hoje e não tem de subverter o seu esquema funcional. A eutanásia está expressamente excluída do Código de Ética e de Deontologia Médicas da Ordem dos Médicos. Posso dizer-lhe que, no Titulo II, Capitulo II, Fim da Vida, no artigo 65.º, está vertido o seguinte: “O médico deve respeitar a dignidade do doente no momento do fim da vida”. “Ao médico é vedado a ajuda ao suicídio, a eutanásia e a distanásia”. Este último termo, menos conhecido, está definido no artigo 67.º, que diz que “o uso de meios extraordinários de manutenção de vida deve ser interrompido nos casos irrecuperáveis de prognóstico seguramente fatal e próximo, quando da continuação de tais terapêuticas não resulte benefício para o doente” ou que “o uso de meios extraordinários de manutenção da vida não deve ser iniciado ou continuado contra a vontade do doente”. A medicina é uma ciência e uma arte ao serviço da pessoa, ajustada a cada doente e doença, não uma técnica impessoal.

O que quer dizer?

Que todos os preceitos estabelecidos no Código de Ética e de Deontologia Médicas, revisto em 2016, são apropriados às situações de sofrimento no fim da vida, mas, infelizmente, temos de reconhecer que, em Portugal, os meios de que dispomos no SNS ainda estão longe de satisfazer as necessidades assistenciais em cuidados integrados médico-sociais, incluindo os paliativos, em doenças incuráveis e progressivas. E para as pessoas com deficiências graves, as insuficência de cuidados e de meios de reabilitação também pode ser a causa de um desespero suicidário.

Hoje há uma visão mais tecnicista da medicina?

Há uma visão demasiado tecnocrática por vezes. A medicina tem de pressupor uma relação humana individualizada entre o profissional e o doente. Sei que, por vezes, essa carência pode levar a pessoa a desesperar e a perder a confiança, até porque o contexto que a envolve pode ser o de uma realidade de pobreza, isolamento e solidão, para além do sofrimento sem o tratamento adequado, gerando a opção pelo suicídio. Ora, ao aprovar-se uma uma lei que o propicie, podemos estar a empurrar a pessoa para esse caminho. Como se não houvesse alternativa.

Esse é um dos perigos da legislação?

Exatamente. A legislação para uma morte a pedido institucionalizada, valorizada pelo Estado como uma «direito» de largo alcance, vai funcionar como oferta de um serviço acessível e facilmente disponível. Um serviço que tem sido apresentado como se fosse um grande avanço ideológico e assistencial. O que é uma inverdade.

Mas uma legislação que permita aceitar uma solução de morte assistida não pode trazer ganhos à sociedade portuguesa do ponto de vista civilizacional?

A expressão “morte assistida” é equívoca, pois passa por assistênia médica na morte. E não é. Na eutanásia o doente não beneficia de assistência médica. Tem acesso a uma perícia médico-legal de fundamento jurídico-administrativo, para verificar se tem direito a ser morto diretamente por uma injecção letal ou pela autoadministração oral de um veneno. Pretende-se atribuir à medicina o papel de um sistema credível e prestigiado na execução de um pretenso direito à morte, embora agora já não se fale tanto de “ato médico” neste procedimento . Não consigo perceber que avanço civilizacional pode surgir de um suicídio praticado institucionalmente.

E não há o direito à morte?

Não, de maneira nenhuma. Direito à morte? Isso é uma extravagância. Há, sim, o direito à vida, que está consagrado na Constituição portuguesa e de forma explícita em dois artigos, 24.º e 25.º. O artigo 24.º diz que o direito à vida é inviolável, ora se é inviolável, então não pode ser violado. Ou seja, não se pode abrir uma exceção para o violar, mesmo que essa exceção possa parecer justificada para uma certa pessoa. O artigo 25.º diz que a integridade física da pessoa é inviolável. Estes princípios são depois plasmados no Código Penal nos artigos 134.º, 135.º e 150.º, que, no fundo,  se traduzem na aplicação da Constituição. Agora pergunto: como é que a mesma Constituição vai produzir dois códigos penais antagónicos em matéria tão importante como é a do direito à vida?

Mas a ser aprovada esta legislação terá de haver uma alteração ao Código Penal. Aliás, é isso que os partidos pedem.

Claro, mas qualquer alteração ao Código Penal neste sentido terá fazer vista grossa em relação aos artigos da Constituição. E penso que não se pode ler a Constituição de forma contraditória.

A Constituição pode ter várias interpretações…

Um cidadão comum lê na Constituição que o direito à vida é inviolável. Como é que o Estado pode instituir um procedimento, excecional que seja, que viole esse princípio, com base em alegações vagas sobre “dignidade da pessoa”, ou “livre desenvolvimento da personalidade” e “direito à autonomia”?

E não pode haver? É assim tão linear?

Não sou jurista, mas como cidadão, em matéria que tem de ser de uma total transparência, não será preciso ser um especialista para entender a Constituição da República Portuguesa. Que seria do Estado de Direito se , em questão de princípios básicos, carecesse de uma hermenêutica rebuscada?

Quer dizer que ao aprovar-se legislação deste tipo está a desvalorizar-se a Constituição?

Pode é estar a enveredar-se por uma interpretação contraditória. A instituição da morte autorizada e praticada por lei ordinária da República não decorre dos princípios mais explícitos e inequívocos da Constiuição.

A questão não está a ser bem colocada?

Está a colocar-se esta questão como se não houvesse alternativas, como se a eutanásia fosse uma necessidade imperativa, que surgiu agora e se impõe como necessidade permente. E não é assim. E ao longo de todo este tempo? É preciso que as pessoas reflitam. É a eutanásia que faz falta ao serviço de saúde? É a eutanásia que faz falta à sociedade? É a matar os doentes que se humaniza o fim de vida dos doentes terminais? E porque é que a “morte a pedido” merece um destaque, com pompa e circunstância, como se fosse a sacralização de um direito monumental? O que faz falta não será assegurar os cuidados diferenciados aos doentes, segundo a sua circunstância, respeitando princípios de liberdade, igualdade e fraternidade, na sociedade como um todo?

Se os projetos de lei forem aprovados – é o mais certo dada a composição atual do Parlamento, que implicações é que isso irá ter na medicina?

Para já não sabemos. Sabemos que há alguns médicos que são adeptos deste tipo de solução. Os médicos são seres humanos como os outros. E na medicina há pessoas que concordam com a novoa legislação proposta. É expressão da opinião plural de uma sociedade aberta, num terreno em que se confrontam visões diferentes. Agora, acho muito pouco provável que leve a modificações significativas na prática da medicina e no seu código. As objeções de consciência serão muito prováveis para a maioria dos médicos. É uma tarefa ingrata e stressante, que pode levar à “especialização” de alguns, poucos.

Mas quanto às implicações que pode ter na medicina?

Penso que a medicina deve manter a sua autonomia. Não se deve sujeitar a este tipo de opção. Nós, médicos, não devemos abdicar da nossa personalidade e dos nossos conceitos éticos e deontológicos. Mas uma lei irá obrigar ao seu exercício. Haverá certamente profissionais da saúde voluntários.

Os projetos de lei não permitem procedimentos disciplinares contra os médicos praticantes da “morte assisitida”…

É evidente que não poderiam estar sujeitos a isso. Aliás, tenho a dizer que no projeto do BE, tal está claramente definido. Foi dos partidos em que se notou uma adaptação no projeto, sem que estivesse pressuposta aobrigação de alterar o Código Deontológico. Por exemplo, em relação ao Projeto de Lei do PS, acho de uma grande frieza incluir o pedido de eutanásia, num formulário acessível no site da Direção-Geral da Saúde, como se se tratasse de um pedido de serviço ao cliente.

Não é essa visão que os partidos defendem, não querem que a eutanásia seja vista como um serviço…

Acaba por ser vista e tratada como tal, como uma prestação de um serviço. É claro que se a legislação for aprovada terá de ser depois regulamentada, e também não sabemos como é que isso vai ser feito. Portanto, volto a dizer, acho que todo este processo pela eutanásia tem sido uma trajetória por uma regulamentação sem antecedentes no nosso país. Diz-se que vamos despenalizar a morte a pedido ou o suicídio assistido, mas nunca houve penalização, nunca houve um tribunal a julgar casos.

Isso foi o que aconteceu noutros países com leis…

Nos países europeus que têm uma lei deste tipo, como a Bélgica e a Holanda, houve de facto julgamentos para discutir o assunto, para se definirem penas, e foi na sequência desses julgamentos que esses países fizeram a reformulação dos Códigos Penais. Em Portugal, não houve nada disto, estamos pura e simplesmente a copiar, sem uma base concreta de situações ou de soluções que tivessem sido penalizadas. Portanto, não estamos a despenalizar nada, porque nunca houve penalização. Pode haver o pressuposto de que a legalização seria a instituição legal do que se exerce ilegalmente. Mas não há indícios dessas práticas.

Considera que estamos a passar de um extremo ao outro?

Exatamente. A partir do momento que começam a existir leis adequadas às situações de sofrimento no fim de vida, como a lei dos «Cuidados Paliativos», a lei do «Testamento Vital», a lei «Sobre Direitos das Pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida», todas recentes ou muito recentes, e que, no essencial, estão corretas, pois consagram já os pressupostos de autonomia do doente, da individualização dos cuidados, da legitimidade do doente interromper a medicação e os tratamentos em situações concretas. Só que estes instrumentos carecem de meios que ainda não existem. Ora, passar-se de uma situação destas para a solução radical da eutanásia é, no mínimo, uma estranha prioridade para o Estado. Até porque a medicina progrediu e não foi para este tipo de soluções.

Mas não é o facto de a população sentir que não existem determinadas condições nos cuidados de saúde que a pode levar a querer uma solução para o fim de vida?

Sabe, o ser humano é muito contraditório. Há pessoas que dizem querer morrer e não querem. Há outras que não o dizem e que querem. Há indivíduos que se suicidam e no dia anterior estavam a sorrir como se não estivessem a sofrer. Já assisti a casos assim. O que acontece à pessoa no fim de vida não é diferente do que acontece na vida. O indivíduo no fim de vida é um ser humano como outro que está longe ainda. O que se passa é que há uma ideia muito restringida do fim da vida. Há situações de grande sofrimento físico e psíquico, mas o que muitas vezes acontece é que a pessoa tem uma atitude fóbica em relação à morte e, ao mesmo tempo, uma atitude contra- fóbica. A pessoa tem medo e procura a antecipação. Age ao contrário do que sente. Depois, a depressão, comum em estados de grave deficiência e em situações de doença crónica incurável agrava o mal que se sofre, agudiza as dores físicas e morais, mas não é de fácil diagnósitco. O doente encobre o seu estado mental, que é difícil de apurar em perícia, mesmo de psiquiatra, cuja missão não é a relação médico-doente de auxílio, mas a confirmação do desejo de uma pessoa capacitada (em direito civil…) para ser ajudada a suicidar-se.

É esse medo da morte que pode levar a querer a eutanásia?

O medo pode resultar de muitos fatores. Pode resultar do medo de um grande sofrimento ou do medo do fim. E quando se tem medo do fim há quem queira antecipar esse fim. Ninguém é impedido de se suicidar. Como psiquiatra sempre lutei pela prevenção do suicídio, tanto em termos coletivos como individuais. O nosso Código Penal consagra mesmo um artigo que proíbe a promoção do suicídio.

Quer dizer que esta legislação é uma forma de promover o suicídio?

A legalização da prática institucionalizada do suicídio é a essência do conteúdo da lei de eutanásia, a sua divulgação implícita, consentida e promovida oficialmente pelo Estado. É inevitável, tanto para doentes em situações muito graves como para outras pessoas.

Voltamos à questão da medicina. É contraditório um médico, um psiquiatra, aceitar a eutanásia?

Aceitar e praticar. Se esta legislação passar não sei se as pessoas que a irão praticar serão remuneradas ou não. Mas imagine que essa questão se coloca. Deve um indivíduo ser remunerado para avaliar se outro deve ser ou não morto? No fundo, estamos perante a dicotomia do sim, deve ser morto, ou do não, não deve ser morto. Depois, perante a dicotomia se quer ser injetado ou se quer veneno para ingerir. É muito angustiante ajudar uma pessoa numa situação dessas. É levar o doente até à morte. Isto é a inversão do que é a medicina. Uma coisa é o médico, porque o doente aceita, aplicar uma terapia que atenue a consciência e diminua a dor. Enquadra-se na medicina, é uma técnica que tem a ver com a equipa assistencial, com o médico assistente de facto (não o indigitado para verificar se o paciente pode ou não ser legalmente eutanasiado), com o doente e com a sua família, e que não exige um aparato administrativo e jurídico, como se o indivíduo estivesse a ser julgado para se provar se tem ou não capacidade para decidir se deve ser morto. A sujeição da pessoa à tramitação burocrática para apurar se pode ser morto é a meu ver ela própria mórbida no seu processo.

Dito dessa forma é assustador…

Esta descrição corresponde ao conteúdo dos projetos de lei, sem eufemismos, sem suavizar «Thanatos», morte em grego, com o prefixo «eu», também grego, que significa “boa”.

Esta discussão pela eutanásia na sociedade é uma questão geracional?

Não acho isso. Não separo as gerações nestes domínios. Acho que se devem evitar divisões com base em idades. Há pessoas de diferentes opiniões em todas as gerações.

A aceitação da eutanásia passa por uma questão filosófica, religiosa, cultural ou tão só pela educação para a morte?

Está tudo implicado. É uma questão impregnada de aspetos sócio-culturais, costumes, tradições, religião, hábitos, mas também tem a ver com um processo evolutivo da consciência social e de uma tendência para a inovação, em que se tem de criar sempre novas coisas. Algumas evoluções são saudáveis, outras podem não ser. A questão da eutanásia não é uma novidade. Vem de longe a eutanasiofilia, tem um passado que não vale a pena aqui referir.

Como pessoa, cidadão, médico acha que estas questões deveriam ser mais debatidas. Por exemplo, um referendo…

Não concordo. Como psiquiatra, penso que o estar a discutir demasiado esta questão não é saudável. É mórbido. Saudável, é como criar uma sociedade com apego à vida, a uma existência mais humanizada. Estarmos a falar, a discutir, mesmo que defensivamente, sobre eutanásia, do ponto de vista da saúde mental é insalubre, angustiante. Acho que não é saudável. Mas as pessoas discutem e falam do assunto como falam de tudo.

E não é assim. Como se deveria encarar a situação?

Acho que temos de encarar a vida no seu todo e de a valorizar. De aceitar o ser humano em toda as idades e etapas da sua vida. A dignidade humana deve ser igual, sem distinções, e com condições de apoio, que temos de criar porque não as temos, para todas as gerações, tanto para as pessoas que estão a começar a vida como para as que estão no fim da vida. Aqui é que se deve investir. Não é no afunilar a discussão e as perspetivas para a questão da morte.

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