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O que não é habitualmente dito quando se fala dos problemas do Serviço Nacional de Saúde

Autora: Maria Teresa Neto,

Médica, Pediatra, Neonatologista. CHULC, Hospital Dona Estefânia. Professora Catedrática Jubilada. Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Médicas/NOVA Medical School

 

Muito que se tem escrito sobre a situação do SNS, mas há ainda assuntos a esclarecer.  Nunca o SNS esteve tão mal apesar de os problemas serem antigos. O SNS é um sistema vivo, se não for alimentado morre, e há muito que necessita de investimento e de quem olhe por ele.

Em 1990 Leonor Beleza instituiu o regime de Dedicação Exclusiva definido como semana de trabalho de 42 horas, acréscimo de 40% no ordenado e impedimento de trabalhar para outro patrão. A adesão de muitos médicos criou uma “elite” no SNS numa época em que integrar a Carreira Médica era um objectivo, progredir nela, uma honra. Em 2009, terminou a possibilidade de um médico se candidatar a este regime pelas razões que se conhecem. Pela mesma altura terminou a progressão nas carreiras da administração pública e os concursos para progressão na carreira médica. Quando me jubilei ainda sofria o efeito de ambas as restrições. Instituir agora uma imagem desfocada do regime de “Dedicação exclusiva” não parece boa ideia.

A Regionalização dos cuidados perinatais foi também obra de Leonor Beleza e da Primeira Comissão Nacional de Saúde Materna e Infantil, por ela criada em 1989. O efeito imediato e de longo prazo foi a diminuição das taxas de mortalidade naquela população, que nos catapultaram dos últimos lugares do mundo para os primeiros da Europa. Contudo, as agressões de que tem sido alvo, levaram ao seu, quase, se não completo, desmantelamento. Não tenho nada contra os hospitais privados que, actualmente, prestam os cuidados que o SNS não consegue disponibilizar. Mas foi o seu aparecimento que colaborou para, e potenciou, a desorganização nos cuidados perinatais.

Utilizo o SNS nas situações graves, nas outras só quando ele me pode atender. Porque não basta ter médico de família é preciso chegar a ele quando se precisa. As filas de pessoas à porta dos Centros de Saúde (CS) não são só para quem não tem médico. São para marcar consulta para outro médico que não o seu. E, se tem uma doença aguda e não consegue consulta no CS, onde se poderá dirigir o português?  Ao Serviço de Urgência (SU) do seu hospital. Por isso não digam aos portugueses que não vão ao SU. Então vão onde? O âmbito de actuação do Médico de Medicina Geral e Familiar (MGF) devia ser reformulado. É certo que deve investir na promoção da saúde, cumprir os algoritmos a que é obrigado, fazer os rastreios indicados, mas tem de ter tempo disponível para ver doentes, os seus clientes quando têm uma doença aguda.

Actualmente, os jovens com Mestrado Integrado em Medicina, recusam vagas de Internato de Formação Específica para começarem a trabalhar como tarefeiros. Não têm especialização nem experiência e vão desempenhar tarefas para as quais não estarão habilitados. Não têm responsabilidade, não seguem os doentes que internam, não fazem parte da equipa de urgência, não pertencem aos Serviços, não têm interesse em acções de formação. Em 24 horas no Serviço de Urgência, auferem o correspondente ao ordenado mensal de um especialista em fim de carreira no sector público. Sem obrigações, não se escalam para o Natal, Páscoa ou “pontes”. Caso acedam são pagos a peso de ouro.   É com estes profissionais que uma parte importante do dinheiro atribuído à saúde é consumido. Mas, nem todos os tarefeiros são indiferenciados. Um especialista a trabalhar como tarefeiro, consegue auferir um ordenado verdadeiramente correspondente à sua diferenciação, sem a responsabilidade que tinha quando integrava um quadro.

O último ponto diz respeito ao número de médicos em Portugal: são muitos ou poucos? Em 31 de Dezembro de 2022 estavam inscritos na OM, 60396 profissionais – 23155 não especialistas e 15561 com mais de 65 anos. Mas, quantos exercem medicina?  Não sabemos quantos estão aposentados, quem morreu ou emigrou; quem faz só investigação, é gestor ou desempenha funções noutros órgãos – Ministério da Saúde, ACSS, DGS, cargos europeus; etc. No Continente, em 2021, trabalhavam no SNS 27458 médicos – 21883 nos hospitais e 5575 nos Centros de Saúde – ou seja, 278 médicos por 100 000 habitantes, quase metade do valor da UE. Para colmatar a falta de médicos, diz-se que há que formar mais. Contudo, o acesso ao curso é muito difícil porque as classificações são muito elevadas. Para o público fica a ideia de que a culpa é das escolas de Medicina que não abrem mais vagas porque “o lobby médico não deixa”. Ora, as vagas estão de acordo com a capacidade de formação. Abrir mais vagas tem implicações práticas como aumentar o ratio aluno / docente ou disponibilizar mais áreas de ensino prático nos hospitais e CS, para falar apenas de alguns problemas que vão afectar a qualidade do ensino. Porque as escolas actuais distribuem alunos por todos os CS e hospitais do país, públicos e privados, abrir mais escolas de medicina, como tem sido sugerido, não vai resolver o problema. Onde se formarão esses médicos? Na formação pós-graduada o panorama é semelhante. Um especialista demora 11 e 13 anos a formar. Formar um médico é diferente de formar um engenheiro, um economista ou um advogado.

Em resumo: A situação actual do SNS não é actual. Não é novidade querer que os médicos trabalhem exclusivamente no SNS. “Dedicação Plena” não é o mesmo que “Dedicação Exclusiva”. Os médicos de MGF têm de ter tempo para atender (também) pessoas com doença aguda em tempo útil. Os médicos não se formam por fornadas nem numa sala de aulas teóricas. Paguem como deve ser aos médicos de modo a transformar tarefeiros em especialistas.