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O Brasil precisa de mais médicos ou de melhores médicos?

Autor: José Hiran da Silva Gallo

Presidente do Conselho Federal de Medicina do Brasil

Doutor e pós-doutor em bioética pela Universidade do Porto 

 

No Brasil, o Poder Judiciário tem assumido cada vez maior protagonismo em debates de interesse público. Dentre eles, há alguns com profunda interface com os campos da saúde e o exercício da medicina. Temas como a descriminalização do aborto, a legalização do uso de drogas e o fechamento de hospitais psiquiátricos para criminosos condenados fazem parte desse rol, assim como a autorização para a abertura de novas escolas médicas no País.

Este tópico específico integra a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 81, que questiona a legalidade do fluxo de abertura de escolas de medicina no País. Atualmente, esse procedimento deve ser consequência de um processo de chamamento público por meio do qual municípios interessados em abrigar instituições deste tipo se candidatam, são avaliados e podem ter, ou não, sua pretensão atendida. A escolha da instituição de ensino surge em etapa posterior. O passo a passo está descrito na Lei do Mais Médicos (nº 12.871/2013).

A ADC em tramitação no Supremo Tribunal Federal (STF) questiona esse regramento sob a alegação de que fere regras de mercado e de livre concorrência. Antes de que esse caso chegasse à mais alta corte do Judiciário brasileiro, o assunto percorreu instância inferiores acumulando dezenas de liminares autorizando a abertura de escolas de medicina ao arrepio do que prevê a legislação.

O Conselho Federal de Medicina (CFM) tem acompanhado esse debate sobre a ADC como amicus curiae. A preocupação com a decisão final dos ministros é grande, pois pode representar um incremento de 170 escolas médicas num cenário onde já existem outras 389 em funcionamento, com a oferta acumulada de mais de 35 mil vagas por ano para novos alunos.

Com esse incremento anual de egressos dos bancos universitários, sem que novas unidades sejam autorizadas, a população médica brasileira tem enfrentado um crescimento sem precedentes. Entre 2010 e 2023, o número de profissionais mais do que dobrou, passando de 295 mil para 577 mil, fazendo com a razão de médicos para mil habitantes subisse de 1,9 para 2,7, superando os índices de países como Estados Unidos e Japão. No entanto, esse aumento vem embalado em riscos cujos efeitos poderão ser percebidos em médio e longo prazos, conforme revela uma análise realizada pelo CFM.

A origem do problema está na infraestrutura de ensino disponível no País, que é incapaz de absorver tamanha demanda. Dados dimensionam esse cenário: independentemente do resultado proferido pelo STF, o Brasil já possui um número de escolas médicas que só fica abaixo do existente na Índia, uma nação com população sete vezes maior do que a brasileira. Contudo, mesmo essas instituições já compõem um cenário de precarização com repercussão na qualidade da formação oferecida aos futuros profissionais.

É consenso que medicina é profissão cujo processo de aprendizado resulta de uma jornada combinada de carga teórica e atividades práticas em busca do estímulo ao avanço do conhecimento, de habilidades e de atitudes que serão fundamentais nas fases de diagnóstico e tratamento de doenças, bem como ao fortalecimento da relação médico-paciente. Sem acesso a campos de estágio, leitos de internação para observação e a hospitais universitários e de ensino, o candidato a médico se vê privado de ferramentas para torná-lo um profissional efetivamente capacitado.

Sem mudanças, em alguns anos, o cenário revelado pelo CFM apresentará uma alta fatura ao País a ser paga com saúde e vida. Assim, os cidadãos serão confrontados com as consequências da abertura desenfreada de escolas e de vagas, embalada pela indiferença com que gestores e tomadores de decisão tratam o assunto. Para se ter uma ideia, desde 2010, foram criadas 209 novas escolas médicas no Brasil. O número é superior às 180 unidades abertas entre 1808 e 2010, ou seja, mais de 200 anos!

Atualmente, essas 389 escolas médicas se dividem entre 35% (136) públicas e 65% (253) privadas, distribuídas em 250 municípios. Porém, seguindo a lógica econômica – fundamental para assegurar o pagamento de altas mensalidades -, elas se concentram nas regiões mais ricas e desenvolvidas: 214 (55%) estão localizadas apenas em sete estados (Bahia, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo), onde já há grande quantitativo de médicos por habitantes.

Um olhar mais atento sobre o perfil dessas instituições aponta que a maior parte (48% do total) está em municípios com população entre 100 mil e 500 mil habitantes e 33% em cidades acima desse patamar. Municípios de menor porte (50 mil a 100 mil moradores) concentram apenas 16% do total. Igualmente chama atenção o peso do ensino privado entre as que passaram a funcionar efetivamente: no período de 2003 a 2022, a taxa média de crescimento de vagas públicas foi de 3,1% ao ano contra os 7,3% do segmento particular, cuja mensalidades ficam, em média, em torno de R$ 7 mil.

Não bastasse o aumento injustificável de instituições e sua concentração em determinadas, os gestores dos Ministérios da Saúde e da Educação assistem silenciosos à abertura de escolas em municípios carentes das condições para abrigá-las.

No entendimento do CFM e de dezenas de outras entidades comprometidas com a qualidade do ensino médico, um curso de medicina deve funcionar em localidades que atendam, pelo menos, a três critérios: oferta de, no mínimo, cinco leitos públicos de internação para cada aluno de medicina; acesso de, no máximo, três alunos para cada Equipe da Estratégia Saúde da Família (ESF); e presença de um hospital ensino.

Contudo, esses parâmetros têm sido sucessivamente ignorados em nome de uma subjetividade que impede a real avaliação desse quadro. Isso porque os gestores até mantiveram parte do enunciado, só que eliminando índices recomendados, tornando um exercício fluído o entendimento sobre as condições ideais para um município de abrigar, ou não, uma instituição desse tipo.

Se os critérios defendidos pelo CFM fossem seguidos, ficaria evidente que 96% das localidades que abrigam cursos no País não atendem pelo menos um dos parâmetros recomendados. Um total 202 municípios (80%) não possuem número de leitos suficientes. Para que a proporção de cinco leitos por aluno fosse atingida, o Ministério da Saúde, em parceria com os governos de Estados e Municípios, deveria promover a instalação de 45 mil novas unidades desse serviço essencial ao processo de ensino-aprendizagem.

Um esforço semelhante de gestão seria necessário para equacionar o déficit na ESF, pois 133 cidades (53%) onde há escolas médicas têm mais alunos por equipe do que o máximo de cinco desejável. Se à beira do leito hospitalar, o estudante tem contato com a média e alta complexidades da assistência, é nas unidades básicas de saúde que desenvolverá suas habilidades clínicas para o diagnóstico e o tratamento de doenças que, em sua imensa maioria, não carecem de cuidados em serviços especializados.

As carências se avolumam ainda mais quando se observa a disponibilidade de hospitais universitários ou de ensino nos municípios-sede de escolas de medicina. Em 182 deles (73%), essas instalações inexistem, obrigando os alunos a se deslocarem centenas de quilômetros para contar com a formação que oferecem ou pior: privando-os definitivamente desses instrumentos de qualificação para futuros profissionais.

A esses problemas se somam outros, como falta de professores habilitados para o ensino, bibliotecas com acervos deficientes, instalações (salas de aula, laboratórios, etc.) precárias e programas acadêmicos inadequados aos desafios técnicos e éticos da medicina moderna. Contra a manutenção desse quadro negativo, o CFM tem atuado em diferentes frentes, além da defesa das condições para o ensino médico junto ao Poder Judiciário.

Por um lado, criou o Sistema de Acreditação de Escolas Médicas (Saeme-CFM), que já visitou mais de 60 estabelecimentos de ensino – sem custo – avaliando-os em diferentes eixos e retornando com orientações sobre como otimizarem aspectos positivos ou corrigirem eventuais falhas.

Trata-se de modelo reconhecido internacionalmente pela sua relevância e que já foi tema de tratativas com o Governo para sua incorporação ao processo de acompanhamento sistemático do ensino médico.  Apesar de manifestação de interesse do Executivo, o CFM ainda aguarda retorno sobre o tema.

De modo complementar, o Conselho Federal de Medicina tem provocado o debate sobre o tema junto ao Ministério da Educação e ao Congresso Nacional, preocupado em reestabelecer os aspectos quantitativos dos parâmetros de abertura de novas escolas que foram paulatinamente suprimidos desde 2013. Até o momento, essas iniciativas não surtiram o efeito desejado e definitivo, o que exige o envolvimento da sociedade brasileira como um todo nesta agenda.

A decisão do STF sobre o julgamento da ADC 81 – independentemente do desfecho – não muda a necessidade de rever esses critérios que têm sido torturados ao longo dos anos, para se adequar a interesses específicos (políticos, ideológicos, econômicos) desconsiderando o impacto do contexto atual no futuro da assistência.

Para o CFM, ninguém deve se furtar de participar desse debate, cujo encerramento pode ter consequências relevantes para os indicadores de morbidade e mortalidade e sobre a percepção a respeito da confiança e da credibilidade da população na medicina.

No Brasil, é preciso fugir do falso dilema – falta ou não falta de médicos –, já superado pelas estatísticas que apontam a existência de mais de meio milhão de profissionais no território nacional, e focar no que realmente importa para o paciente e sua família: o País precisa de mais médicos ou de médicos melhor formados?

Ao trocar a qualidade pela quantidade, o Governo priva o cidadão daquilo que lhe é devido por força da Constituição: a oferta de uma assistência caracterizada pela eficiência e pela segurança, como os médicos bem formados podem oferecer.