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Normalização da atividade não é suficiente para recuperar atrasos

Ao longo do ano de 2021, o enorme esforço dos médicos e de outros profissionais de saúde permitiu normalizar a atividade na maioria das áreas. Contudo, com o que tinha ficado por fazer em 2020, este esforço não é suficiente para recuperar tudo o que foi adiado e que ainda possa ser recuperável. Estas são algumas das conclusões da análise da consultora MOAI, com base nos indicadores oficiais do Portal da Transparência do SNS e do Bilhete de Identidade dos Cuidados de Saúde Primários, apresentadas no dia 3 de novembro, no âmbito do Movimento Saúde em Dia, constituído pela Ordem dos Médicos e pela Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, com o apoio da Roche.

Aliás, o bastonário da Ordem dos Médicos, ao longo da pandemia, alertou por diversas vezes a tutela para a necessidade de manter a atividade não COVID-19 e de encontrar um plano estratégico de reforço para recuperar o tempo perdido – o que nunca veio a sair do papel.

Os resultados estão à vista, são muito expressivos e ninguém gostaria de os apresentar, como salientou Diogo Marques, que protagonizou a apresentação da MOAI no evento. Cerca de 4450 doentes com cancro da mama, do colo do útero e colorretal ficaram por identificar no último ano devido à redução dos rastreios, segundo as estimativas apresentadas.

Para analisar o impacto da pandemia covid-19 na prestação de cuidados de saúde em Portugal, foram comparados os dados disponíveis referentes ao ano de 2019, 2020 e 2021, com a estimativa dos dados para os últimos meses em falta.

Os dados estimam que 148.845 mulheres não tenham feito mamografia nos últimos dois anos, sendo que 1.868 mulheres com cancro de mama terão ficado por identificar. Já 158.045 mulheres não realizaram colpocitologia, estimando-se que 399 com cancro do colo do útero tenham ficado por diagnosticar, e 83.779 utentes não fizeram rastreios do cancro do cólon e reto, prevendo-se que 2.155 doentes não tenham sido diagnosticados.

A nível hospitalar estima-se que os valores de consultas e cirurgias em 2021 estejam em linha com 2019. Apesar da retoma assistencial, estes valores são insuficientes para recuperar a atividade não realizada em 2020, pelo que se estima que, entre 2020 e 2021 tenham ficado por realizar mais de 2,8 milhões de contactos com os Cuidados de Saúde Hospitalares (consultas presenciais, cirurgias programadas e episódios de urgência graves).

Mas nos centros de saúde a realidade é ainda mais preocupante, com a relutância da tutela em ouvir a Ordem dos Médicos e continuar sem libertar os médicos de família para os seus doentes de sempre. Os dados destacam que, apesar do aumento esperado de 14% nos contactos presenciais médicos nos centros de saúde em 2021 face a 2020 (mais 1,8 milhões), este valor mantém-se distante das consultas realizadas em 2019. Neste período, ficaram por realizar 14 milhões de consultas (6,1 milhões e 7,9 milhões comparando 2021 e 2020, respetivamente, com o ano de 2019). Mais de 1,1 milhões de utentes continuam sem médico de família.

Depois da apresentação da MOAI, a jornalista Clara de Sousa moderou um painel de debate que contou com intervenções da jornalista Paula Rebelo, do presidente do conselho de administração do Hospital de Braga, João Porfírio Oliveira, e da conselheira nacional da Ordem dos Médicos e especialista em medicina geral e familiar Rubina Correia.

Paula Rebelo começou por lembrar que, “já em 2019, muita coisa estava por pinças” e lamentou a dificuldade de acesso a dados fidedignos e em tempo útil. Para a jornalista, foi visível que “o fosso iria ser enorme” quando a ministra da Saúde deu orientação para que os hospitais apenas atendessem casos graves e inadiáveis. Paula Rebelo relata que tanto os gestores como os médicos e outros profissionais têm feito o possível e o impossível para aumentar o acesso, mas garante que os meios são escassos para chegar mais longe. “É preciso que não continuemos a camuflar as coisas”, apelou, insistindo que é urgente reforçar os cuidados de saúde primários para libertar a única porta “escancarada” que os doentes encontram: a urgência.

João Oliveira também admite os constrangimentos na resposta do hospital que dirige, adiantando que o regresso dos doentes menos graves às urgências foi mais rápido do que no caso dos chamados amarelos e laranjas. Depois, o administrador hospitalar lembra que a capacidade de resposta dos hospitais – por exemplo ao nível dos blocos operatórios – é finita e compromete uma verdadeira recuperação. A falta de autonomia é um problema real. “Tenho necessidade de contratar médicos e não consigo e só os posso contratar através de concurso. A verdade é que nós não temos autonomia”, insistiu, lembrando que quando o hospital foi uma parceria público-privada a administração “ia ao mercado com regras absolutamente diferentes das que nós hoje temos”.

Rubina Correia admite que num “contexto de muita incerteza” foi preciso cancelar alguma atividade, mas entende que se foi longe demais, e afirma mesmo que “há pessoas que vão morrer porque deixaram de ter acesso aos cuidados” – o que tem impacto na qualidade de vida e na esperança de vida. Para a médica é urgente uma nova política de recursos humanos e mais investimento no SNS para conquistar mais médicos a ficarem a trabalhar no serviço público de saúde com condições remuneratórias dignas e condições de trabalho que não levem ao sofrimento ético. “Como é que eu vou para casa se sei que tenho um doente que precisa de uma biópsia e que só a vai ter daqui a quatro meses?”, questiona. “Os mais desfavorecidos foram os que ficaram à espera e nós, como Portugal e como SNS, tínhamos a obrigação de lhes dar” os cuidados de que precisavam, sublinhou.