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Médicos pelo mundo: uma experiencia geriátrica com “nuestros hermanos”

Autora: Joana Carvalho Macedo – Interna de Formação Específica de Medicina Geral e Familiar, USF Entre Margens, Aces Aveiro Norte

 

A Geriatria é uma especialidade que não existe em Portugal. No nosso país, apenas o médico de família possui competências comuns a esta especialidade, como a importância da abordagem holística, a aplicação de escalas específicas que nos permitam avaliar algumas das especificidades do utente idoso e o seguimento desta faixa etária, que é muitas vezes alvo de desinvestimento.

 

Envelhecimento a nível Nacional

Segundo o Instituto Nacional de Estatística, o envelhecimento é uma tendência demográfica do século XXI. Uma publicação de 27 de março de 2017 refere que “…o agravamento do  envelhecimento demográfico mantem-se e só tenderá a estabilizar daqui a cerca de 40 anos” , “…o número de idosos passará de 2,1 para 2,8 milhões…” e “…o número de jovens vai diminuir…”. Assim, é imperativo que surjam mais profissionais competentes nesta área e com vontade de crescer, por forma a colmatar a falta de uma especialidade dirigida somente a este grupo vulnerável. Estes pressupostos e a vontade de investir mais em algumas situações ou  “investir desinvestindo” noutras (que muitas vezes é o mais acertado), fizeram surgir o meu interesse na área da Geriatria, no âmbito da qual realizei um estágio no Hospital Clínico de San Carlos, em Madrid, Espanha, em setembro e outubro de 2016.

 

Constituição do serviço de Geriatria no Hospital Cliínico de San Carlos

O serviço apresenta diferentes níveis assistenciais, que constituem a oferta de cuidados à população idosa:

  • Cuidados Hospitalares em regime de hospitalização (Unidade de cuidados da doença em situação aguda, Unidade de cuidados da doença em fase pós-aguda, Unidades específicas: ortogeriatria, cuidados paliativos, psicogeriatria)
  • Cuidados Hospitalares em regime de não hospitalização (consultas externas especializadas: demência, quedas, incontinência, sarcopenia e desnutrição; Hospital de dia diagnóstico e terapêutico)
  • Cuidados avaliados em regime ambulatório: assistência domiciliária de idosos.

 

Perante estas possibilidades optei pelo que me fazia mais sentido enquanto aspirante a médica de família:

  1. Consultas externas

Essencialmente assisti a consultas de geriatria geral por ser mais abrangente e aqui referencia-se para os outros tipos de consulta, se assim se justificar. A consulta de memória, sem dúvida a que mais me suscitou curiosidade.

  1. Domicílios

Existe apenas uma equipa domiciliária constituída por um enfermeiro e um médico, que na maioria das vezes é o interno do 4º ano de especialidade. Por dia, a equipa assiste cerca de seis a nove domicílios. Na consulta domiciliária, dependendo dos motivos pelo qual a consulta foi solicitada, são alvo de atenção o tipo de habitação (Ex. se tem elevador, rampa para cadeira de rodas de acesso ao elevador e ao piso do apartamento/ moradia, tapetes no chão da casa, temperatura ambiente), o cuidador (apoio teleassistência, número de horas do cuidador) e o apoio familiar. Os critérios para a consulta domiciliária são: ser centenário, imobilização e internamento no serviço de Geriatria nos últimos 3 meses

  1. Ortogeriatria

Aqui avaliam-se os doentes, sempre que são internados, para possível intervenção cirurgia após fratura. Investigam-se as causas de fratura, tratam-se as comorbilidades agudas e é realizado sempre um estudo analítico às 48h. Assim que o médico ortopedista dá autorização para o doente iniciar, por exemplo, a caminhada, o médico geriatra acompanha essa fase, averiguando o apoio familiar e a possibilidade de reabilitação na sua residência.

 

Curiosidades

  1. Nas consultas:

Cada enfermeira assume algumas “pré-consultas”, procedendo à colheita de análises, realização de eletrocardiograma e cuidados de penso (se necessário). É também responsável pela triagem dos doentes dos utentes vindos de outras especialidades, para cada tipologia de consulta específica. Esta equipa coesa, em binómio médico/enfermeiro, permite agilizar as consultas, o que se traduz num ganho para todos.

  1. Nos domicílios:

Uma particularidade bastante interessante dos domicílios é a Teleassistência, que está a cargo dos enfermeiros, e que corresponde à resposta às urgências domiciliárias. É facultada a quem a solicite e, dependendo do grau de dependência do idoso, pode ser concedida ou não. Quando concedida a teleassistência, é fornecido um telefone com uma linha grátis e um colar com um botão vermelho, que o idoso transporta ao peito. Assim, sempre que o idoso não se sente bem e está sozinho, aperta o botão vermelho e a assistência (que tem a chave da habitação) aparece em minutos. Este tipo de assistência também telefona periodicamente, por forma a averiguar o ânimo da pessoa, o seu estado de saúde, o apoio familiar e social ou mesmo a toma da medicação. Se este telefone não for atendido, a teleassistência alerta os familiares. Neste momento, em alguns distritos de Portugal, um sistema semelhante foi instituído.

  1. Unidade de Média Duração do HCSC:

Passei apenas uma tarde na Unidade que me permitiu ter um vislumbre do seu funcionamento. Aqui eles têm um plano de reabilitação funcional individualizado, incluindo reabilitação e terapia ocupacional, com intuito de restituir ao doente a sua autonomia e prevenir a sua deterioração funcional e cognitiva.

 

Estágio fora do país: ganhos para a prática clínica e ganhos pessoais

Um estágio fora do país é, sem dúvida, sair da nossa zona de conforto. Apesar de se ter tratado num estágio no país vizinho, por muito parecidos que sejamos a nível cultural, estamos invariavelmente num país diferente, com uma língua diferente e com hábitos de vida diferentes. Madrid é uma cidade incrível e o sistema nacional de saúde dos nuestros hermanos, apesar de ter muitas semelhanças ao nosso, tem algumas particularidades interessantes.

Em relação à especialidade de Geriatria, tem a constante preocupação em devolver autonomia e qualidade de vida aos idosos, e isso vê-se pela ampla existência de instituições ou departamentos dedicados à reabilitação. Trata-se de uma especialidade hospitalar com urgência, muito bem organizada. No Hospital Clinico de San Carlos, havia vários internos de especialidade, bem como internos de outras áreas e de outros países (incluindo eu!). As manhãs começavam às 8h00 com a reunião de serviço, na qual se procedia à passagem de turno de urgência, apresentação de trabalhos de internos e discussões de assuntos relativos ao serviço. O ambiente foi sempre incrível e a minha receção foi espetacular.

Após este estágio, não mudei muito a minha prática clínica enquanto médica de família, porque este grupo vulnerável já merecia uma atenção especial da minha parte. Mas mudei radicalmente a minha atitude nos domicílios. Só com esta experiência consegui perceber que a expressão “abordagem holística do doente” é muito mais do que aquilo que eu lia e fazia. Tive oportunidade de participar em visitas domiciliárias nas zonas mais carenciadas de Madrid, onde as infraestruturas da casa eram otimizadas e orientadas para o idoso, com vista ao bom isolamento térmico, boa luminosidade, ausência de fatores que aumentassem a probabilidade de quedas (tapetes, roupa da cama, etc.) e vigilância até à chegada dos familiares. Os idosos estavam sempre acompanhados por alguém, quer pela cuidadora financiada pela segurança social (até às 16h), bem como pela cuidadora contratada após as 16h. Com esta experiência percebi que a comunidade espanhola está muito sensibilizada para as questões práticas do dia-a-dia do idoso e isto faz com que haja uma otimização do trabalho efetuado pelos vários profissionais de saúde intervenientes neste processo.

Sem dúvida que muito mais poderia ser dito acerca desta experiência. Sem dúvida que não consegui partilhar tudo o que me foi transmitido e as minhas vivências. Sem dúvida que cresci como pessoa e como profissional e, no que depender de mim, os meus doentes vão ter alguém que vai fazer o possível para que tenham uma vida digna. Sem dúvida que todos nós deveríamos sair da nossa zona de conforto para crescermos.

Falando da cidade de Madrid, deixo apenas duas palavras: gastronomia e Parque del Retiro. Fui aos melhores e mais bonitos restaurantes e fiz as corridas mais agradáveis ao fim do dia nos jardins do Retiro. Uma experiência que todos devíamos ter!