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Juramento de Hipócrates: não esqueçam o lado humano, além dos muros dos hospitais e centros de saúde

A cerimónia do Juramento de Hipócrates da Covilhã que decorreu dia 8 de dezembro de 2023 começou com um apontamento musical com a banda de blues ‘Sexta Feira Santa’. A médica vocalista desta banda, Carolina Cabaços, está a apenas três semanas de terminar o internato de especialidade em Psiquiatra. A jovem médica, que mantém esta banda desde 2012, recordou, entre músicas, um princípio que considerou primordial no Juramento de Hipócrates: Primium non nocere, o princípio da não maleficência que aplicou em sentido lato, convidando os jovens colegas prestes a fazer o seu juramento, a cuidar de não fazer mal aos doentes, aos colegas mas também a si próprios, deixando um apelo a que que quem nos governa “não cause dano aos médicos e outros profissionais de saúde”. Entre músicas, deixando ainda desejos de que consigam manter o equilíbrio nas sias vidas: “Nunca deixem de fazer aquilo que gostam de fazer! Eu adoro verdadeiramente o que faço. Todos os dias senti o privilégio e a gratidão de poder fazer o que gosto. Mas a minha profissão não sou eu! Sou estas e muitas outras coisas. E também sou psiquiatra”. Cada médico, lembrou, é um conjunto de coisas que leva consigo para a profissão e que o torna melhor profissional.

Na sua intervenção Miguel Castelo Branco, Presidente da Sub-Região de Castelo Branco e Presidente da Faculdade de Ciências da Saúde – UBI, mencionou que o término do curso não é um “fim” mas sim uma passagem a uma nova etapa, alertando a assistência para a relevância da auto-regulação. “A auto-regulação exige um exercício íntimo de autoavaliação” para que os médicos consigam escolher bem o caminho a percorrer. Considerando que “é bom trabalhar no SNS” é, acima de tudo, “muito importante que o SNS persista como um serviço de elevada qualidade”. Aos médicos exige-se que possam “contribuir para a capacitação de um sistema” que garanta o acesso universal a cuidados com qualidade, independentemente da capacidade financeira de cada um. “Um valor essencial”, defendeu. Para terminar, Presidente da Sub-Região de Castelo Branco deixou uma mensagem em que pediu aos colegas que não se contentem com simplesmente ser mas antes que almejem e que queiram ser “os melhores” em tudo aquilo que se propuserem fazer. “O importante é que sejamos verdadeiramente bons naquilo que queremos ser. (…) Está nas vossas mãos”.

Manuel Teixeira Veríssimo, Presidente do Conselho Regional do Centro da Ordem dos Médicos, dirigiu-se aos jovens colegas lembrando que aqui se “comprometem com uma missão grandiosa e eticamente vitalícia”. E porque “a medicina é uma ciência, mas também uma arte enraizada num compromisso” – o compromisso de melhoria da vida dos seus semelhantes – é fundamental a “dedicação aos doentes”. “Tratar com respeito, dignidade e competência não esquecendo a sagrada confidencialidade dos seus problemas”, no pressuposto da sacralidade da vida humana. Os médicos são, frisou, “âncora da esperança para quem sofre”. “Saúdo-vos neste compromisso solene. … Que a vossa vida profissional seja iluminada pela sabedoria, pela compaixão e pelo desejo de aliviar o sofrimento humano”, concluiu.

Massano Cardoso que proferiu a oração de sapiência, começou por frisar, com sentida emoção, a importância das famílias, nomeadamente dos pais e mães. Sobre a visão do médico reforçou a ideia de que “o médico é aquele que tem que ouvir, falar e dialogar com os pacientes” recordando como, num tempo em que “os clínicos dispunham de um limitadíssimo arsenal terapêutico, mas sabiam ouvir e acompanhar os seus doentes”, essa postura de compreensão e atenção ao outro os elevou a “semi-deuses”. Massano Cardoso lembrou o mito de Titono, mortal por quem a deusa Aurora se perdeu de amores e a quem Zeus concedeu a pedido desta a imortalidade, mas sem conceder o dom da juventude. Titono envelheceu e ficou demente. Aurora com pena do amado, transformou-o então numa cigarra, símbolo de imortalidade. E, com essa menção, o orador abordou como hoje os médicos vão mais longe, em tratamentos que antes teriam um significado divino, mas também alertou para os riscos de ir longe demais, aludindo à manipulação genética. Num tempo em que a doença é vista “como sinónimo de terrorismo, algo evitável e sempre a combater, a qualquer preço”, o Professor Catedrático de Epidemiologia e Medicina Preventiva e Diretor do Instituto de Higiene e Medicina Social da FMUC explicou não concordar com essa posição pois “a doença é também atributo da vida” e, “se algum dia eliminarmos todas as doenças, deixaremos de ser humanos e passaremos a ser qualquer outra coisa, transumanos”, talvez. “A comunidade em geral acha que os médicos têm em si o dever e conhecimento de curar tudo”, por isso “ser médico é complexo e até penoso” e gera um paradoxo: quando quase só sabiam ouvir eram semideuses, agora com tanta tecnologia e terapêuticas à disposição os médicos são menos compreendidos e longe vai esse estatuto de semideus. Outros riscos para os quais alertou foram a manipulação estatística e a sua aplicação cega à saúde, o exacerbamento terapêutico, e o excesso de medicalização e a hiatrogenia. Sobre os limites da medicina citou “A expropriação da saúde – nemesis da medicina” escrito por Ivan Illich em na década de 70 do século passado em que se podia ler: “a medicina tornou-se uma das maiores ameaças da saúde”. Massano Cardoso afirmou-se muito crítico do excesso de medicalização. “Tudo serve para criar no espírito das pessoas a ideia de que estão doentes e, se estão doentes, precisam de ser tratadas”, mencionando vários exemplos de dogmas da atualidade, no que classificou como “uma praga dos tempos modernos”, originando prescrição excessiva, por exemplo, de vitaminas. Se o futuro se afigura muito atribulado face ao avanço tecnológico e às exigências que a sociedade vai impor a estes jovens médicos, Massano Cardoso alertou que “não podem em circunstância alguma abdicar dos vossos deveres: ajudar os que sofrem e evitar que muitos possam vir a sofrer. (…) Que ninguém duvide que a felicidade do próximo depende muito da sabedoria dos médicos!” “Cuidem bem do vosso estar, porque sem o vosso estar e a vossa saúde os outros não poderão estar”, concluiu.

Nas palavras que dirigiu aos colegas, Carlos Cortes, Bastonário da Ordem dos Médicos, lembrou como todos os portugueses têm igual direito à saúde embora, como mencionou, esse direito seja mais difícil de concretizar no interior. “Os médicos têm uma tarefa muito mais difícil, verdadeiramente árdua” nestas regiões limítrofes, muito mais que os profissionais de hospitais mais centrais. Entre os muitos agradecimentos e reconhecimentos que fez, o Bastonário quis realçar a presença de Ana Rita Fradique em representação do Conselho Nacional do Médico Interno, dizendo aos colegas como com certeza irão reconhecer a importância deste conselho ao longo do seu internato. “Tudo o que fizeram na faculdade, das aptidões de relacionamento humano, o saber respeitar e considerar os vossos mestres, (…) para tudo se abre um caminho novo de grande realidade e mesmo que tenham estado com doentes”, alertou, “irão agora perceber o peso da responsabilidade” que diferencia o estar perante o doente que deposita a sua confiança no profissional, pois o estar como estudante de medicina é bem diferente do que será agora estar como médico. Carlos Cortes explicou aos colegas como a sua missão, baseada no Juramento de Hipócrates, os ajudará a ultrapassar a frustração por alguma falta de dignificação daquela que devia “ser uma carreira médica adaptada às necessidades do país, à evolução da tecnologia e da medicina, e às exigências das pessoas”. “Não esqueçam o aspeto humano, muito além dos muros dos vossos futuros hospitais e centros de saúde, há uma realidade em que mais de 2 milhões de portugueses, ou seja 1 em cada 5, estão na condição de risco de exclusão social, vivendo com menos de 20 euros por dia. Vão encontrar essas pessoas na vossa consulta. (…) Não esqueçam que por trás de cada um deles pode haver um drama humano a considerar”. “E quando estiverem sós na urgência irão refletir sobre as palavras que [todos aqui] vos dirigimos hoje. No Juramento de Hipócrates está lá tudo: a não maleficência, o sentido de justiça, a autonomia, o respeito pelos doentes e, não menos importante, o respeito pelos vossos mestres e vossos discípulos e pelos vossos colegas”. As mensagens finais que deixou foram de esperança: “a esperança que vamos colocar em vós. Não são mais os médicos do futuro. Vocês são os médicos do presente e a partir de agora têm que ser os portadores da esperança que devem transmitir a quem está à volta de vós: as equipas de saúde mas também a quem perdeu a esperança, aos vossos doentes, valorizando a relação medico/doente”. Uma esperança que deverá englobar o sentido de pertença ao sistema de saúde e à Ordem dos Médicos, para os quais o dirigente espera poder ter o contributo para que consigamos ter uma melhor prestação na saúde. E, a estes médicos do presente, pediu: “deem forma ao futuro e sejam felizes”

Proferido em seguida o Juramento por todos os médicos presentes, o Ministro da Saúde, Manuel Pizarro, encerrou a cerimónia, realçando como, se o percurso académico é exigente, o exercício da profissão não será menos. “Estudo e trabalho não são toda a nossa vida mas, numa profissão tao exigente como a nossa, serão sempre uma parte muito significativa da nossa vida”, nomeadamente porque exige-se um empenho total para manter a atualização em face do avanço da medicina. “Os médicos são essenciais à evolução do SNS e da medicina”. Mais uma vez, nesta tarde, foi citado William Osler, desta vez com uma mensagem sobre a essencialidade de estudar e praticar: “Ver pacientes sem ler livros é como navegar sem cartas de marear; mas ler livros sem ver pacientes é a mesma coisa que não navegar de todo”, concluiu, desejando boa viagem aos colegas recém-chegados à profissão.

Na cerimónia estiveram presentes muitos dirigentes da Ordem dos Médicos e outras individualidades, entre as quais, Mónica Fonseca, Vice-Presidente do Conselho Regional do Sul, Mário Lino Barata Raposo Reitor da UBI, Vítor Pereira Presidente da Câmara Municipal da Covilhã e João Pedro Silva, Presidente da Sub-Região da Guarda.