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Informação sobre violência obstétrica

Solicitado a pronunciar-se, o Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia emitiu as seguintes informações:

RESPOSTAS A PERGUNTAS SOBRE VIOLÊNCIA OBSTÉRICA ENVIADA PARA OS MEDIA ENTRE 2018-2020

Violência obstétrica, maus tratos obstétricos ou mau trato obstétrico?

Violência por acção ou omissão?

o consenso dentro da nossa Especialidade vai no sentido de em vez do termo “violência” se adoptar o termo “mau trato” ou “maus tratos” (do anglo-saxónico “mistreating”). O termo “violência” está conotado com agressão física ou psicológica, na forma de abandono, tortura, espancamento, mutilação ou mesmo homicídio, infelizmente uma trágica realidade em muitas partes do mundo; ajusta-se mais aos países em que não se respeitam os direitos humanos, aos quais se tem especialmente dirigido a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO). O termo “mau trato” ou “maus tratos” é mais abrangente e mais adaptável à realidade de países como Portugal; inclui situações de abuso físico ou verbal, falha de prestação de cuidados adequados, negligência, discriminação e/ou recusa de aceitação da autonomia da mulher, depois de devidamente esclarecida sobre os benefícios, os malefícios e a justiça distributiva/social das suas decisões. Vale a pena sublinhar que tanto é uma forma de mau trato realizar uma intervenção desnecessária como não a realizar, privando a grávida dos cuidados adequados.

 

Evolução histórica recente dos indicadores dos cuidados obstétricos em Portugal.

Sinais de confiança para todas as grávidas e famílias. Sinais de orgulho nacional.

Para não recuarmos muito no tempo, em 1970, em Portugal, 63% dos partos eram não hospitalares; muitas mulheres passavam dias em trabalho de parto, no domicílio, longe de tudo, muitas vezes abandonadas, exaustas, desidratadas, sem recurso a qualquer analgesia e aí faleciam, mães e filhos, ou ficavam com sequelas para toda a vida; a ratio de mortalidade materna era de 73,4/100.000 nascimentos vivos e a mortalidade perinatal de 38,9/1.000 nascimentos, uma das piores da Europa; nos hospitais raramente havia condições dignas de dormida, de higiene, de analgesia e de relação entre as grávidas e o pessoal de saúde, escasso e sem meios adequados; os pais não podiam acompanhar as grávidas.  Nos anos 1980, 1990 e 2000, os partos fora do hospital passaram para 26%, 3% e 0,03%, respetivamente; a ratio de mortalidade materna para 19/100.000, 10,3/100.000 e 2,5/100.000, respetivamente; a mortalidade perinatal para 23,8/1.000, 12,4/1.000 e 6,2/1.000, respetivamente. Atualmente, em Portugal, todas as grávidas têm acesso a todo o tipo de diagnósticos e terapêuticas, incluindo acesso universal a analgesia do parto, com possibilidade de presença de acompanhante durante o parto e pós-parto.

 

Maus tratos ou mau-trato  obstétricos nos serviços de saúde em Portugal?
Portugal está seguramente entre os países do mundo onde se regista um menor número de maus tratos durante a gravidez. Há certamente aspetos a melhorar, mas não devemos deixar que nos confundam e que se crie um ambiente de crispação entre as grávidas, as suas famílias e os profissionais de saúde. À Ordem dos Médicos chegam queixas esporádicas de experiências negativas, designadamente de transmissão de más notícias de forma inapropriada, particularmente quando há um mau desfecho obstétrico, e de intervenções percecionadas pela grávida como desnecessárias, tais como a realização de toques vaginais, de epidural ou de episiotomia; pelo contrário, outras vezes chegam queixas, também esporádicas, de não se ter atuado mais cedo e não se ter sido mais intervencionista. Quase sempre, constata-se que foram cumpridas as boas práticas e que “mau trato” teria sido não se terem providenciado as intervenções que se realizaram, mas também é verdade de que o acolhimento e a comunicação com as grávidas e com as suas famílias nem sempre se faz de forma digna, com disponibilidade de tempo, instalações e meios de comunicação adequados.

 

O trato obstétrico é diferente nos sistemas público e privado ?

Como se disse, o número de queixas que chega ao Colégio da Especialidade por maus tratos é esporádico não sendo detetaveis diferenças entre o sistema público e privado. Pequenas queixas, de atrasos no atendimento, relação mais ou menos atenciosa, dificuldades de comunicação existem sempre, seja no público, seja no privado. O sistema público tem de assegurar cuidados equitativos a todas as grávidas, com urgências abertas 24 horas por dia e com horários laborais pré-definidos. Tal só é possível com uma organização com equipas fixas que funcionem por turnos de forma organizada, com protocolos de atuação clínica uniformizados que possam ser cumpridos por todos. Dessa forma, só por coincidência é que uma grávida terá o parto com os profissionais de saúde que a atenderem durante a gravidez. Acresce que as equipas têm de aasistir ao mesmo tempo a todo o serviço com que se depararam, umas vezes de forma tranquila, outras vezes em situações de rotura com casos de vida ou morte pela frente. Esta organização é universal, equitativa, muito eficaz e segura, mas é potencialmente geradora de tensões e conflitos, nomeadamente no momento tão especial e emocional do parto.

Por outro lado, no sistema privado, a grávida pode escolher a equipa médica que vai assistir ao parto e programar formas de intervenção mais adaptadas às suas preferências, dentro dos referencias de boas práticas, naturalmente. Neste modelo, cada parto é um momento verdadeiramente único, na medida em que a equipa médica é única para cada caso.

O sistema público é também o grande formador de profissionais de saúde, sem os quais não é obviamente possível prestar qualquer tipo de cuidados médicos. Assim, em quase todos os serviços públicos existem sempre em formação, licenciados em ciências médicas (os estudantes de medicina dos últimos anos já são licenciados), médicos internos, médicos especialistas, estudantes de enfermagem, enfermeiros em especialização e enfermeiros especialistas, que aumentam o número de pessoas que poderão assistir (passiva ou ativamente) ao parto, obviamente, sempre de forma organizada, tutelada e centrado no melhor interesse das grávidas.

Embora nos serviços privados seja cada vez maior o número de atividades de formação, é ainda relativamente reduzido o movimento de pessoas envolvidas, quando comparado com o público.

 

A quem compete analisar e divulgar os indicadores de saúde obstétricos ?

Às direções clínicas das Unidades de Saúde, DGS-Direção Geral da Saúde, ERS-Entidade Reguladora da Saúde e ACSS-Administração Central dos Serviços de Saúde (Artºs 3.º e 4.º, Portaria n.º 310/2016, Diário da República, 1.ª série — N.º 236 — 12 de dezembro de 2016)

 

 

O que se faz a nível da formação médica no âmbito

O que é que ainda falta ou se poderia ainda fazer ?

Qual a melhor forma de combater este problema ?
Há duas linhas que importa desenvolver. Uma linha, consiste num esforço contínuo de bom acolhimento e comunicação com as grávidas e as suas famílias, sem esquecer o necessário provimento dos serviços com pessoal bem formado e em número adequado (pessoal mal formado e/ou exausto não presta bons serviços). A outra linha, consiste na necessidade de combater protagonismos e populismos, alimentados por pessoas sem a devida preparação obstétrica, que confundem e minam a relação fundamental de confiança que deve existir entre os profissionais de saúde, as grávidas e as suas famílias.

 

O que é que as grávidas e respetivas famílias devem e não devem fazer?

As grávidas e as famílias devem informar-se junto de fontes credíveis, sem dar ouvidos a fontes manipuladoras, confiar nos profissionais de saúde e colocar-lhes as suas dúvidas e expetativas, seja com os profissionais com quem contactam mais diretamente, seja com os responsáveis pelos serviços, seja presencialmente, seja pela resposta aos inquéritos de satisfação anónimos que normalmente lhes são distribuídos, nos serviços.

Sim, a todas as reclamações devidamente fundamentadas, depois de ouvidas e ponderadas explicações por fontes credíveis. Não, a reclamações sem fundamento que envolvem custos consideráveis e que ocupam muitas horas os serviços e os profissionais, subtraindo-lhes tempo para a resolução de problemas prioritários. Uma reclamação apresentada numa unidade de saúde começa por entrar num gabinete próprio; segue para o conselho de administração, para o responsável profissional, diretor clínico, enfermeiro diretor ou administrador de outros recursos humanos; prossegue para os diretores de serviço e daí para os profissionais envolvidos, que terão de pedir os registos clínicos e responder; a informação faz depois o percurso inverso, com as devidas informações complementares, depois de tudo lido e analisado; finalmente o processo é enviado para a ERS e daí, eventualmente para o IGAS (Inspeção Geral das atividades de saúde – Ministério da Saúde, as ordens profissionais e/ou os tribunais).

 

https://sigarra.up.pt/fmup/pt/ucurr_geral.ficha_uc_view?pv_ocorrencia_id=463334