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Incompatibilidades

ASSUNTO: DESPACHO DO MINISTRO DA SAÚDE
INCOMPATIBILIDADE DO EXERCÍCIO DE FUNÇÕES DE COORDENAÇÃO E DIRECÇÃO EM INSTITUIÇÕES PRIVADAS PRESTADORAS DE CUIDADOS DE SAÚDE POR PARTE DE PROFISSIONAIS PERTENCENTES A INSTITUIÇÕES INTEGRADAS NO SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE

INFORMAÇÃO

Foi presente a este Departamento Jurídico, para análise e emissão de parecer, o despacho do Ministro da Saúde, datado de 5 de Dezembro de 2006, sobre a incompatibilidade do exercício de funções de coordenação e direcção em instituições privadas prestadoras de cuidados de saúde por parte de profissionais pertencentes a instituições integradas no Serviço Nacional de Saúde.
Vejamos, antes de mais, o teor do dito despacho, tal como nos foi transmitido.
“O exercício de funções dirigentes em entidades privadas prestadoras de cuidados de saúde, por profissionais de instituições integradas no Serviço Nacional de Saúde (SNS), independentemente da sua natureza jurídica, é passível de comprometer a isenção e imparcialidade com o consequente risco de prejuízo efectivo para o interesse público, conforme genericamente admitido no n.º 2 do artigo 20.º do estatuto do SNS, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 11/93.
Assim, ao abrigo do artigo 6.º do regime jurídico da gestão hospitalar, aprovado pela Lei n.º 27/2002, de 8 de Novembro, e da alínea b) do n.º 1 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 233/2005, de 29 de Dezembro, entendo de transmitir as seguintes orientações e directrizes:
1 – O exercício efectivo de funções de coordenação e direcção, independentemente da sua natureza e forma jurídica, em instituições privadas prestadoras de cuidados de saúde, por profissionais pertencentes a instituições integradas no Serviço Nacional de Saúde (SNS), sujeitos, ou não, ao regime da administração pública, deve ser sempre considerado incompatível.
2 – Devem os conselhos de administração das Administrações Regionais de Saúde e instituições integradas no SNS proceder em conformidade e, em caso de dúvida, solicitar esclarecimentos à Secretaria-Geral do Ministério da Saúde.
3 – Os órgãos referidos no número antecedente procedem à avaliação das situações actuais uniformizando-as com o presente despacho.”

Da natureza do despacho
Importa, pois, antes de mais qualificar, sob o ponto de vista jurídico, o acto que resulta do despacho em apreciação.
Para tanto e sem grandes delongas, há que ressaltar desde já que estamos no domínio das relações entre pessoas públicas distintas, todas elas com um grau relevante de autonomia administrativa.
Essa personalidade e autonomia excluem qualquer relação de dependência hierárquica do Governo e significam que, salvo em casos excepcionais, aos seus órgãos dirigentes é dado regerem-se por si próprios e praticarem actos administrativos definitivos.
A harmonização entre os interesses que prosseguem e aqueles de que cura o Governo, enquanto principal órgão do ente público Estado, não é realizada por via da cadeia hierárquica, mas da chamada tutela administrativa, que genericamente consiste num poder de intervenção na gestão das pessoas colectivas autónomas nas matérias que a lei estabelecer como abertas a essa intervenção.
De há muito que se considera que a tutela administrativa nunca se presume.
O Governo, enquanto órgão tutelar, só pode intervir “quando e como” a lei expressamente o dispuser, sendo indispensável pesquisar na lei a extensão, em concreto, dos poderes de tutela existentes.
Ora, pela letra do despacho em causa, o Ministro da Saúde invoca, precisamente, o exercício dos poderes de tutela e superintendência que detém relativamente aos Hospitais.
Com efeito, o actual Regime Jurídico da Gestão Hospitalar, aprovado pela Lei n.º 27/2002, de 8 de Novembro atribui amplos poderes de tutela ao Ministro da Saúde, os quais constam quer do art.º 6.º1, quer do art.º 12.º2.
Por seu lado, o D.L. 233/2005, de 29 de Dezembro, que concretizou a transformação dos hospitais que tinham a natureza de sociedades anónimas de capitais exclusivamente públicos em entidades públicas empresariais, também atribui poderes de superintendência ao Ministro da Saúde, no seu art.º 6.º .
Como se disse, a tutela administrativa consiste no conjunto dos poderes de intervenção de uma pessoa colectiva pública na gestão de outra pessoa colectiva, a fim de assegurar a legalidade ou o mérito da sua actuação.
Por sua vez, a superintendência é o poder conferido ao Estado, ou a outra pessoa colectiva de fins múltiplos, de definir os objectivos e guiar a actuação das pessoas colectivas públicas de fins singulares colocadas por lei na sua dependência.

A superintendência difere do poder de direcção, típico da hierarquia e é menos forte do que ele, porque o poder de direcção do superior hierárquico consiste na faculdade de dar ordens, a que corresponde o dever de obediência a essas mesmas ordens, enquanto a superintendência se traduz apenas numa faculdade de emitir directivas ou recomendações.
A diferença, do ponto de vista jurídico, entre ordens, directivas e recomendações é que as ordens são comandos concretos, específicos e determinados, que impõem a necessidade de adoptar imediata e completamente uma certa conduta; as directivas são orientações genéricas, que definem imperativamente os objectivos a cumprir pelos seus destinatários, mas que lhes deixam liberdade de decisão quanto aos meios a utilizar e às formas a adoptar para atingir esses objectivos; e as recomendações são conselhos emitidos sem a força de qualquer sanção para a hipótese do não cumprimento.
Conclui-se, pois, que na sua forma, o despacho do Ministro da Saúde não constitui uma ordem, no sentido supra, mas antes uma directiva.
Nessa medida, qualquer acto que seja praticado neste âmbito terá, forçosamente, de ser proferido pelos conselhos de administração das diversas instituições envolvidas e a quem o despacho se dirige, porquanto as directivas e recomendações apenas produzem efeitos interorgânicos e não afectam, directamente, a posição de terceiros, ainda que estes sejam funcionários, agentes ou trabalhadores.
Ou seja, os Conselhos de Administração terão de proferir os actos necessários ao desencadear dos procedimentos dirigidos aos funcionários, pois só na sua presença poderão os interessados reagir, se assim o entenderem.
O que ficou dito refere-se ao aspecto formal do despacho. Importa, contudo, verificar se, do ponto de vista substancial, o teor do despacho corresponde efectivamente a uma orientação ou directiva genérica.
Detenhamo-nos, pois, no seu conteúdo: 1- O exercício efectivo de funções de coordenação e direcção, independentemente da sua natureza e forma jurídica, em instituições privadas prestadoras de cuidados de saúde, por profissionais pertencentes a instituições integradas no Serviço Nacional de Saúde (SNS), sujeitos, ou não, ao regime da administração pública, deve ser sempre considerado incompatível.
2- Devem os conselhos de administração das Administrações Regionais de Saúde e instituições integradas no SNS proceder em conformidade e, em caso de dúvida, solicitar esclarecimentos à Secretaria-Geral do Ministério da Saúde.
Como resulta do texto sublinhado, não estamos perante qualquer orientação genérica, mas antes diante de uma instrução concreta e precisa, sem qualquer margem de discricionariedade na sua aplicação.
Ou seja, não se trata de um objectivo a prosseguir imperativamente, mas de uma ordem em que a actividade a prosseguir por parte dos órgãos das pessoas colectivas tuteladas consiste no apuramento da situação de facto de cada um dos visados.
É verdade que sob o ponto de vista jurídico é discutível a aplicação de qualquer sanção para o incumprimento deste comando por parte dos órgãos de administração das instituições, mas sabemos que do ponto de vista político, a “sanção” existe.
Da legalidade substancial
Analisemos, agora o conteúdo efectivo deste despacho, por forma apurar a sua conformidade face à legislação vigente.
Importa aqui ressaltar que apesar do despacho se referir ao universo global dos funcionários, agentes e trabalhadores das instituições em causa, independentemente da sua formação de base, a nossa análise vai obviamente restringir-se aos médicos.
Assim e nesta perspectiva, vejamos os normativos legais que lhes são aplicáveis.
É o seguinte o teor da Base XXXI da Lei de Bases da Saúde – Lei 48/90, de 24 de Agosto, sob a epígrafe “Estatuto dos profissionais de saúde do Serviço Nacional de Saúde”:
1 – Os profissionais de saúde que trabalham no Serviço Nacional de Saúde estão submetidos às regras próprias da Administração Pública e podem constituir-se em corpos especiais, sendo alargado o regime laboral aplicável, de futuro, à Lei do Contrato Individual de Trabalho e à contratação colectiva de trabalho.
2 – A lei estabelece, na medida do que seja necessário, as regras próprias sobre o estatuto dos profissionais de saúde, o qual deve ser adequado ao exercício das funções e delimitado pela ética e deontologia profissionais.
3 – Aos profissionais dos quadros do Serviço Nacional de Saúde é permitido, sem prejuízo das normas que regulam o regime de trabalho de dedicação exclusiva, exercer a actividade privada, não podendo dela resultar para o Serviço Nacional de Saúde qualquer responsabilidade pelos encargos resultantes dos cuidados por esta forma prestados aos seus beneficiários.
4 – É assegurada formação permanente aos profissionais de saúde.
(Sublinhados nossos).
Do preceito transcrito resulta, com particular acuidade do seu n.º 3, que os médicos do SNS podem livremente exercer actividade privada, excepto quando se encontrem em regime da dedicação exclusiva, situação em que naturalmente terão de respeitar este regime.
Não obstante, o art.º 20.º do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, aprovado pelo D.L. 11/93, de 15/01, reafirmando a possibilidade dos médicos exercerem actividade privada tal como previsto na Lei de Bases da Saúde, estabeleceu algumas incompatibilidades:
1 – Aos profissionais dos quadros do SNS é permitido, nos termos da lei, o exercício de actividade privada, desde que dela não resultem, designadamente em virtude de contrato ou convenção, quaisquer responsabilidades do SNS pelos encargos correspondentes aos cuidados prestados aos beneficiários.
2 – Em qualquer caso, o exercício de actividades exteriores depende sempre da compatibilidade de horário, do não comprometimento da isenção e imparcialidade do funcionário ou agente e da inexistência de prejuízo efectivo para o interesse público.
3 – Sem prejuízo do disposto no número anterior, os médicos membros de órgãos máximos de gestão e de direcção de estabelecimentos e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde (SNS), com excepção dos membros dos conselhos de administração das administrações regionais de saúde, podem utilizar a faculdade conferida pelo n.º 1 do artigo 32.º do Decreto-Lei n.º 73/90, de 6 de Março, para o atendimento a doentes privados e, bem assim, exercer a sua actividade profissional, de forma não regular e remunerada, no âmbito das especialidades e instituições integradas nas seguintes redes:
a) Rede de prestação de cuidados de saúde, definida nos termos do n.º 2 do artigo 1.º do regime jurídico da gestão hospitalar, aprovado pela Lei n.º 27/2002, de 8 de Novembro;
b) Rede de prestação de cuidados de saúde primários, definida nos termos do n.º 1 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 60/2003, de 1 de Abril;
c) Rede de cuidados de saúde continuados, definida nos termos do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 281/2003, de 8 de Novembro, quanto aos estabelecimentos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do mesmo diploma.
4 – A faculdade a que se refere o número anterior depende de autorização a conceder por despacho do Ministro da Saúde, mediante requerimento do interessado.
(Os n.ºs 3 e 4 foram introduzidos pelo Decreto-Lei n.º 223/2004, de 03.12.)
As ditas incompatibilidades, constantes do n.º 2 do citado art.º 20.º são perfeitamente razoáveis e decorrem até da natureza das coisas: o horário do médico no SNS tem de ser respeitado e cumprido, a isenção e imparcialidade do funcionário, agente ou trabalhador não pode ser afectada e o interesse público também não poderá ser prejudicado.
De resto correspondem grosso modo ao estabelecido no n.º 3 do art.º 12.º do D.L 184/89, de 2 de Junho, que determina que “O exercício de funções na Administração Pública é incompatível com o exercício de quaisquer outras actividades que:
a) Sejam consideradas incompatíveis por lei;
b) Tenham um horário total ou parcialmente coincidente com o do exercício da função pública;
c) Sejam susceptíveis de comprometer a imparcialidade exigida pelo interesse público no exercício de funções públicas.”
Todavia, para apurar como é que o interesse público poderá ser afectado negativamente, torna-se necessária uma avaliação casuística.
Ora, o que o despacho em causa faz é uma afirmação genérica: sempre que um médico, de algum modo vinculado a instituições do SNS, exerça funções de coordenação e direcção – qualquer que seja a sua natureza e forma jurídica – em instituições privadas de cuidados de saúde, está a prejudicar o interesse público e, consequentemente, tal actividade é incompatível com a sua vinculação à instituição do SNS.
Tal afirmação é contrária aos preceitos que temos vindo a citar e, consequentemente, é ilegal.
Mais: consideramos que o despacho citado, ao contrário do que a sua letra afirma, consubstancia uma norma.
Na verdade, as normas regulamentares caracterizam-se face ao acto administrativo pela sua generalidade e abstracção.
Entende-se por generalidade a susceptibilidade de aplicação do dispositivo a um número indeterminado e indeterminável de pessoas não singularizadas a priori e por abstracção a susceptibilidade de aplicação da hipótese a um número inconcreto de casos.
E, na verdade, o despacho é susceptível de ser aplicado a um número indeterminado e indeterminável de pessoas e a um número indefinido de casos.
E tendo características normativas, a sua elaboração e aprovação não seguiu as formalidades previstas na lei, designadamente o disposto no art.º 112.º da Constituição que assim também se mostra violado.
Na sequência do que ficou dito, são de prever consequências gravosas para os médicos e importa definir os meios de reacção possíveis ao alcance da Ordem dos Médicos.
Neste momento, aconselhamos a que o Despacho seja submetido à apreciação do Provedor de Justiça para efeitos de emissão de uma eventual recomendação ao Governo.
Por outro lado, e sendo certo que estamos perante um acto de cariz normativo, sugerimos também que se requeira ao Ministério Público, nos termos do artigo 73.º, n.º3 do CPTA, o pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral.
Por último importa, ainda, fazer uma referência aos médicos que possam ser objecto de aplicação do despacho.
Como já referimos, a execução do despacho ou, como nos parece, o uso da norma depende da prática de actos concretos de aplicação, pelo que, de acordo com o CPTA, não nos parece possível a sua impugnação imediata por parte dos lesados, mas tão só aquando da sua efectiva aplicação a um caso.
Acresce que as situações concretas de cada médico podem ser muito distintas, até pelos diferentes vínculos que podem existir entre os médicos e as instituições hospitalares onde trabalham.
Na verdade, há que ter presente a existência de médicos que têm contrato de trabalho e de médicos que são funcionários ou agentes da Administração Pública.
Significa isto que só perante cada situação concreta poderemos emitir uma opinião relativa à forma de reacção à aplicação do despacho.
Ou seja, cada médico terá de, por si próprio, desencadear os meios de defesa adequados à sua situação específica.
Tal não obsta, contudo, a que seja dado a conhecer aos interessados o teor da presente informação, bem como dos mecanismos que a Ordem dos Médicos por si só desencadeie.
Esta é, salvo melhor, a nossa opinião.

A Consultora Jurídica

Paula Quintas
2007-01-04

 

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