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João Manuel Bentes de Jesus(1929-2021)

    Homenagem

    Soube há momentos que tinha acabado de morrer na CUF o médico exemplar que toda a vida foi, João Manuel Bentes de Jesus.

    Aquilo que me ligou a ele foi o exemplo mais claro da seriedade, do conhecimento, da dedicação total do que era ser médico. E falar dele e de quem ele era e sempre foi, obriga-me a falar de mim e dele.

    De como o conheci, de como ele me conheceu, de como me ajudou e me fez cirurgião e de como nasceu uma amizade que se perpetuou, mesmo que afastada longo tempo.

    Falar do meu amigo Bentes de Jesus é quase falar de um pai profissional que nunca me falhou, nem eu nunca esqueci ou abandonei.

    Tudo começou na minha vinda de Coimbra para Lisboa, para fazer o estágio e tese de licenciatura. Fui um desconhecido que caiu num lugar agreste e totalmente diferente do que até aí tinha sido a minha vida.

    Logo após estar inscrito na Ordem dos Médicos com a minha cédula profissional 9114, percebi que o meu caminho passava pelo concurso ao Internato Geral, nos Hospitais Civis de Lisboa. Como igualmente percebi que tinha de melhorar os meus conhecimentos e preparar-me para a luta que iria travar, para ser um dos poucos que iriam conseguir entrar nos HCL.

    Passei a frequentar, como voluntário, o que então era considerado o melhor Serviço de Clínica Médica, chefiado pelo Dr. Carlos George. Era um serviço exemplar, exigente e que ensinava realmente. Logo pelas oito horas da manhã, Carlos George empurrava as portas à cowboy da Enfermaria e iniciava a visita, acompanhado pelos seus internos e pelo voluntário que eu era e onde o interno encarregado de cada doente, lia a história clínica e depois escutava a opinião do chefe que, com grande frequência, mandava repetir a história clínica, tivesse ela sido escrita e lida por um interno graduado ou um interno geral.

    Esse voluntariado de quase um ano, ajudou-me definitivamente a estar preparado para ser admitido no Internato Geral.

    E após esse ingresso fui colocado no Serviço 1 de Medicina e no Serviço 6 de Cirurgia do Hospital dos Capuchos, sob a chefia do Dr. Fortunato Levy.

    E foi ali que conheci pela primeira vez o Dr. Bentes de Jesus, então já Graduado e sob a chefia do Prof. Mendes Ferreira.

    E fui colocado na Equipe do Banco de S. José, sob a chefia do Dr. Fausto Cansado, onde estava colocado também o Dr. Bentes de Jesus. E por absoluta coincidência foi-me atribuída uma cama num quarto de quatro camas, onde descansavam, quando podiam, os Drs. João Villalobos, Bentes de Jesus e Carlos Alves Pereira, (este último ainda não Graduado) e o maçarico que era eu.

    Foi com enorme satisfação que ali comecei a trabalhar, dando e fazendo o melhor que podia e tinha de fazer. Aquilo nada tinha a ver com Coimbra. Havia uma hierarquia, é certo, mas muito diferente da ao tempo, pesporrência coimbrã.

    A grande mesa de jantar era presidida pelo chefe da equipe e aqueles que tinham disponibilidade de ir jantar, sentavam-se naturalmente no lugar que lhes competia, não estabelecido ou marcado por qualquer ordem, mas por que cada um tinha a noção do seu lugar. Era evidente que á direita ou esquerda do chefe, se sentavam os graduados e algumas vezes os atrevidos, que também os havia.

    Já nesse tempo, Bentes de Jesus se distinguia, sem nada fazer por isso, mas pela sua actuação e qualidade, nunca exibida, mas executada como devia ser.

    E era evidente que o próprio chefe de equipe, tinha por ele um grande respeito e na maioria das situações graves, tudo fazia para que fosse Bentes de Jesus a resolver os problemas.

    Bentes de Jesus foi sempre igual a si próprio. Sempre discreto, sempre presente onde era necessário e onde seria o mais capaz, educado com toda a gente e adorado por todos, dos mais básicos funcionários, aos enfermeiros e aos colegas.

    Nem uma réstia de vaidade, nem de soberba, apenas aquela maneira de ser e de se comportar, transpirando honestidade, sabedoria, capacidade de decisão, serenidade bastante e entrega total à profissão.

    Logo que o conheci, foi o mesmo que tirar-lhe um retrato a cores.

    Passou a ser aquele que eu admirava e respeitava. Desde logo e sempre, foi cordato comigo e uma empatia natural ficou imediatamente para sempre, mesmo muito tempo antes de ter a oportunidade de o conhecer ainda melhor e perceber que a integridade que eu lhe reconhecia, quase excedia os limites da perfeição.

    O primeiro sinal dessa integridade ocorreu no Banco de S. José, quando um dia eu me queixei ao chefe de equipe de que aquilo que se afirmava com frequência e que seria manter uma igualdade ou equilíbrio na distribuição das ajudas nas intervenções cirúrgicas, pelos destinados à cirurgia, não estava a funcionar no que a mim dizia respeito.

    Como habitualmente fazia, abriu a enorme folha de papel almaço onde colocava cruzinhas naqueles que acabavam de fazer ajudas, nas casas respeitantes ao tipo de intervenção.

    Quando me queixei, Fausto Cansado abriu a folha, mostrou o mapa e disse – como pode ver tem tantas cruzes como os outros!

    Contestei de imediato, afirmando que não tinha colaborado naquelas intervenções ali assinaladas a meu favor.

    A resposta foi que – deveria ter sucedido você estar ocupado na pequena cirurgia e ter ido outro por si!

    Logo contrapus que nesse caso, a cruz não deveria ser colocada na minha coluna, mas na de quem colaborou. O sistema na distribuição das ajudas, afinal não correspondia à realidade.

    E logo nesse instante resolvi entrar em greve, em todos os momentos que tivesse livres. E logo que isso sucedia eu ia para o quarto e ficava a estudar enquanto não me chamavam.

    Sucedeu nesse tempo de protestos que Bentes de Jesus tenha ido ao quarto, buscar algo que precisava e passado algum tempo, numa outra vez que isso sucedeu, Bentes de Jesus não aguentou e disse-me em tom de espanto – o que se passa consigo, Vieira Reis? Você que é um trabalhador incansável, sempre disposto a trabalhar e a ajudar e agora, já duas ou três vezes que aqui venho, encontro-o deitado a estudar. O que se passa?

    E eu contei o que se tinha passado e a minha decisão de protesto contra uma situação que se presumia honesta e justa, mas que o não era na realidade.

    Bentes de Jesus, ouviu, não comentou e apenas me disse – penso que sabe que vou concorrer a Assistente, no próximo concurso. Se eu for o escolhido nas provas, o Vieira Reis quer ficar a trabalhar na minha equipe?

    A resposta foi simples, imediata e fechada – Claro que sim e muito obrigado pela confiança. E nunca mais voltamos a falar nisso.

    Começou a guerra colonial e eu fui parar a Moçambique, à cidade da Beira, como ajudante de cirurgião do Dr. Jardim Buhler que eu já conhecia de quando estive no Serviço 6 do Hospital dos Capuchos, juntamente com o Dr. Bentes de Jesus, mas que era uma figura muito diferente dele, no estar e no ser.

    Passados quase dois anos, o Buhler disse-me que tinha tido notícia de que o Dr. Bentes de Jesus tinha ficado em primeiro lugar no concurso e perguntou-me se queria mandar juntamente com ele, um telegrama de parabéns. Claro que sim.

    Passados uns dias depois recebi uma curta carta do Dr. Bentes de Jesus em que me dava conta da sua justa vitória e onde me perguntava quando é que eu ia regressar, porque, como me tinha dito, estava à minha espera.

    E é aqui que eu quero louvar a qualidade de um homem que, naturalmente assediado por fontes várias para constituir a sua equipe, já que ser escolhido por um chefe, especialmente com a sua qualidade, era um caminho desejável por todos e não tendo ele qualquer dificuldade em constituir uma equipe, não esqueceu a palavra dada dois anos antes.

    Mas Bentes de Jesus foi sempre igual a si próprio – uma só palavra. Para ele, o convite tinha sido feito a um jovem interno, deitado na cama em protesto e greve e ainda por cima, então ausente em Moçambique.

    E nunca mais, depois daquele convite, nunca mais nenhum deles tinha falado nisso. Bentes de Jesus, era Bentes de Jesus. Antes e depois. Palavra dada uma só vez. Palavra honrada, por quem era assim, inteiro e íntegro.

    O meu regresso foi felizmente antecipado e eu pude ter o prazer e a honra de ter entrado com ele no que ia ser o seu e agora também o meu Serviço, o 3 de S. José. E mais me honrou quando quis decidir comigo quais os colegas a convidar. Entraram para a equipe, os Drs. Henrique Botelho, Leotte Nobre e Rui Bento.

    Mas Bentes de Jesus não era só isso, era muito mais do que isso. Com ele aprendi e nunca mais deixei de o fazer, que seguir um doente é nunca o abandonar, seja sábado ou domingo, mesmo que todos nós tenhamos direito a descansar ou divertir-nos. Isso é verdade, mas mais verdade é o seguir os doentes todos os dias em que precisam de nós.

    Nos fins de semana íamos os dois, ora no carro de um ou do outro, visitar todos os doentes. Parávamos no Areeiro para tomarmos café ou à porta do Império para a bica e um queque império. E daí seguíamos para S. José onde víamos todos os doentes e depois seguíamos para o Hospital do Ultramar quando ali havia doentes operados, já que ali fazíamos também uma consulta, por decisão do Prof. Mendes Ferreira que também era lá o director. Depois podia haver ainda a Ordem Terceira, o Hospital Inglês ou outros.

    Regressávamos às nossas casas à hora de almoço, felizes connosco mesmos.

    Bentes de Jesus passou a chefiar uma das equipes de banco e naturalmente três dos seus colaboradores do Serviço 3 também passaram a prestar ali serviço, salvo o Dr. Henrique Botelho que estava integrado na equipe do Dr. Viana Barreto e que dessa maneira assegurava o serviço na nossa ausência.

    Com a chefia do Banco, tudo mudou nos dias em que a sua equipe estava de serviço. Não havia uma maca no corredor que não tivesse a assistência continuada, do mesmo modo que todos os doentes do SOB, Serviço de Operados no Banco, eram vistos pelos seus responsáveis todos os dias.

    Bentes de Jesus era um manancial de informação. Os seus ficheiros eram de grande rigor e clareza. Nos seus milhares de fichas, cada uma delas tinha uma espécie de resumo e uma clara indicação sobre o seu interesse, com indicações sobre o que devia ser consultado – o artigo todo, a etiologia, a técnica e por aí fora. Curiosamente, no que respeitava a artigos publicados nos HCL, o seu registo não se encontrava no ficheiro geral, mas num pequeno livro da Merck.

    Consultei muitas vezes o seu ficheiro quando Bentes de Jesus se encontrava nos Estados Unidos e me deixou a chave de sua casa, para eu poder consultar os ficheiros, para meu interesse ou para ajudar colegas em concurso, nomeadamente para o de assistente do Dr. Botelho de Sousa.

    Bentes de Jesus estava sempre actualizado e tinha sempre um artigo à mão para ler, quando por exemplo almoçava em S. José e ia lendo o que podia.

    Os tempos eram outros e ainda não havia a época das publicações. Bentes de Jesus não publicou muito, nem tinha tempo para isso. Mas sempre teve tempo para ensinar e ajudar todos os que dele precisavam.

    Nunca faltou à sua palavra. Era frequente o pessoal do hospital pedir-lhe para ser ele próprio a operar um familiar ou amigo. Pois Bentes de Jesus sempre cumpriu o prometido e nunca usou o engodo de entregar a alguém esse serviço.

    Outra coisa lhe devo e que cumpri sempre, enquanto operei. Nunca falhei um registo de operações com todas as indicações – de quem, o quê, o como, o resultado, quem anestesiou, quem ajudou, resultado final. Hoje, olhando os 28 livros encadernados com os milhares de folhas dos registos operatórios que correspondem a trinta anos de cirurgia (o primeiro e o último englobando mais do que um ano), são a correcta imagem do que Bentes de Jesus me contou quando regressou dos EUA, dizendo que segundo o director de serviço americano, a vida de um cirurgião tinha 30 anos, em que dez eram para crescer, dez para estar e dez para cair.

    Foi isso que eu fiz e de que me arrependi depois. E não foi, de todo, o que ele fez, pois não conseguia abandonar a sua profissão e nem os seus doentes o permitiram. Mesmo depois de ter abandonado S. José, logo se entregou por inteiro à CUF, onde todos o adoravam e confiavam inteiramente nele.

    A sua própria figura deixava transparecer o que ele era – um homem perfeitamente confiável, desde sempre e para sempre.

    Infelizmente para mim, que tinha sido apanhado nas redes do Exército, tive de abandonar S. José e o meu Chefe, por impossibilidade de acumulação de funções.

    Esse corte deixou-me marcas que permaneceram para sempre – o respeito e gratidão por quem me melhorara, por quem fez de mim um cirurgião capaz de responder à avalanche de uma guerra colonial, em que durante 14 meses passaram pelas minhas mãos setenta e cinco por cento dos feridos. Nunca lhe falei nisto. Mas, seguramente ele teria gostado de o saber.

    Passaram muitos anos em que só nos encontrávamos esporadicamente, mas esteve sempre presente e nada quebrou a nossa ligação.

    Há 3 ou 4 meses estivemos a falar ao telefone mais de uma hora seguida e ficou ainda a esperança de irmos almoçar no fim da pandemia.

    Fiquei tão satisfeito com essa hipótese que o escrevi num livro que estava a terminar.

    Já não vai suceder, mas o João Manuel Bentes de Jesus, meu amigo e mestre, continuará sempre presente e um destes dias lá onde está, nos encontraremos para sempre.

    Carlos Vieira Reis

    Datas

    Nome completo: JOÃO MANUEL BENTES DE JESUS
    Cédula :   7259
    Especialidade: CIRURGIA GERAL, GASTRENTEROLOGIA
    Data de nascimento: 01/02/1929
    Data de formatura: 08/11/1952
    Faculdade: UNIVERSIDADE DE LISBOA
    Data de inscrição na OM: 21/11/1952
    Data de falecimento: 23/01/2021

    Nota: a OM assegura aos herdeiros os direitos de acesso, retificação e apagamento destes dados pessoais.

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