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FUTURO DAS JUNTAS MÉDICAS DE AVALIAÇÃO DE INCAPACIDADE EM PORTUGAL

UMA VISÃO DIFERENTE SOBRE O FUTURO DAS JUNTAS MÉDICAS DE AVALIAÇÃO DE INCAPACIDADE EM PORTUGAL

RESUMO
O futuro da (re) composição, organização e funcionamento das Juntas Médicas de Avaliação de Incapacidade é muito incerto e aguarda uma decisão política que tarda em aparecer. Entre defensores e detractores, faz-se uma reflexão sobre o interesse ou não, que se mantenha sob a alçada da carreira de Saúde Pública.

AUTOR Ismael Selemane
Médico especialista em Saúde Pública; Unidade de Saúde Pública; Unidade Local de Saúde do Litoral Alentejano, EPE; Centro de Saúde de Grândola; https://orcid.org/0000-0002-1680-8309

“A sensibilização sobre incapacidade deve ser incluída no currículo de todos os que trabalham e investigam em saúde”
In: Disability—a neglected issue in public health, The Lancet Public Health, June 2021

Estou à beira da reforma da função pública (mas não da Saúde Pública), após ter exercido o cargo de Presidente da Junta Médica de Avaliação de Incapacidades (JMAI) do Litoral Alentejano durante mais de 25 anos desde a sua génese a 23/10/1996, integrado na Sub-Região de Saúde de Setúbal e mais tarde na Unidade Local de Saúde do Alentejo Litoral (ULSLA), 9 anos como Vogal Efectivo na Junta Médica de Incapacidade de Recurso do Alentejo e 2 anos nas Juntas Médicas “ad hoc” criadas durante a pandemia [1] o que me confere (alguma) autoridade para me pronunciar sobre o tema.
Por força do Artº 7º, nº 2, do Decreto-Lei nº 1/2022 de 3 de janeiro, o regime transitório previsto no Artº 5º do  Dec-Lei 10-A/2020 de 13 de Março, que estabeleceu em plena pandemia o regime excepcional de composição das juntas médicas de avaliação das pessoas com deficiência (JMAI) iria caducar a 31/12/2022, o que significa que a partir de 1 de Janeiro 2023 tudo deveria ficar como antes da pandemia, o que não aconteceu nem vai acontecer.
Sob pena de pecar por omissão, achei por bem deixar aqui a minha opinião, fruto do saber cumulativo sobre a avaliação de doenças crónicas incapacitantes, que tive o cuidado de condensar e consolidar em brochura da minha autoria, com a colaboração generosa de vários colegas com quem me cruzei neste longo percurso.
Numa fase em que ainda nada foi decidido a este propósito, deixo aqui e para a posteridade, alguns pontos de reflexão sobre o assunto, chamando a atenção de que qualquer decisão que nos ponha à margem do processo, particularmente os antigos Presidentes das JMAI de todo o país, seria com certeza insensata, historicamente errada e lesiva dos interesses da saúde em geral e da saúde pública em particular, pelos  seguintes motivos:
1. A especialidade em Saúde Pública (SP) não é uma área exclusiva da medicina mas antes transversal e inclusiva de muitas outras competências.
2. Em Portugal, as condições de acesso a um Mestrado ou Doutoramento em Saúde Pública estão abertas a um leque muito alargado de licenciaturas desde Medicina, Enfermagem, Psicologia, Veterinária, etc.
3. A nível global, onde o escrutínio e exigência de formação e experiência em Saúde Pública é ainda mais exigente, o actual Director da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus, que foi Ministro da Saúde da Etiópia entre 2005-2012, é biólogo de formação e doutorado em Saúde Comunitária pela Universidade de Nottingham, Reino Unido.
4. Todavia, os actuais especialistas em SP no nosso país são todos médicos de formação e carregaremos eternamente esse genótipo que decorre do móbil que nos levou a escolher a medicina em particular como profissão e a saúde em geral como missão!
5. A hipótese ventilada de entrega das JMAI de bandeja à Segurança Social, que já demonstrou durante a pandemia nada perceber de saúde pública e muito menos de medicina, vai beneficiar muitos médicos especialistas de outra áreas, em detrimento de todos os médicos de saúde pública que ainda possam interessar-se por esta área na vertente clínica, de investigação em SP e porque não, de incentivo e suplemento remuneratório.
6. Acho tal passagem de testemunho o cúmulo de ingratidão da nossa tutela, depois de todos estes anos em que estivémos sobrecarregados a dar o corpo ao manifesto por esta área querida por alguns e detestada por outros.
7. A “avaliação individual” não seria jamais feita melhor por quaisquer médicos de outras competências ou especialidades, visto que nenhum deles dominam o espectro total das XVI disciplinas/capítulos da Tabela Nacional de Incapacidades, de longe superior ao espectro solar do arco-íris.
8. É uma falácia dizer que as JMI  “não se enquadram nas competências dos médicos especialistas de saúde pública, nem do seu perfil de intervenção na comunidade” [2]
9. A secção de “Disability”; é desde 2007 uma área de “atenção especial” da APHA (American Public Health Association), a organização mais antiga e influente de Saúde Pública do mundo [3, 4]
10. Mais de 1 bilião de pessoas, cerca de 15% da população mundial, tem alguma forma de incapacidade, tendo a recente pandemia posto a nu as desigualdades no seu seio [5]
11. Em qualquer profissão, só alcançamos a excelência quando o acto se torna um hábito, depois de repetido as vezes necessárias!
12. Sem fazer-se JMI não se conhece de todo a realidade das doenças crónicas incapacitantes em Portugal.
13. A informação preciosa e ímpar contida nos processos de JMAI é mais uma das principais razões para a minha defesa da sua manutenção sob a nossa alçada, visto permitir a investigação translacional, comprovada pelas inúmeras vezes em que fui solicitado a autorizar o livre acesso e consulta dos processos das nossas JMAI para trabalhos de investigação de internos de Saúde Pública e outros profissionais. E todos nós sabemos quão difícil é por vezes ter acesso a informação credível para elaborar trabalhos de investigação.
14. As JMAI são de facto um repositório e fonte singular de informações e oportunidades para os médicos de Saúde Pública (e outros) fazerem investigação sobre as Doenças Crónicas e Incapacitantes, que são o nosso principal desafio para o (s) século (s) vindouros, uma vez que o problema das Doenças Agudas já foi resolvido desde há muito com o modelo de saúde actualmente existente !
15. Nos últimos 10 anos, acompanhei com particular atenção o crescimento galopante de doenças do foro oncológico em geral, hematológico e neurológico, que poderão ser objecto da nossa investigação epidemiológica.
16. Em suma, o especialista de saúde pública deveria ter a liberdade de escolher as “doenças crónicas incapacitantes” como subespecialidade, tendo as Juntas Médicas de Incapacidade como repositório e fonte de aprendizagem e porque não também, como fonte de incentivo e suplemento remuneratório.
E a pandemia trouxe até consigo um novo paradigma muito útil, a do teletrabalho e avaliação não presencial !
A experiência dos meus cerca de 2 anos em avaliações não presenciais, com mais de 1.200 processos avaliados online até hoje, permitem-me concluir que elas são de longe mais produtivas e “up to date” do que as avaliações presenciais, visto que à excepção dos utentes seguidos no privado, permitem actualizar a informação clínica do utente em tempo real através da plataforma do SCLINICO-CS, Área do Profissional do Registo de Saúde Eletrónico (RSE-AP).
Depois da avaliação não presencial e instrução do processo, este é enviado para a Junta Médica de Incapacidade validar presencialmente o grau de incapacidade.

Assim, salvo outra opinião mais douta e esclarecida, sou a propôr:
1. As JMAI deveriam continuar sob a alçada e coordenação das Unidades de Saúde Pública integradas nas  Unidades dos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACeS) e Unidades Locais de Saúde (ULS) .
2. As JMAI seriam constituidas não sómente por Autoridades de Saúde como até agora, mas antes por médicos especialistas em Saúde Pública ou na sua falta por outros médicos especialistas interessados nesta área, incluindo os já aposentados, tendo como presidente um especialista em Saúde Pública, de preferência com comprovada participação em JMAI ou formação em dano corporal, cuja nomeação
seria como até agora por despacho do delegado de saúde regional.
3. As avaliações passariam a ser efectuadas à distância, a partir da documentação clínica entregue pelo utente no Centro de Saúde, cuja informação pode e deve ser complementada através da plataforma do “SCLINICO-CSP”, Área do Profissional do Registo de Saúde Eletrónico (RSE-AP), podendo as dúvidas sobre a situação clínica serem tiradas via telefónica ou muito excepcionalmente através de consulta presencial (ex. sequelas complexas do Aparelho Locomotor), posteriormente validadas presencialmente em sede de Junta Médica convocada no prazo máximo de 60 dias.
4. A remuneração do trabalho seria efectuada nos moldes actuais em avenças / horas extraordinárias fora do horário normal de serviço ou ainda pelo valor actualmente em vigor nas Juntas Médicas da Segurança Social.

REFERÊNCIAS
1. Decreto-Lei 10-A/2020 de 13 de Março
2. Comunicado da Direcção do Colégio de Especialidade de Saúde Pública, Ordem do Médicos, 2022
3. https://www.apha.org/apha-communities/member-sections/disability-section.
4. Rimmer JH. Building a future in disability and public health. Disabil Health J. 2011 Jan;4(1):6-11. doi: 10.1016/j.dhjo.2010.04.001. PMID: 21168801.
5. The Lancet Public Health. Disability-a neglected issue in public health. Lancet Public Health. 2021 Jun;6(6):e346. doi: 10.1016/S2468-2667(21)00109-2. PMID: 34051158.