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Eutanásia e Médicos

Autor: M.M. Camilo Sequeira, Internista aposentado

A eutanásia é motivo de reflexão há muito tempo principalmente depois de legalizada pelos países do Benelux. Mas a aparente violência do conceito tem justificado a sua defesa utilizando designações alternativas que lhe retirem o ónus dessa violência.

Por isto mesmo me tenho interrogado sobre se, quando falam de eutanásia, cada um dos interlocutores estará a referir-se exactamente ao mesmo problema que os outros. Ou seja se não será grande o risco de usando diversas expressões alternativas a uma palavra estarem, de facto, a defender (ou atacar) um assunto diferente.

Os quais por mais próximos que sejam, se forem diferentes, não são a mesma coisa.

Começo pois esta reflexão com a definição de eutanásia. Que de forma simples é apenas isto: um homicídio apoiado pela Lei de alguém que se julga querer morrer.

Admito que a alguns talvez pareça bizarro que um crime, o homicídio, possa ter o beneplácito da Lei. Mas de facto tem, exactamente como em muitas outras situações se entende o crime como uma forma de bem fazer à sociedade.

Homicídios com o suporte da Lei

Desde sempre a justiça castigou com a morte um certo número de crimes ou de conflitos entre quem tem o poder no momento e quem o não tem.

Os carrascos que encapuçados cortaram a cabeça a tantos homens e mulheres até bem perto de nós eram homicidas e tinham toda a legitimidade para o serem. Pois antes do seu homicídio um ou vários magistrados, ou algum detentor da verdade dominante na época, determinou que a vítima fosse morta por terceiro, o homicida directo, a bem da nação.

Mas hoje os países onde se aplica a pena de morte continuam a legitimar o acto homicida dos executores do castigo. E fazem-no depois de alguém com essa autoridade e competência ter decidido, nos termos da Lei, que a morte, o homicídio do condenado, é a pena adequada ao seu crime.

Se a morte for por enforcamento o homicida executor é alguém que passará uma corda pelo pescoço do condenado, que o coloca sobre um alçapão e que acciona a alavanca que o abre para provocar a morte. E este homicida executor tanto pode ser um profissional, alguém com formação específica para aquele tipo de crime, como pode ser homicida apenas em tempo parcial ou seja alguém solicitado para aquele trabalho apenas quando for necessário. E será então um comum carteiro, um comum marçano ou um comum operário ou técnico que, ocasionalmente, é convocado para levar a cabo o crime talvez satisfeito por assim poder melhorar o seu salário. Que será escasso para as necessidades da família. Ou talvez seja antes alguém que, com um bom ordenado, considera a função de homicida naquele contexto como uma forma de cumprir um dever social para benefício de todos os seus compatriotas.

Se a morte for por injecção de “medicamento” letal também há uma decisão de magistrados ou de quem detenha o seu poder e saber jurídicos, os homicidas decisores, e um homicida executor que será quem, após punção venosa, injecta o produto letal.

Mas neste homicídio em particular o executor escolhido já não é qualquer cidadão interessado em o ser mas antes o membro do grupo profissional “Médicos” (?). Quiçá porque a punção de um vaso foi até há tempos atrás um acto médico. Foi! Já não é. Hoje são competentes e autónomos para realizarem punções de vasos, venosos ou arteriais, para lá dos Médicos, pelo menos os Enfermeiros e os Técnicos de Análises Clínicas. Mas não parece que os decisores jurídicos, políticos ou profissionais, tenham pensado nisto.

Mas há mais. No meio militar o crime de alta traição (e talvez outros que ignoro) é apreciado em Tribunal de Juízes militares que têm autoridade para decidir que a pena do seu parceiro profissional que é julgado deve ser um homicídio por fuzilamento levado a cabo por outros militares.

Um militar profissional, que dará a ordem de disparo e um grupo de militares de ocasião, talvez a cumprirem o serviço obrigatório, que farão os disparos assim ficando, cada um deles, com uma parte da responsabilidade desse homicídio. Estes serão cozinheiros, canalizadores, estudantes, desempregados, talvez professores penalizados, sei lá. Mas sei que poucos se preocuparão com o que poderá ser a sua vida futura se o homicídio não for compreendido por estes com o mesmo aparente desprendimento de quem o decidiu.

Mas não é sobre isto que quero reflectir. É sobre eutanásia.

Então que têm estes exemplos a ver com a eutanásia?

Muito. Têm em comum o serem todos homicídios com suporte legal. E têm ainda em comum, nalguns casos, a vontade de morrer dos que são mortos por estes terceiros. Talvez sejam poucos. Mas basta um para tornar o problema igual.

Vamos assumir que todos os condenados à morte são culpados. Não é uma verdade científica mas creio que todos os decisores de uma pena judicial de homicídio acreditarão que possuíam a verdade em relação ao problema que apreciaram.

Sendo assim é possível que alguns dos condenados face ao dramático do seu crime, face à sua irreversibilidade, face aos sofrimentos que infligiram e nos quais só agora pensam, enfim, face a uma qualquer revelação religiosa ou cívica que os atingiu, percebam que não conseguirão continuar a viver com o peso do remorso e ou do ódio a si mesmos. Perceberão, talvez com pavor, que apenas a morte os libertará do castigo que as suas consciências lhes aplicarão em todas as fracções de segundo que continuarem a viver.

Será absurdo admitir que o homicídio que a Lei lhes impõe, o crime legal com que se castiga o seu crime ilegal, será também a única forma de se libertarem de um sofrimento permanente? De um sofrimento, de facto, sem alternativa, sem compensação, sem tratamento?

E neste caso não se trata de eutanásia? Matar alguém que quer conscientemente morrer, por motivo compreensível, com o apoio da Lei?

Médicos

O Médico é um profissional que ao ser considerado autónomo para a sua actividade teve de fazer um compromisso com a sociedade que só é simples na aparência: o seu trabalho “é” interpretar sinais e sintomas procurando incessantemente associá-los a uma doença, “é” aliviar sofrimento, sempre, e também “é”, se possível, curar doenças.

É um compromisso social e individualmente “pesado”: porque demasiadas vezes os sinais não identificam a doença embora, felizmente, desapareçam durante o tempo das suas investigação e contínua interpretação; o alívio de sofrimento é um propósito sempre presente mas que por vezes (uma só será demais na perspectiva do cuidador) não é alcançado por razões diversas quiçá estranhas a quem cuida e a quem procura cuidador; e a cura das doenças continua a ser o desejo maior, simbólico, do Médico. No entanto a longevidade (e outros motivos) tantas vezes considerada resultado deste desejo satisfeito tornou-o hoje cada vez mais difícil de alcançar.

E todavia é neste contexto que a muito grande maioria dos doentes são tratados e que numa elevadíssima percentagem de casos são simbolicamente curados porque, de facto, deixam de ter as queixas que os faziam doentes.

Este compromisso encerra o viver-se Médico num código de honra que nenhum de nós, nem ninguém, tem o direito de anular, distorcer ou interpretar fora do seu literal.

O que impede qualquer Médico de praticar eutanásia.

Não por respeito atávico ao conceito de vida mas porque o seu compromisso identitário o impede de ser cúmplice, de ser parceiro, no assassínio dos seus doentes. Mesmo que a Lei lhe imponha tal exercício.

E se lhe for dito que a morte do doente é vontade deste e que o homicídio é a única forma de aliviar um sofrimento insuportável, continua a não poder fazê-lo. No entanto atentará contra o seu compromisso se ignorar esse sofrimento e não o tratar. Tem de o tratar assumindo, como seu dever inultrapassável, que o efeito colateral provável desse tratamento será a morte do doente. E em processo clínico regista essa atitude terapêutica como outra qualquer.

Um doente que carece de um tratamento tem de ser tratado com a terapêutica correcta. E embora se saiba que qualquer medicação tem efeitos colaterais previsíveis (alguns nem tanto) mais ou menos graves isso nunca impede a administração dos fármacos. “Quando é essa a condição para tratar o que tem de ser tratado”. E dolorosamente entre os muitos efeitos colaterais possíveis a morte pode ser um deles. Mas quando assim é, se o tratamento for o que a arte e a ciência determinam, trata-se o doente sabendo e registando que esse tratamento obtém o alívio da queixa pelo absoluto da sua morte precipitada por um seu efeito colateral. Absoluto como resultado clínico porquanto este tipo de intervenção decorre, habitualmente, em doentes que mesmo morrendo da evolução da doença não têm indicação para ser reanimados.

Mas não tem que ser assim. Este absoluto respeita estritamente ao tipo de doentes e ou doenças sem alternativa de compensação. Quando o doente morre em contexto clínico terapêutico onde há expectativas de recuperação da doença e de retorno ao bem-estar, a morte como efeito colateral da medicação é seguida imediatamente de manobras de reanimação como nova fase do tratamento adequado desse doente.

E é esta pequena diferença que impede o Médico de aceitar participar num homicídio legalmente justificado e desejado pelo doente. O dever do Médico é tratar o doente com os medicamentos que a ciência validou. E se como resultado dessa atitude terapêutica o doente morrer tal tem de ficar bem registado em processo: registar que a medicação correcta acelerou a morte “como era possível ou muito provável que acontecesse”.

O resultado da eutanásia e do tratamento neste tipo de caso clínico é o mesmo. Mas o simbólico é totalmente diferente. Na eutanásia o Médico intervém com o propósito de matar o doente para lhe aliviar o sofrimento e satisfazendo a sua vontade. No acto médico o que se faz é tratar o sofrimento sabendo que a morte é um incidente indesejável cientificamente expectável.

Parecerá a alguns que esta é uma forma hipócrita de não enfrentar uma realidade incómoda. Parece, reconheço-o.

Mas não é! A similitude não torna iguais as circunstâncias porque o objectivo numa perspectiva é matar por misericórdia e na outra é aceitar o risco de morte aquando do propósito de tratar mesmo que a probabilidade desta seja elevadíssima.

Ter vontade de morrer

Aos Médicos, em meu entender, não cabe qualquer direito de afirmar com suporte científico que quem declara querer morrer o quer de facto.

E não é por, preconceituosamente, achar absurdo tal propósito. Nem por lhe parecer pouco natural uma tal vontade por parte de alguém consciente, responsável e respeitável.

Tenho como normativo pessoal que este alguém consciente, responsável e respeitável tem todo o direito de dispor da sua vida encurtando-a por razões que considerará bem apreciadas e por isso justificadíssimas.

Mas já não reconheço a esta consciência lúcida o direito de pretender que seja um Médico a fazê-lo passar da vida para a morte. Que seja um Médico a matá-lo. Que seja um Médico a cometer o crime de homicídio sobre essa consciência, ainda que para satisfazer a sua vontade legítima e tendo a Lei como garante da justiça desse crime. E mesmo que esse desejo seja justificado por doença limitativa ou anuladora da ideia de autonomia e saber, que o doente sempre sentiu como própria durante o tempo em que foi saudável.

Dito de outra forma: para mim não tem qualquer sentido a decisão dos países que legalizaram a eutanásia “de imporem a validação da vontade de morrer do futuro morto a Médicos”. Quer como executores do homicídio quer como autoridades profissionais enquanto membros da comissão técnica que confirmará toda a legitimidade do crime. Nos seus aspectos de correcta aplicação das normas jurídicas e nos que se quiserem entender como clínicos.

A expressão da vontade de morrer continua a chamar-se querer suicidar-se. E o suicídio, em termos clínicos, tem dois significados diferentes: ou é um sinal de doença mental ou é uma vontade reflectida, bem estudada nas suas complexas consequências sociais, enfim, uma decisão de terminar com a vida por razões tidas como adequadas ao que cada um tem como ideia sobre o valor desta.

Sendo dois valores diferentes expressos da mesma forma parece-me natural reconhecer-se a dificuldade em separar uma da outra. E o dramático desta dificuldade é o risco de um erro interpretativo ter duas consequências igualmente graves: uma é não tratarmos a doença de que o desejo suicidário é sintoma; outra é tomar como correcto um desejo de morte que, cientificamente, o será ou não.

É sempre desesperante tomarmos conhecimento da dimensão da nossa ignorância após tantos anos de estudo e com tantos ganhos de saber como os adquiridos nas últimas décadas. Mas por mais incómodo que isso seja o reconhecimento do que não conhecemos tem de estar presente em todas as nossas decisões. E é na expressão da emoção, na compreensão da cognição expressa e na simbolizada, ou até na não expressa que também diz muito, na dificuldade de comunicar ao outro o que lhe queremos, de facto, dizer que a nossa ignorância é quase total.

E exprimir vontade de morrer conscientemente só é verdadeiramente consciente para os que ouvimos essa expressão e a sentimos como se fosse feita por nós. “Eu nesta circunstância quereria morrer por isso se ele ou ela me diz que quer morrer é porque, de facto, o quer”.

Grande mentira. Grande ilusão de boa vontade, quiçá de caridade. Grande equívoco quanto à competência para perceber o que esse outro diz. A verdade é que o não sabemos de certeza certa.

Claro que também é verdade que a decisão clínica é uma construção sobre a incerteza e que isso não impede que se tratem os doentes.

Mas é aqui que está a diferença. A incerteza na decisão clínica é um saber ignorante com que temos de lidar para dar satisfação ao nosso compromisso social, tratar. Mas a incerteza sobre algo que sabemos ter interpretação dúbia que pode estar contaminada pelo nosso preconceito é outro tipo de incerteza. Numa fazemos o que é o nosso dever. Na outra podemos cometer um crime mesmo que isso nunca seja esclarecido. E como o crime não está contemplado no nosso compromisso profissional não o podemos cometer.

Repito: mesmo que protegidos pela Lei, mesmo que ordenados por quem tenha essa autoridade, mesmo que nos pareça que talvez não seja crime.

A justiça da misericórdia

Já disse o que penso sobre o direito de cada cidadão poder decidir viver ou morrer. Já disse que nem discuto as razões que poderão ser justificação para um suicídio consciente seja isto o que for. Já disse que a eutanásia, sendo um homicídio com suporte legal, pode ser legalizada como outros homicídios com o mesmo tipo de suporte. E já disse que no caso desta o acto criminoso não pode ser executado por Médicos porque contraria o seu compromisso social identitário.

E no entanto tenho dúvidas sobre esta questão. Não na precisão dos princípios que enunciei. Mas antes no valor da utilização de normativos da justiça sobre problemáticas de saúde e na misericórdia de se poder eliminar sofrimentos, que supomos insuportáveis, ainda que com recurso à morte.

Limitar-me-ei a um exemplo mas há muitos mais.

O exemplo são as diversas e tão diferentes doenças degenerativas do Sistema Nervoso Central cuja expressão semiológica tanto nos incomoda. Há as que permitem uma consciência lúcida encarcerada num corpo que só o é porque assim o afirmamos. Há as que permitem uma liberdade total de movimentos e, muitas vezes, até de expressão verbal mas com um cérebro que também só o é porque assim o afirmamos.

Para minha surpresa durante toda a minha vida clínica nunca ouvi um destes doentes, mesmo os que estiveram ligados a uma prótese ventilatória durante meses, exprimir vontade de antecipar a morte. Mas muitas vezes me interroguei sobre se aquelas vidas, as conscientes, tinham sentido. Sei que não me cabe o direito de pensar desta forma. Mas a verdade é que o faço.

Também sei que Stephen Hawking faz parte daqueles cuja vida não me parece ter sentido. E bem sabemos como neste caso a vida teve muito sentido. Por isso acho que nada nos permite afirmar que as outras que não tiveram a sua criatividade são diferentes. Mesmo que o meu preconceito o ache.

Não tenho solução para o problema que será, que é, um destes doentes exprimir vontade de morrer se esta for considerada consciente e se a Lei considerar o seu homicídio como um gesto socialmente correcto. Sei que o meu preconceito é favorável à decisão. Exactamente como sei que não deve ser um Médico o homicida executor. Mas tenho dúvidas, muitas e grandes, sobre se o crime com que concordo deve ser realizado.

Porque a inexistência de uma resposta para um problema não pode ser justificação para voluntarismos misericordiosos tidos como “excepcionais” e apenas aplicados naquele caso “excepcional”.

As consequências destes excepcionais são inimagináveis porque a excepção é apenas a primeira justificação de futuras justificações similares que criarão outras excepções.

E a legalização deste tipo de homicídio, ainda que como excepção, é abrir a porta a medidas que agora são impensáveis mas que, num contexto social futuro cuja compreensão nos escapa, se podem tornar cada vez mais normalizadas.

E nenhum de nós que não vai viver nesse futuro pode contribuir para o tornar menos bom do que o presente que hoje consideramos como a civilização mais civilizada que o Homem conseguiu construir.