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Doctor Shopping – o papel do Médico de Família

Autor: Sara DominguesMédica Interna do 4º ano de Formação Específica em MGF (USF Pró-Saúde, ACeS Cávado II Gerês/Cabreira)

 

O fenómeno Doctor Shopping é um fenómeno atual na prática clínica e que me preocupa enquanto futura Médica de Família. A escassez de estudos publicados nesta área não retira, ou não deveria retirar, importância ao tema. Pelo contrário, deve servir de estímulo para refletir e de combustível para investir na compreensão deste fenómeno. Começo por questionar: Quem nunca teve pelo menos um utente que sobreutiliza os recursos de saúde, estando em risco de hiperdiagnósticos e de hipermedicação? Ouso dizer que poucos ou nenhuns. Segue assim, uma pequena proposta de abordagem compreensiva do tema.

A definição de Doctor Shopping é heterogénea na literatura e depende da população em estudo e da estrutura do sistema de saúde. As definições mais consistentes foram utilizadas em estudos sobre uso indevido de opioides.1 Existem várias definições: Hagihara et al2, define como recurso a múltiplos médicos no decurso do mesmo episódio de doença; Pradel et al3 define como o recurso simultâneo a vários médicos pelo mesmo doente; Lineberry and Bostwick4 define como visitas a vários médicos com o objetivo de obter várias prescrições; Shaffer and Moss5 define como várias visitas médicas num curto espaço de tempo com a intenção de enganar e obter medicação que necessita de sucessiva prescrição médica. Embora as definições anteriores revelem alguma variabilidade, todas têm em comum o recurso a vários médicos pelo mesmo utente.  O Doctor shopping pode aumentar a iatrogenia e conferir falsa sensação de bom seguimento em termos de saúde. Ele propicia o uso indevido de medicamentos e a polifarmácia, dificulta a comunicação entre profissionais de saúde e a continuidade de cuidados, prejudicando a gestão da doença.1,6 Está também associado a uso excessivo e desnecessário de exames complementares de diagnóstico, favorecendo uma “cascata diagnóstica”, por vezes sem benefício para o utente. Por último, o excesso de intervenção médica associa-se inevitavelmente a aumento das despesas e a desperdício de recursos em saúde.1,6 As consequências que podem advir deste fenómeno refletem a necessidade de intervir e colocam ao Médico de Família desafios na sua prática clínica.

Para intervir é fundamental identificar os fatores que estimulam este fenómeno. Estes podem estar relacionados com o médico/serviço de saúde e/ou com o utente. No primeiro caso, tempos de espera prolongados, pouca acessibilidade em termos de localização e de horários de funcionamento, tempo insuficiente de comunicação entre médico e doente, postura rígida e pouco empática do médico e não correspondência face às expectativas do utente.1,6 No segundo caso, temos utentes mais jovens, de baixo nível socioeconómico, portadores várias doenças crónicas, polimedicados e com problemas de saúde mental. 1,6 Neste quadro, o problema pode ter dimensão sistémica e carecer de solução que envolva diversos agentes clínicos. No Serviço de Saúde, reconhecendo os fatores de risco anteriormente enunciados, o Médico de Família  assume papel fundamental na prestação de prevenção quaternária, a qual se define como “ a deteção de indivíduos em risco de tratamento excessivo para os proteger de novas intervenções médicas inapropriadas e sugerir-lhes alternativas eticamente aceitáveis”.7 Ou seja, deve investir na prevenção da iatrogenia e da intervenção médica desnecessária, e na advocacia do utente, isto é, na otimização dos recursos utilizados e na articulação adequada entres os diferentes cuidados de saúde. A adoção de uma prática clínica conduzidas por estes princípios pode revelar-se a solução para atenuar ou eliminar o fenómeno de doctor shopping e as suas consequências. É necessário investir numa boa relação médico-doente e capacitar os utentes para tomarem boas decisões em saúde, de forma a evitarem cuidados curativos/preventivos desnecessários.

 

Referências bibliográficas

  1. Biernikiewicz M, et al. Characteristics of doctor-shoppers: a systematic literature review. Journal of Market Access & Health Policy. 2019 March;7:1595953
  2. Hagihara A, et al. A signal detection approach to patient-doctor communication and doctor-
    shopping behaviour among Japanese patients. J Eval Clin Pract. 2005;11:556–567.
  3. Pradel V, et al. Assessment of abuse potential of benzodiazepines from a prescription database using “doctor shopping” as an indicator. CNS Drugs. 2010;24:611–620.
  4. Lineberry TW, Bostwick JM. Taking the physician out of “physician shopping”: a case series of clinical problems associated with internet purchases of medication. Mayo Clin Proc. 2004;79:1031–1034.
  5. Shaffer EG, Moss AH. Physicians’ perceptions of doctor shopping in West Virginia. W V Med J. 2010;106:10–14.
  6. Randy A, et al. Doctor Shopping: A phenomenon of many themes.Innov Clin Neurosci. 2012;9 (11-12):42-46.
  7. Melo M. A prevenção quaternária contra os excessos da Medicina. Rev Port Clin Geral 2007;23:289-93.