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Despacho não, despachem-se!

Artigo da autoria de Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, publicado na revista da APAH de abril/maio/junho de 2020 que pode ser consultada aqui: https://www.yumpu.com/pt/embed/view/xoH5qJVpM9FrDSzU

 

Debates, ciclos de debates. Visitas e roteiros. Grupos de trabalho, coordenações. Livros brancos, livros amarelos, livros de todas as cores. Decretos, portarias, despachos. A recolha de informação, o contacto com o terreno e com os profissionais podem ser essenciais quando queremos conhecer melhor e atuar com conhecimento de causa, seja qual for o setor de atividade – mas, para isso, é essencial que se passe das palavras aos atos. Os estudos e diagnósticos sobre o Serviço Nacional de Saúde são inúmeros. E não são de hoje. Arrisco-me a dizer que se republicarmos agora, praticamente ipsis verbis, um qualquer relatório com 20 anos, quase ninguém notará. Quiçá, nem os protagonistas fará falta alterar, ora vigorando mais acima ou mais abaixo nos autores. Infelizmente, tem sido necessário que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma, evocando Giuseppe Tomasi di Lampedusa.

O Serviço Nacional de Saúde está doente. Já todos o sabemos. Já todos lemos e estudámos sobre este doente. O diagnóstico também não suscita grandes dúvidas. Apesar de existirem vários tratamentos possíveis, pasme-se, pois nem aí os caminhos apontados são assim tão diferentes. Não precisamos de mais um diploma, de mais um “vamos ver, vamos estudar, vamos analisar”. Não precisamos de um despacho, precisamos que se despachem a implementar no terreno as decisões urgentes que a saúde em Portugal exige.

Este grito de alerta é recorrente, mas com a pandemia que atravessamos tornou-se ainda mais notória a necessidade de termos serviços públicos fortes, nomeadamente na área da saúde, até pelo impacto direto que tem na economia. A saúde é o motor da economia e deve ser entendida como um investimento em todos nós e não como um gasto. Mais: com a resposta à COVID-19 muitos atos, como consultas, cirurgias e exames, foram cancelados ou adiados. Muitos doentes nem sequer conseguiram aceder aos cuidados de saúde para um primeiro contacto, necessário para virem a integrar as listas de espera.

As primeiras contas possíveis são assustadoras. Entre março e maio de 2020, por comparação com os mesmos meses de 2019, fizeram-se menos 378.638 primeiras consultas hospitalares e menos 518.014 consultas subsequentes. Depois, 93.301 doentes não foram operados. Nos cuidados de saúde primários registaram-se menos 3.045.495 consultas presenciais e menos 30.005 domicílios. A isto podemos ainda juntar a quebra de 591.137 episódios de urgências, com um impacto de menos 29% nos doentes triados com pulseira vermelha, 37% nos laranjas, 45% nos amarelos e 45% também nos verdes.

Tenho-me referido a este facto como a outra pandemia, a pandemia dos outros doentes que nem sequer conseguimos contabilizar, mas que têm doenças tão ou mais urgentes, com inevitável impacto na morbilidade e mortalidade. Mais grave, em muitos casos estamos a falar de doentes sem nome e sem rosto. Se podemos saber que uma cirurgia marcada não se realizou, muito mais difícil será identificar quem ficou pelo caminho por nem sequer entrar nas listas de espera ou de cancelamentos.

Tudo isto agudizou a necessidade de olharmos para a saúde como a joia da coroa, sem esquecer também a importância de se apostar mais do que nunca numa resposta para a saúde mental e para todas as patologias que em cenário de crise sabemos que se agravam. É urgente um plano de retoma sem preconceitos ideológicos, que se foque tão só e apenas em resolver o problema dos doentes, que crie novas estratégias para recuperar os sem rosto que ficaram para trás e que só voltarão a ter uma oportunidade se o SNS for pró-ativo a tentar encontrá-los.

Infelizmente não foi esta preocupação que encontrámos no orçamento suplementar apresentado e que deixa o Serviço Nacional de Saúde, literalmente, a ver aviões. Para a saúde foram destinados 504,4 milhões de euros, para a TAP 1200 milhões. O valor destinado à saúde não permite recuperar o que se perdeu nestes três meses e o que se continuará a perder, tanto por via da pandemia propriamente dita como de todas as medidas de proteção adicionais que continuarão a vigorar e que implicam mais espaçamento de doentes e mais despesa em equipamentos de proteção individual. Já para não relembrar a suborçamentação crónica existente há largos anos.

O que foi destinado à saúde não vai ao encontro do que os portugueses entendem como prioritário para as suas vidas e que têm vindo a reportar em várias sondagens. O que foi destinado à saúde não contribui para a valorização dos profissionais e da qualidade, apesar de ser neles que os cidadãos confiam. Atente-se à mais recente sondagem publicada pela Intercampus e em que os portugueses reconheceram o trabalho do primeiro-ministro na pandemia – e bem –, mas em que colocaram no topo os profissionais de saúde, que receberam a avaliação mais elevada, com 77% dos portugueses a dizerem que os médicos, enfermeiros e auxiliares de saúde estiveram “muito bem” na luta contra o novo coronavírus e com 21% a dizerem que estiveram “bem”, o que perfaz um total de 98% de avaliações positivas. Os profissionais de saúde foram, aliás, os únicos a merecer a nota máxima de forma tão expressiva.

Mesmo o SNS, que recebeu a segunda maior taxa de resposta de “muito bem”, só obteve 32%. O “bem” fixou-se nos 56%, perfazendo um total de 88% de reconhecimento ao trabalho das unidades de saúde. O terceiro lugar foi para o Primeiro-Ministro, com 27% de “muito bem” e 58% de “bem” (total de 85% de avaliações positivas). O Presidente da República surgiu em quarto lugar, com um total de 81% de avaliações positivas (27% muito bem e 54% bem). Em quinto lugar os portugueses colocaram a Ministra da Saúde, com 21% de “muito bem” e 51% de bem (total de 72%). O último lugar coube à Diretora-Geral da Saúde, que recolheu apenas 18% de “muito bem” e 47% de “bem”, num total de 65%.

Sem populismos e demagogias – a saúde é demasiado importante para ser arma política, ouçamos o que nos pedem os portugueses e o que corroboram os profissionais que estão no terreno todos os dias a fazer o SNS acontecer. Não há números mágicos e a tarefa não se esgotará nunca. Mas há 10 medidas urgentes e que permitiriam recolocar o SNS no caminho certo e que foram recentemente integradas no movimento SOS SNS, ao qual a Ordem dos Médicos se associou com a Ordem dos Farmacêuticos, pelo amplo consenso que geram e pela forma como permitiriam continuar a honrar a história de sucesso da saúde em Portugal. Sintetizemo-las:

1. Garantir médico de família e equipa de saúde para todos os cidadãos;

2. Aumentar o acesso a todos os cuidados de saúde e através de Programa Excecional resolver as listas de espera para cirurgias, consultas e exames complementares de diagnóstico e terapêutica, num exercício de apuramento real das necessidades e de aproveitamento dos recursos existentes;

3. Desenvolver Vias Verdes Clínicas abertas e Vias Verdes com o apoio da telemedicina promovendo uma melhor articulação entre os cuidados de saúde primários e os cuidados hospitalares;

4. Integrar e expandir a hospitalização domiciliária, promovendo a telemedicina e desenvolvendo serviços específicos para assistência no domicílio, em articulação com o sistema de saúde e as associações de doentes;

5. Equipar as unidades de saúde e integrar aplicações móveis para aperfeiçoar e desenvolver a medicina à distância na monitorização e seguimento de doentes crónicos;

6. Garantir proximidade na dispensa de medicamentos.

7. Garantir o acesso à inovação terapêutica e tecnológica;

8. Projeto 10 milhões de Portugueses – mais literacia, mais prevenção, mais participação;

9. Reforçar a governação clínica das unidades de saúde, valorizar os profissionais e reorganizar os serviços hospitalares em unidades de cuidados integrados e centros de responsabilidade integrados;

10. Evoluir para um orçamento público da Saúde em % PIB equivalente à média da UE, com uma lei de meios e orçamentação plurianual.

É hora de fazer acontecer. Despachemo-nos enquanto é tempo. Se fizer falta um despacho, que se publique com efeitos retroativos, justificando-se que o doente era grave e corria risco iminente de vida.

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