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Congresso à mesa | Dia 4

 

A SOCIEDADE PORTUGUESA EM RESPOSTA À PANDEMIA: 3 “OLHARES”

O que têm em comum médicos, líderes associativos e doentes que tiveram COVID-19? Experiências para partilhar acerca da pandemia. Em cada perfil dissemelhante, um olhar diferente. Mas com a certeza que só “juntos”, ampliando visões, podemos ultrapassar positivamente os momentos mais difíceis que a humanidade está ainda a atravessar.

Foi com este princípio que se juntou numa mesa o diretor do serviço de Doenças Infeciosas do Centro Hospitalar e Universitário de São João, António Sarmento, o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, e a especialista em comunicação de saúde, Marina Caldas que esteve presente, neste caso, como testemunho de um doente que esteve infetado pelo vírus SARS-CoV-2.

A moderação esteve a cargo da presidente da comissão organizadora do congresso, Catarina Matias, e da assessora de comunicação da Ordem dos Médicos, Romana Borja-Santos. Com as boas-vindas oferecidas pela primeira e a apresentação dos oradores feita pela segunda, António Sarmento tomou a palavra para começar por agradecer, “como médico e cidadão”, a forma como o bastonário da Ordem dos Médicos tem “pugnado sempre pela qualidade da medicina”.

O infeciologista elencou vários desafios que a COVID-19, enquanto doença nova e, consequentemente, desconhecida na altura do seu surgimento, acarretou para a sociedade em geral e para os profissionais de saúde em particular. Um dos pilares da sua intervenção foi a problemática da “decisão na incerteza”. Como exemplo, no início da pandemia, António Sarmento explicou que existiram recomendações da própria Organização Mundial de Saúde em termos farmacológicos e de recomendação de terapêuticas que se vieram a revelar, mais tarde, “inúteis” para a doença. O mesmo se passou, um pouco por todo o mundo, com critérios de internamento, critérios de internamento em cuidados intensivos, critérios de utilização de ventilação invasiva ou de fármacos experimentais.

Quando não se sabe tudo, é preciso decidir com o que se sabe, garantiu. “Decidir na incerteza” fez parte do quotidiano de muitos médicos durante todo o ano de 2020 e, em certa medida, continuará a ser assim, pois a ciência não nos dá todas as respostas dentro dos tempos ideais.

Dando o exemplo do Hospital de São João no que toca à atuação, planeamento e antecipação, Sarmento explicou que se definiram “critérios para distinguir doentes prioritários de doentes ligeiros”, o que acabou por permitir, numa altura embrionária, tratar a maior parte dos doentes em casa. “Assim foi possível ter camas de enfermaria suficientes” para os doentes que realmente precisavam. Em relação às camas de cuidados intensivos “também conseguimos lidar com a situação de um modo geral, apesar de termos tido algumas situações dramáticas”. 

O orador rejeitou o “medo” e a “negligência” na forma como se olha para a pandemia, lembrando um episódio em que num incêndio numa discoteca morreram cerca de 100 pessoas espezinhadas e nenhuma morreu queimada.

Na dimensão do medo, mostrou algumas fotografias com os fatos de proteção individual que os profissionais de saúde utilizavam no início do aumento de casos em Portugal. “Eram excessivos e assustavam os doentes, além de fazerem os profissionais perderem muito tempo”. Já na dimensão da negligência os exemplos são mais recentes e podem ser atestados em qualquer tipo de ajuntamento desordeiro e sem condições de segurança. “Os nossos governantes erraram várias vezes” na prevenção de situações simulares às descritas, considerou.

Com palavras críticas sobre como a sociedade trata os idosos e sobre as más condições de habitação pelas quais ainda estão sujeitas muitas pessoas, o médico do São João lançou um dado curioso sobre a síndrome de burnout, citando um estudo americano. Ao contrário do que se pensava anteriormente, o burnout não “discrimina” faixas etárias, está sim mais interligado com as “motivações”. No caso dos médicos, afiançou, há dois tipos de motivações: as intrínsecas, relacionadas com a vontade em ajudar o próximo, e as extrínsecas que têm a ver com o prestígio social, salário ou visibilidade. “Mas, na maior parte dos médicos, as razões são sempre intrínsecas” e isso ficou claro quando, mesmo com melhores salários, o burnout (no cenário americano do estudo citado) não melhorava.

“Os pilares do trabalho médico são a autonomia, o bom relacionamento com os seus doentes e a capacidade de aprendizagem contínua”. Quando “estes valores médicos” estão em dissonância com os valores das instituições onde trabalham existe uma “discrepância” e é isso que gera burnout. “Espantosamente”, relevou, há estudos que revelam que o burnout diminui com a pandemia. Os motivos? Maior autonomia, mais envolvimento e valorização.

Num “olhar” diferente, Marina Caldas contou a sua experiência enquanto doente – grave – devido à COVID-19. “No início pensei que era uma gripe”, até que os sintomas foram piorando e, depois de teste, o resultado viria a dar positivo.

“Foi uma sensação de que não tinha nada”, mesmo quando “já não me levantava, nem falava”, contou. Marina Caldas é doente crónica e passou por maus momentos com os dois pulmões gravemente afetados pelo SARS-CoV-2. Felizmente, de acordo com a especialista em comunicação de saúde, os médicos tiveram um papel essencial para lhe salvar a vida e para estar neste congresso a contar a sua experiência.

Restava o bastonário da Ordem dos Médicos destapar um pouco o véu do “olhar” da Ordem nesta pandemia. Miguel Guimarães recordou que criou um gabinete de crise em janeiro de 2020, sem ainda haver nenhum caso de infeção em Portugal, e numa altura em que as autoridades achavam que o vírus não teria a importância que veio a ter.

“A Ordem fez muitas coisas em termos de antecipação”. Desde logo, a 2 de março “emitimos as primeiras recomendações”. “Se algumas tivessem sido seguidas, provavelmente alguns dos nossos doentes não-COVID estariam melhor e tinham tido cuidados de saúde em tempo útil”, refletiu. O mesmo dia ficou marcado pela recomendação da Ordem dos Médicos de que as reuniões científicas e congressos deixassem de ser presenciais temporariamente. “Foi uma medida elogiada na Europa, simbólica, mas importante”. “Os médicos foram os primeiros a alertar que a situação era grave e que seria importante tomar medidas antes que o vírus tomasse conta de nós”.