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“Carta Aberta ao novo Ministro da Saúde em estilo de dedicatória aos meus doentes e a todos os infetados por VIH em Portugal”

Autor: José MD Poças (Médico especialista em Medicina Interna, Infeciologia e Medicina do Viajante; Diretor do Serviço de Doenças Infeciosas do CHS em Setúbal; Médico Assistente da única doente que, em Portugal, está a ser medicada com antiretrovirais injetáveis)

 

Texto

A luta do homem contra o Poder é a luta da memória contra o esquecimento” (Milan Kundera, escritor checo, 1929- )

O Estado existe para realizar o que é útil. O indivíduo, para realizar o que é belo” (Oscar Wilde, escritor irlandês, 1894-1900)

A única dignidade realmente autêntica é a que não diminui ante a indiferença dos outros” (Daag Hammarskjold, político sueco, 1905-1961)

A missão não é leve: Cada homem é responsável pelo mundo inteiro” (Clarice Lispector, escritora brasileira de origem ucraniana, 1920-1977)

 

A política do medicamente no nosso País carece, a meu ver, de ser aperfeiçoada. Ao INFARMED, a quem cabe fazer a vital farmacovigilância e proceder ao complexo processo de introdução dos novos medicamentos, cabe, ainda, a missão de negociar o seu preço de venda e o respetivo regime de comparticipação, o que me parece que deveria ser antes feito por outro organismo público. Assim, o INFARMED dever-se-ia focar exclusivamente na garantia de que os medicamentos que os doentes tomam não estão falsificados no que concerne à sua composição química, para não acontecer aquilo que se passa infelizmente em imensos países do Mundo, com eventuais consequências logicamente trágicas, através da realização de análises aleatórias frequentes, e, também, avaliar da efetiva mais-valia das novas moléculas propostas para introdução pela indústria farmacêutica, pois trata-se de processos em que não se utilizam outros critérios que não os científicos. O que é muito importante para que, tanto médicos, como farmacêuticos ou doentes tenham a imprescindível garantia da sua eficácia terapêutica. Fazer coincidir naquele mesmo organismo a outra componente, essencialmente de índole económica e financeira, não me parece lógico, podendo, inclusive, causar dificuldades evitáveis aos dois processos decisórios, dado que, neste último caso, a decisão é muito mais política do que científica.

Em todos os relatórios nacionais e internacionais divulgados, Portugal é dos países que acolhe mais tardiamente a denominada inovação terapêutica, tal como, no contexto comunitário europeu, é dos que tem menor participação em ensaios clínicos (dos que são da iniciativa da indústria farmacêutica, e, mais ainda, dos que são independentes dela), o que pode ser explicado por muitos fatores, nos quais aquilo que referi nos parágrafos anteriores tem, também, na minha opinião, um peso que não será nada despiciente.

Os critérios utilizados para classificar um determinado medicamento como sendo uma verdadeira inovação farmacológica, devem também ser revistos. Restringi-los “apenas” aos denominados medicamentos órfãos (como aconteceu na recente Pandemia de SARS CoV-2), às moléculas com mecanismos de ação diferentes das já existentes, ou às que demonstrem um aumento da eficácia terapêutica nos ensaios clínicos de registo, em comparação com as que já foram antes introduzidas, é hoje completamente desajustado e insuficiente, sobretudo se se fizer depender disso o seu preço e o respetivo regime de comparticipação a ser atribuído. Evidenciar idêntica eficácia, mas tendo perfiz de farmacodinâmica e de farmacocinética diversos, tal como distintas vias de administração, comportar um maior impacto na qualidade de vida dos doentes, também deveria ser considerado. E, no caso das doenças infeciosas transmissíveis, possuir um perfil de interferência mais vantajoso na dinâmica epidemiológica dos agentes microbianos, também deveria ser tido em conta para esse mesmo processo decisório, o que até, penso, um leigo, intuitivamente entenderá.

Existem muitas outras causas para estas disfuncionalidades, de entre as quais destacaria:

  • Uma sistemática, mas não assumida desconfiança, relativamente ao posicionamento dos organismos oficiais face à indústria farmacêutica, o que me parece ser recíproco, mas que inquina todo o processo decisório relativo à introdução da inovação terapêutica. Seria importante, pois, resolvê-la através de uma maior transparência no relacionamento mútuo, para o que muito poderia contribuir o que inicialmente referi;
  • As Comissões de Ética dos diversos Hospitais, tendo de cumprir a mesma legislação, elaboram pareceres e decisões com base em interpretações distintas da lei e gastando uma quantidade de tempo que, não raramente, torna a participação num ensaio clínico impossível. A título de exemplo, perguntaria porque é que, quando existe um Centro Coordenador num estudo multicêntrico, não basta a avaliação da sua Comissão de Ética, em vez de se exigir a avaliação da de todos os centros participantes?
  • Com o tempo útil dos médicos cada vez mais esgotado no trabalho assistencial, designadamente em obsoletas e desmotivantes exigências burocráticas, com o staff médico cada vez mais reduzido nalguns Serviços dos Hospitais Públicos (como no que dirijo), e, por vezes, com vários dos seus elementos com horários a tempo parcial, como arranjar ainda tempo para integrar projetos de investigação? A que se poderia acrescentar, também, aquele que é obscenamente despendido em tarefas perfeitamente inúteis, como seja o que passou a ser gasto depois da muito recente atualização do sistema de prescrição eletrónica do Ministério da Saúde (PEM) que, sem que os clínicos tenham sido disso notificados com a devida antecedência, alterou a metodologia da prescrição, impedindo a sua renovação automática, mesmo nos casos da prescrição crónica, obrigando a reintroduzi-la na totalidade, medicamento a medicamento, o que faz com que, cada vez mais, o médico, revoltado, perca imenso tempo a olhar para o ecrã do computador em vez de para o doente. O que é uma subversão completa daquilo que deveria ser uma consulta médica, dando a sensação que as autoridades não respeitam nada nem ninguém, sobretudo os médicos e os doentes, em pernicioso contraste com o que deveria ser, ou seja, a materialização de num momento de empatia e de exaltação da tão necessária humanização, capaz de satisfazer ambos os participantes deste tão singular relacionamento, tal como se advoga no Livro “A relação Médico-Doente” editado sob os auspícios da Ordem dos Médicos e do qual fui coautor e Coordenador Editorial, ou se reflete no meu primeiro livro, intitulado “Ode ou Requiem”.

 

Vem tudo isto a propósito da mais do que exasperante e inexplicável demora relativa à finalização do processo de introdução dos antiretrovirais injetáveis em Portugal. Apurou-se muito recentemente, em várias centenas de entrevistas realizadas em dois Hospitais Públicos (um dos quais, o que dirijo) e por uma ONG, que cerca de 2/3 dos doentes infetados, quando questionados se preferiam continuar a tomar medicamentos por via oral diariamente, ou passar a fazer o tratamento da sua infeção com duas injeções intramusculares em simultâneo a cada dois meses, disseram preferir optar por esta última modalidade. Sobretudo, por entenderem que isso diminuiria a indigna estigmatização social associada a esta doença (que, infelizmente, está longe de ter desaparecido), que aumentaria o seu perfil de adesão (que têm a consciência de ser absolutamente vital!!!) e que aumentaria a sua qualidade de vida. Argumentos que deveriam ser suficientes para já se ter posto fim a esta angustiante demora, garantido que está o seu grau de eficácia e o facto de não comportar aumento da despesa para o SNS.

Para além disso, não ter permitido a introdução destes medicamentos até ao momento, vai contra a recentíssima recomendação da OMS (que classifica como prioritária a utilização de um deles na estratégia de PrEP- Profilaxia Pré Exposição), mas, também, o que é gravíssimo, impede literalmente os doentes com incapacidade de deglutição de se tratarem, o que contraria claramente os preceitos constitucionais vigentes, sendo tal, mais próprio de um País que não respeita as regras mais elementares de um verdadeiro Estado de Direito.

 

Terminaria, dizendo que, o que importa verdadeiramente para um Médico (eu ou qualquer colega meu), será que cada doente (a que referi e todos os outros) tenham acesso ao melhor tratamento possível (por maioria de razão, se este for a única opção), e que o seu preço seja justo (de modo a não impedir o reinvestimento de uma parte substancial dos “lucros” da indústria farmacêutica na busca de novas e de melhores soluções para os problemas de saúde dos doentes), e, comportável pela riqueza de cada País ou pelo “bolso” de cada cidadão, dependendo do seu regime de comparticipação. Nem mais. Nem menos.

Será, deste modo, completamente inaceitável que o INFARMED, o Ministério da Saúde e a Indústria Farmacêutica não façam destes valores um autêntico desígnio civilizacional. A si, Sr. Ministro da Saúde, Dr. Manuel Pizarro, tal será um desafio irrecusável por maioria de razão, pois, para além de ser Médico, é também meu colega de uma das especialidades que tenho (Medicina Interna), logo, supostamente muito mais apto para entender os argumentos do que lhe decidi expor. Com coragem. Sem subterfúgios. Porque, caso contrário, não ficaria, de todo, de bem com a minha própria consciência, mesmo sabendo que não está longe o dia em que solicitarei a minha aposentação antecipada.

 

Nota Final: À sua antecessora escrevi muitas cartas abertas, algumas das quais publicadas no meu mais recente livro, “Reflexões em tempos de pandemia: Histórias de vida, de prazer, de sofrimento e de morte”, e, as restantes, no meu site josepocas.com, onde irei colocar esta também e que integrarão o próximo. A si, que acabou de ser investido no cargo de Ministro da Saúde, é a primeira e por mero imperativo de consciência. Daí o título que escolhi e a dedicatória que fiz, pois, assumo, o meu único conflito de interesses profissional de natureza ética é a defesa intransigente dos doentes e da boa prática médica. Não sei quantas mais lhe irei dirigir. Depende de muitos fatores. E, tanto de mim, como de si. O caso clínico da doente a que me refiro na identificação do autor deste texto encerra uma problemática de índole ético-deontológica que desafia o âmago da própria Medicina, como já referi em publicações anteriores, o que me interpelou a promover a organização de um debate que se realizará no dia 30 do corrente mês de setembro, intitulado “Aspetos controversos no controlo epidemiológico das Doenças Infeciosas: Ética, Direito e Saúde Pública” para o qual Vª Exª foi convidado, tal como a Ministra da Justiça e o Sr. Presidente da República. Convite que tenho a expetativa que aceitem. Porque tal seria certamente importante, por poder simbolizar o Vosso compromisso com a resolução efetiva dos candentes problemas que aqui trouxe à coação.

Atentamente, Setúbal, 2022/09/19

O Médico, José MD Poças

 

O artigo “Carta Aberta ao novo Ministro da Saúde em estilo de dedicatória aos meus doentes e a todos os infetados por VIH em Portugal” foi publicado originalmente no jornal Público de 20 de setembro de 2022