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Ascensão e queda do SNS

Autor: João Miguel Nunes “Rocha”

Brama-se nos congressos, quando tal convém, que o 25 de Abril nos trouxe a liberdade, que nos desamordaçou. Mas não obstante recordar o 25 de Abril como um dia feliz, em que não arredei pé do largo do Carmo até Marcelo Caetano ser levado na chaimite, ciente de que os velhos preservam sobretudo as memórias mais antigas, que prezam, lembro-me do antes do dia da libertação, como um tempo em que o decoro, a honradez e a decência ainda tinham valor e havia pudor em relação à censura alheia fundamentada, e era muito pouco provável que o parlamento fervilhasse de sofistas. Ou que a coisa pública pudesse ser delapidada ao erário da nação e cedida a estrangeiros e a intrujões por “clones contemporâneos de Miguel de Vasconcelos”, por subornos tão mesquinhos como as criaturas, e estas, na vez de expostas no pelourinho e submetidas a tratos de polé, fiquem impunes e mantenham os subornos e quem sai a perder, seja sempre o zé!

É claro que muitas coisas eram piores, muito piores algumas, como a saúde, que só servia a quem a pudesse pagar. Abundavam os pobres e nesse tempo a pobreza acompanhava-se de fome verdadeira, mitigada nas cidades onde havia quartéis pela sopa do “barroso”; às vezes via passar à socapa muitos dos meus colegas da primária com a grande panela de que se evolava um cheirinho bom a sopa de feijão bem guarnecida de untos, coiratos e de espessura; olhavam-me de soslaio e eu fingia não os ver para que não se sentissem humilhados, porque sabia e sei, que a pobreza humilha e dói.

Os grandes hospitais públicos, quais fojos de horror, com dezenas de camas separadas por uma mesa de cabeceira metálica, sem qualquer espécie de privacidade entre os doentes que excepto no pino do verão jaziam e tiritavam debaixo dos seus cobertores de um triste cinzento ou castanho escuro. Apesar de tudo nestes antros, ressumar miséria, pejados de mazelas e de sofrimento, era um privilégio ser-se internado, porque se se recorresse a tratamentos privados, mesmo domiciliários, era dizer adeus em meia dúzia de dias às poupanças de toda uma vida e, gastas, curar-se com mesinhas e tisanas (prescritas por ervanárias ou aconselhadas pelas comadres) ou morrer-se ao deus-dará.

Os médicos nesse tempo, mesmo os dos quadros, tinham ordenados parcos, miseráveis, e para terem uma vida razoável, depenicavam de manhã no hospital e à tarde na privada (calcanhar de Aquiles do SNS porque obviamente não se podem servir dois amos de interesses rivais) e como não eram funcionários públicos não beneficiavam da CGA nem da ADSE, possibilidade que só lhes foi dada com a criação do SNS e para muitos colegas (eu inclusive) significou quase deitar fora anos e anos de descontos, pois para a CGA só contava o tempo prévio de trabalho nos hospitais ou na função públicos. E, assim de início periclitante, o  SNS cresceu até um honroso 12º lugar no ranking mundial graças ao empenho de colegas mais velhos com vocação didática e também e sobretudo ao entusiasmo, dedicação, estudo e trabalho dos internos das especialidades hospitalares e, das outras claro, e ao grande desenvolvimento das tecnologias e das terapêuticas, apanágio quotidiano, da era informática…

Com a reputação do SNS em ascensão, apesar de tendencialmente gratuito, ganhou a preferência mesmo das classes abastadas.

Assim como é mais barato comprar ao produtor do que ao mercador, o SNS fica mais barato ao contribuinte, sem intermediários que arrecadem lucros, mas a ganância, esse monstro de olhos crus e cúpidos depressa anteviu as possibilidades subjacentes, e a sua cobiça estendeu os tentáculos que tudo abarcam e querem, desde que luza. E assim começou um ataque mísero e mesquinho ao SNS, tornando as carreiras médicas vulneráveis aos interesses e ao compadrio, as impugnações ineficazes como a nossa justiça, as condições trabalho e as consultas verdadeiros calvários, de onde a eficácia e as boas práticas se sumiram; alteraram-se unilateral e retroactivamente os contratos esboroando-os de direitos e minando-os de falcatruas, esvaindo-os de credibilidade, como em qualquer estado primevo e ditatorial, tornando o êxodo dos médicos inevitável, fixando-os nas grandes clínicas com ordenados principescos, que cairão a pique no dia em que o engodo se tornar desnecessário…

A pandemia veio pôr a nu, o pouco apreço em que se têm os velhos e o pior de tudo é que se está a gerar, mesmo entre os médicos, um fundamentalismo que separa as vidas, em vidas… Os médicos não têm o direito nem a competência de decidir a validade de qualquer vida que não seja a própria. A disseminar-se, tal atitude, em breve tornará os hospitais públicos, lugares perigosos.