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A saúde, a política e as pessoas: o rancor do ex-secretário de Estado da Saúde

Autor: Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos

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A entrevista dada pelo ex-secretário de Estado da Saúde ao Sapo24 no dia 17 de agosto é ofensiva para a dignidade dos médicos, revela um total desrespeito por aqueles que lutam por manter o SNS acima da linha de água, constitui uma afronta aos cidadãos portugueses e, em especial, aos doentes.

A injustiça e a falsidade de muitas das afirmações de Manuel Delgado (MD), danosas da integridade ética e científica dos médicos e da nobre missão do Serviço Nacional de Saúde (SNS), compelem-me publicamente, a desmascarar de forma objetiva os insultos gratuitos que ferem a dignidade dos médicos e da relação médico-doente.

Vivemos tempos difíceis, em que o bom senso e a educação deveriam imperar. Em que os portugueses deveriam estar unidos em torno de objetivos essenciais, como a solidariedade e a justiça social, e em que existisse mais respeito pelas pessoas que construíram o SNS, pelos profissionais de saúde e pelos doentes.

Infelizmente, o ex-secretário de Estado da Saúde violou todos os princípios éticos e deontológicos que devem prevalecer na relação entre as pessoas.

Não nos vamos deter com as relações ou tráfego de influências que podem envolver ou ter envolvido MD. Não nos vamos referir às Raríssimas nem à IQVia. Mas não podemos deixar de realçar algumas das mentiras, inverdades, desvarios ou ideias negativas de MD.

A análise que se segue deve ser acompanhada da leitura da referida entrevista disponível em https://24.sapo.pt/…/manuel-delgado-sou-do-tempo-em-que-se-… :

Não é verdade que sejam os médicos a decidir a constituição das equipas. Os médicos têm concursos nacionais e são colocados de acordo com a sua classificação. Muitos serviços gostavam de contratar médicos que desenvolveram competências específicas numa determinada área e não o conseguem fazer. Com exceção das USF, em que a constituição das equipas é feita em conjunto e envolve todos os profissionais de saúde, os médicos não têm influência na escolha dos outros profissionais de saúde que constituem as equipas. É falso que sejam os médicos que decidem, sem critérios clínicos, a chegada e a saída de doentes, como é sugerido. Na verdade, tal decisão está dependente dos sistemas de gestão de inscritos para consulta hospitalar ou para cirurgia, das prioridades atribuídas em função da complexidade da doença e da gravidade e evolução da situação clínica do doente. Não é verdade que os médicos não tenham um interlocutor a quem prestar contas sobre resultados. MD desconhece a função dos diretores de serviço, diretores de departamento e diretores clínicos, todos nomeados pelos respetivos Conselhos de Administração (CA) ou pela tutela no caso dos diretores clínicos.

MD não entende a importância capital das carreiras no desenvolvimento do SNS e da formação médica especializada e contínua, desvalorizando a essência do serviço público. Quem não percebe a importância das carreiras profissionais na organização dos serviços, no trabalho de equipa, na avaliação das pessoas, na investigação, na apresentação de resultados, na diferenciação técnico-científica e na formação pré e pós-graduada, não sabe nada de organização e de gestão. É compreensível que não saiba ler e avaliar um currículo médico apresentado a concurso. Compreensível, mas lamentável por se pronunciar sobre matéria para a qual não tem competências específicas.

MD, após 16 anos como presidente da APAH e gestor durante vários anos, quer dar um novo impulso à componente gestionária, em detrimento da qualidade do exercício da medicina e da observância das boas práticas médicas. MD não deve falar do que desconhece. Não fale em salvar vidas, quando nunca terá salvo nenhuma. Pelas funções gestionárias que há vários anos desempenha, nunca deve ter tido um doente na iminência de lhe morrer nas mãos. Nunca deve ter tido que fazer um parto complicado. Nunca deve ter visto nem terá tido de decidir (felizmente) o que fazer a um doente politraumatizado grave. Nunca deverá ter tido um doente complicado em que precisava de meios adicionais para resolver a situação e não os tinha… Não fale do que não sabe e deixe os médicos trabalhar.

Infelizmente, alguns dos chamados gestores de carreira apenas se preocupam com números, muitos números de consultas, de cirurgias, de procedimentos, e menos números na despesa. Claro que são os médicos que tratam os doentes. E ainda bem, faz parte das suas competências. Já pensou no que aconteceria se fossem os gestores de carreira a decidir e a tratar os doentes e a liderar a despesa? Os doentes decresciam rapidamente e a despesa começaria a subir. Quer discutir com os médicos o que é um bom resultado clínico numa determinada patologia? Qualquer um deles pode desvelar a falta de conhecimento de MD nesta matéria. Por exemplo, será que MD nos sabe dizer o que é um bom resultado clínico num doente com cancro da próstata? Pois…, é complicado.

A autoridade dos médicos resulta das suas próprias funções e competências, que decorrem do seu nível de conhecimento científico e técnico adquirido durante 11 a 13 anos (dependente da especialidade) e aprofundado ao longo da sua vida profissional, que lhes permite salvar vidas e tratar os doentes de acordo com as boas práticas clínicas. Mas, sobretudo, porque têm um nível de responsabilidade sem paralelo noutras profissões. A medicina é a área profissional mais complexa, mais apaixonante, mais humana, mais interventiva, mais desgastante, mais responsável e, claro, aquela em que o erro pode ser fatal. De resto, qualquer possível erro médico conhecido “faz” logo a capa dos jornais. Isto é, os médicos, mesmo antes de serem apuradas as circunstâncias de um determinado caso clínico, começam por ser julgados e responsabilizados na praça pública. E não são remunerados de acordo com a responsabilidade que têm na sociedade civil.

Os médicos não lideram o ranking das remunerações e da qualidade de vida. É mentira. A remuneração base média mensal ilíquida dos médicos reportada pela DGAEP (Direção Geral da Administração e do Emprego Público) é de 2746,9€, a que corresponde uma remuneração base média mensal líquida de 1620,7€ (este valor médio inclui todos os médicos que trabalham no SNS). É repulsivo e assustador o conhecimento que MD tem sobre o que faz um médico no SNS. Para ele aparentemente contam apenas as cirurgias! As outras atividades são todas esquecidas: as consultas, a atividade clínica no internamento, a realização de procedimentos invasivos fora do bloco central, como por exemplo biópsias ou exames endoscópicos, a realização de meios auxiliares de diagnóstico e terapêutica, os tratamentos em ambulatório ou hospital de dia, o ensino pré-graduado, a formação de jovens médicos internos, os relatórios médicos, o apoio aos doentes internados em todo o hospital, o trabalho no serviço de urgência e na emergência médica, o trabalho em contexto de unidades de cuidados intensivos ou intermédios, a investigação clínica, a atualização de conhecimentos e o estudo continuado, as reuniões de médicos (reuniões de serviço, reuniões de grupos específicos como é o caso dos diversos grupos oncológicos,…), escutar e olhar os doentes, as revisões terapêuticas, as explicações aos doentes e familiares do seu estado clínico e do plano em curso, o esclarecimento de dúvidas entre colegas, entre muitas outras atividades que MD desconhece.

O trabalho no setor público nunca foi tão rentabilizado. De tal forma, que os médicos não conseguem atualmente desempenhar todas as tarefas no seu tempo normal de trabalho. Para além disso, a grande maioria dos médicos está a trabalhar sobre uma pressão imensa que lhe é imposta pela tutela (consultas sobrepostas, várias tarefas em simultâneo, exigências inaceitáveis, exploração vergonhosa dos médicos internos da especialidade em vários hospitais, …). MD nunca se preocupou em saber porque milhares de médicos abandonaram o SNS nos últimos anos. Uma incapacidade política preocupante. O elevado nível de burnout entre os médicos está devidamente documentado, em vários estudos independentes realizados sobre esta matéria. Ignorá-los é ignorar a realidade, é não se interessar pelas pessoas, é não querer ver e ouvir como trabalham os profissionais! Os médicos não são pagos pelos atos médicos que realizam, porque o Ministério da Saúde nunca quis, nem vai querer. E sabe porquê, não sabe?

O modelo de contratação médica no serviço público é aquele que o Governo decide. MD aparentemente nada fez para alterar esse modelo. Se dependesse da Ordem dos Médicos o modelo seria necessariamente diferente.

MD certamente tem uma ideia concisa e precisa do que disse sobre os médicos: “…senta-se na cadeira e lê “A Bola” ou liga o computador e vê a sua vida pessoal…”. Teima em ofender quem luta diariamente por manter a capacidade de resposta do SNS. Nunca esperamos que alguém, com responsabilidade política, pudesse fazer tantas afirmações revoltantes e falsas sobre os médicos. Esta afirmação tê-la-á que a provar nas instâncias próprias. Será que nos sítios onde trabalhou “A Bola” era leitura diária usual, fazia parte do trabalho e por isso julga que se faz o mesmo nos hospitais? Será que já terá estado a ler “A Bola” com algum médico num hospital? Tem ideia, ainda assim, que se esqueceu do “Record” e do “Jogo”? Ou será apenas para denegrir “A Bola”? A generalização de MD é injusta, perigosa e terá que ser devidamente identificada, inspecionada e verificada pelos organismos competentes. E se a certeza do que afirma é assim tão grande, no mínimo como cidadão responsável deveria denunciá-lo nas instâncias próprias. Porque não o fez? Então a solução que alvitra é a de que “não se pode pagar a um médico por horas de trabalho, deve-se pagar por trabalho realizado”, reintroduzindo-se no século XXI formas de organização do trabalho próximas da escravatura. Para quem se diz servidor e defensor da causa pública, a afirmação produzida é, no mínimo, repulsiva.

Os médicos não são responsáveis pelas deficiências e insuficiências do SNS. Se alguns políticos (como é o caso de MD) tivessem o bom senso e responsabilidade dos médicos, a situação ao nível da Saúde estaria muito melhor. E provavelmente alguns deles, se assumissem integralmente as suas responsabilidades, estariam a pensar noutras atividades.

O número de médicos que trabalham no SNS está no site da ACSS (18.388 médicos especialistas e 9.996 médicos internos). O número que MD refere é, assim, falso. E é falso que os médicos de família tenham em média uma lista de 1500 utentes. Os médicos de família têm uma lista de 1950 utentes (em média e dependente das unidades ponderadas). Os médicos de família também não fazem uma “perninha” em bancos de urgência de hospitais públicos, vão trabalhar a sério no serviço de urgência suprindo deficiências e faltas de médicos como, de resto, pode ser verificado em qualquer hospital do país. E só fazem serviço de urgência porque todos esses serviços têm uma grave falta de médicos. Por isso estes médicos contribuem com o seu esforço adicional (tal como acontece com a maioria dos médicos hospitalares que semanal e sistematicamente são compelidos a realizar horas de trabalho extraordinário) tentando equilibrar a capacidade de resposta do serviço urgência.

MD nada fez para reformar o serviço de urgência, aumentar a capacidade de resposta dos centros de saúde (em capital humano e em exames auxiliares de diagnóstico) e definir e aplicar um plano de literacia em saúde para a população. A Ordem dos Médicos tem vindo a reclamar medidas urgentes, mas até agora sem resposta por parte do Ministério da Saúde.

MD desvaloriza de forma ridícula as USF (agredindo os seus profissionais de saúde, o trabalho em equipa e os seus próprios mentores). De resto, os médicos não querem todos trabalhar em USF. MD desconhece a forma como se constituem as USF. É grave que MD não saiba que existem estudos comparativos entre as USF e as UCSP, e que existem atualmente mais de 800.000 portugueses sem médico de família atribuído. Não sabe que os médicos de família estão sobrecarregados pelo número excessivo de utentes a seu cargo e já ultrapassaram o limite da sua capacidade de trabalho em função da imensidão de competências e tarefas que lhes são atribuídas. Para aumentar a capacidade de resposta dos cuidados de saúde primários é preciso contratar mais médicos de família (repita-se, ainda existem mais de 800.000 portugueses sem médico de família).

MD desconhece os resultados publicados sobre a linha Saúde 24. Omite nada ter feito pela reforma da saúde como secretário de Estado da Saúde (SES). O apoio domiciliário é, seguramente uma medida importante no contexto do SNS, mas onde estão os profissionais de saúde necessários a um apoio permanente? Num momento em que faltam, na estrutura do SNS, milhares de médicos, de enfermeiros e de operacionais técnicos e administrativos e outros profissionais, em que mais de 800.000 portugueses não têm médico de família, em que os serviços de urgência estão depauperados e só sobrevivem à custa do trabalho suplementar ou de tarefa, em que milhares de doentes não são tratados de acordo com os tempos máximos de resposta garantidos definidos pelo próprio Ministério da Saúde, em que as regiões mais periféricas e interiores estão carentes de profissionais, como é possível enquadrar esta medida de forma permanente? Há uma falta de seriedade nas afirmações que MD faz sobre o SNS. MD nada fez de concreto e estruturante para regular os lares de terceira idade e obviar ao que se passa em alguns deles, em que as condições são desumanas.

As políticas públicas que MD acarinhou e que têm vindo a ser seguidas agravaram ainda mais a situação do SNS e tornaram a Saúde mais hospitalocêntrica e mais centrada nos grandes hospitais públicos e privados. E foram tomadas objetivamente medidas para isso. Senão vejamos: Como é possível diminuir os tempos máximos de resposta garantidos sem aumentar a capacidade de resposta dos hospitais? Como é possível implementar no SNS a liberdade de escolha, sem primeiro corrigir as graves deficiências que afetam muitos hospitais e, sobretudo os hospitais mais periféricos? Pode gabar-se, isso sim, de ter aumentado as desigualdades sociais em saúde e ter permitido que o acesso à saúde passasse a estar cada vez mais dependente de um código postal!

Muitos doentes que têm necessidade de “estar no hospital” também têm doenças crónicas, contrariamente ao que é afirmado por MD. De resto, para deixar os hospitais “respirarem um bocadinho” é preciso tomar medidas concretas e investir, o que não aconteceu durante o curto mandato de MD. Mais ainda, no que diz respeito ao número de camas hospitalares por 1000 habitantes, Portugal (3,4) está claramente abaixo da média dos países da OCDE (4,7). E a aposta nas camas de cuidados de proximidade (continuados, paliativos e cuidados domiciliários) é claramente insuficiente e incapacitante (como de resto é revelado pelo relatório Primavera 2018 do Observatório Português dos Sistemas de Saúde).

MD assume de forma plena a falta de resposta do SNS por incapacidade de contratar os profissionais necessários. A objetividade com que aborda a questão do Centro de Reabilitação de São Brás de Alportel, desmascara completamente aquela que tem sido a política de saúde seguida: favorecer o setor privado em detrimento do setor público. De resto, deixa bem clara aquela que é a política de contratação do Governo e a valorização que é atribuída à Saúde. Na verdade, acaba por assumir que “sem ovos não se fazem omeletes”, e depois tenta encontrar bodes expiatórios para a falta de ovos!

Perante as suas levianas afirmações fica o desafio de analisar qual a capacidade de resposta efetiva do SNS aos cerca de 10 milhões de portugueses. Pois é, é cada vez mais insuficiente! Mas a população que é atendida no SNS, mesmo com tempos de espera prolongados, tem o privilégio de contar com profissionais de excelência, resultante de uma elevada qualidade de formação. Continuamos a ter uma medicina de grande qualidade, e estamos a acompanhar o desenvolvimento da nova medicina que, como é conhecido, é exponencialmente rápida. E isto, deve-se basicamente à formação continuada que nem sequer é apoiada direta e totalmente pelo Estado. De facto, a excelência do SNS reside nas pessoas, nos profissionais de saúde, que devem ser tratados com respeito e dignidade, e não como MD faz ao longo desta sua entrevista. Em agosto de 2017, a Ordem dos Médicos apresentou uma carta de compromissos ao Ministério da Saúde contendo cerca de 50 propostas para melhoria da Saúde e do SNS, mas só recentemente (julho de 2018) obteve uma resposta do Ministério da Saúde.

Diga-nos MD, por favor, quais são os serviços que têm médicos a mais e quais são as especialidades com médicos em excesso no SNS? Já experimentou alguma vez fazer as contas com base nos rácios e condições de trabalho apresentados a nível europeu? E se estão em excesso em algum hospital, porque é que o próprio Ministério da Saúde continua a abrir vagas para assistente hospitalar nesse hospital e não naqueles que têm deficiência? Os médicos não caem de paraquedas nos hospitais! A política de recursos humanos é definida pelo Governo, pelo Ministério da Saúde. Se não é a mais adequada, a responsabilidade é inteiramente dos detentores de cargos políticos na saúde a nível nacional, regional e local e não dos médicos. Quanto à questão do hospital da Luz aconselhamos V. Ex. a falar com a Eng.ª Isabel Vaz para lhe explicar como são aí remunerados e tratados os médicos!

Mais uma observação relativa aos médicos internos, que se repetida várias vezes até pode parecer verdade. Como ex-secretário de Estado da Saúde deveria saber que o SNS tem atualmente 9.996 médicos internos em formação (ver site da ACSS); estes médicos internos asseguram várias funções no seu processo de aprendizagem (constituem com os especialistas as equipas de urgência, os blocos operatórios, as visitas aos doentes internados, participam nas consultas orientados pelos especialistas, e fazem um sem número de procedimentos e outras atividades clínicas, onde se incluí o ensino, a investigação, …); se porventura estes médicos internos amanhã deixassem de trabalhar, o SNS entrava em colapso; por isso, as remunerações destes jovens médicos estão amplamente justificadas e diria até que são credores e não devedores (como afirma) do Estado. Sabe porque é que todas as unidades de saúde querem ter a possibilidade de formar especialistas? Então pense lá porquê. Aqui vai uma ajuda: serviços sem uma mistura de jovens médicos com médicos mais experientes têm uma dificuldade acrescida em acompanhar a inovação e o desenvolvimento da nova medicina. De resto, são muitas vezes os jovens o motor da atualização contínua de conhecimentos. E já pensou porque é que a capacidade formativa nos hospitais privados não é maior? Mais uma vez, informe-se bem para não dizer falsidades. A referida “galinha dos ovos de ouro” mantém-se contratando os médicos para o SNS, consagrando condições de trabalho adequadas ao exercício pleno da profissão e da formação, e como sabe não foi nem tem sido esta a sua política de saúde. Só para lhe dar um exemplo, o penúltimo concurso para recrutamento de médicos assistentes hospitalares foi aberto cerca de 10 meses depois dos médicos terminarem a especialidade, tendo como resultado o abandono do SNS por parte de centenas de médicos. O que demonstra de forma inequívoca o desinteresse do Governo em contratar aqueles médicos, que se mantiveram no SNS remunerados como internos quando já eram médicos especialistas há vários meses.

No calor da entrevista deixa cair mais uma afirmação enganadora. Em Portugal não temos falta de médicos, mas temos falta de médicos no SNS. Trabalham atualmente em exclusivo no setor privado cerca de 13.000 médicos e emigraram milhares de médicos nos últimos 5 anos. Uma conta simples, considerando as horas suplementares/extraordinárias realizadas pelos médicos do SNS (cerca de 21% da remuneração média mensal) e o valor pago a empresas prestadoras de serviços médicos no SNS (em 2017 foram cerca de 120 milhões de euros), demonstra de forma clara que faltam no SNS cerca de 5.500 médicos. Isto sem entrar em linha de conta com o que o Estado gasta em convenções com o setor privado e social, nomeadamente com a realização de exames auxiliares de diagnóstico e terapêutica e com os custos associados aos vales cirurgia entre outras despesas igualmente importantes (estamos a falar de centenas de milhões de euros). Se ainda pensarmos que, mesmo assim, a capacidade de resposta do SNS é deficiente e que a maioria das unidades de saúde trabalha em défice permanente, o número de médicos em falta no SNS é ainda maior. Entendeu as contas? É simples, não é? Que o cidadão comum não saiba é natural, mas que um ex-secretário de Estado da Saúde recente não saiba, é grave. Claro que não é fácil resolver a situação das regiões mais carenciadas. Mas também é verdade que o Ministério da Saúde é quem autoriza a abertura de vagas para os concursos nacionais, decide os locais onde são abertas as vagas, e tem, ao longo dos últimos anos, autorizado em paralelo, contratações diretas para os hospitais com maior poder de intervenção junto do poder político. Além disso o Governo dispõe da possibilidade de implementar uma nova e verdadeira política de incentivos transversal a todos os profissionais das áreas mais carenciadas (e não apenas para àqueles que vão para lá trabalhar ‘de novo’). Porque é que não avança? Por uma questão de custos ou será que lhe interessa cada vez mais concentrar a Saúde nos grandes centros? De resto, é sempre negativo tentar obrigar as pessoas a irem trabalhar para um determinado local contra a sua vontade. A discriminação deve ser sempre pela positiva.

MD fala em “mecanismo habilidoso e em ganchos” para os jovens médicos que não aceitam ir trabalhar para determinados locais. A linguagem não é apropriada. Os médicos, como quaisquer cidadãos, têm o direito de trabalhar onde se sentem mais confortáveis, onde são melhor tratados, onde lhes dão melhores condições de trabalho. Não deixa de ser curioso que são os políticos que definem as regras a nível europeu, nomeadamente a livre circulação de médicos, e queixam-se que milhares de médicos emigraram nos últimos anos. Mas então, estão à espera de quê? Aceitamos estar na Europa, mas não temos capacidade concorrencial com a maioria dos países europeus, designadamente com aqueles que fazem parte da dita Europa Ocidental. Não seria este um motivo forte de reflexão para entenderem definitivamente que não estão a dar as melhores condições de trabalho aos médicos (férias, formação, projetos de trabalho e de investigação, meios técnicos adequados para exercerem a profissão em pleno, …)? E é sempre bom lembrar que, ao perdermos tantos jovens médicos, estamos a perder a capacidade de inovação e de acompanhar o desenvolvimento da nova medicina. A propósito não posso deixar de recordar as palavras do Primeiro-Ministro enquanto Secretário-Geral do Partido Socialista durante o último Congresso: “é uma prioridade para nós recuperar os jovens que têm saído do país trazendo-os de volta para Portugal”. E então os novos jovens que se vão formando, não seria interessante e mais fácil ter uma política inteligente que os levasse a escolher o nosso país como local de trabalho?

Na sequência da entrevista MD encaixa mais um “gancho negativo”. Sugere que o que está mal na Saúde é da responsabilidade dos médicos e da Ordem dos Médicos! Inacreditável! O senhor ex-secretário de Estado da Saúde não faz a mínima ideia do que se passa no país nesta matéria. Ou então tem alguns amigos médicos importantes que ganham os tais 14.000 euros por mês no setor privado. Primeiro, quem acabou com o regime de dedicação exclusiva opcional foi o próprio Estado (em 2009). E porquê? Porque muitos médicos estavam a optar por trabalhar apenas no setor público em regime de dedicação exclusiva. Como sabe, a Ordem dos Médicos apresentou uma proposta ao Ministério da Saúde no sentido de ser reposta a possibilidade de os médicos poderem optar por trabalhar em regime de dedicação exclusiva tal como acontecia antes de 2009. E sabe o que aconteceu, não sabe? Foi rejeitada! E porquê? Porque o Ministério da Saúde afirmou não ter a possibilidade de ter médicos a trabalhar em dedicação exclusiva por uma questão financeira (claro, o Ministro das Finanças não iria estar de acordo). Por isso, é uma falácia a discussão sobre a dedicação exclusiva opcional. Nesta, como noutras matérias, convém ser sério. Quanto aos incumprimentos de horário e baixa produtividade, se têm conhecimento de algum caso, porque não intervêm os respetivos responsáveis nomeados pela tutela ou a própria tutela punindo os infratores, em vez de publicamente tomar a ínfima parte pelo todo. Se a maioria dos titulares de cargos políticos ao nível do Ministério da Saúde tivessem a mesma responsabilidade, a mesma competência e a mesma qualidade que a imensa maioria dos médicos tem, o nosso país estaria muito melhor. Os “Ronaldos” e “Mourinhos” da área médica estão um pouco espalhados por todo o mundo, mas quase ninguém fala deles. E sabe porquê? Porque salvam vidas, porque abdicam de uma grande parte da sua vida para se dedicarem aos doentes, porque contribuem para a investigação e a descoberta de novos tratamentos, porque não fazem parte da “elite” do futebol ou da política.

Mas MD não sabe quando parar! As suas afirmações são cada vez mais enérgicas na sobreposição da gestão técnica à medicina. Ainda vamos chegar à conclusão que não precisa de médicos no SNS. Já entendemos que, na sua perspetiva, o melhor era empurrar a imensa maioria dos médicos para o setor privado e para o estrangeiro, e ficar com um SNS minguado para dar alguma resposta aos doentes que não têm qualquer possibilidade de recorrer ao setor privado. Pois bem, saiba V. Ex. que a Ordem dos Médicos se opõe a qualquer tentativa de exterminar o SNS. O SNS, o grande baluarte do estado social, é demasiado importante para todos os portugueses. E o caminho é exatamente o contrário daquele que defende. Tal como o Dr. António Arnaut e o Dr. João Semedo, cujo título do último livro que escreveram “Salvar o SNS” já constituía em si mesmo um grito de alerta, estamos aqui para defender os doentes, a qualidade da medicina onde quer que seja praticada, e um SNS forte e com capacidade de resposta adequada e qualificada às necessidades dos portugueses. E este caminho significa reforçar o SNS e não o contrário. De resto, como gestor que é, deveria saber que quanto melhor for o SNS, melhor será a medicina privada e social. E existe um espaço apropriado para todos. Uma pequena nota adicional, competência e volume de trabalho são coisas diferentes.

No que diz respeito ao orçamento de Estado para a Saúde, uma coisa é a Saúde no global e outra coisa é o SNS. E como deveria saber melhor que nós, o que está previsto para 2018 para a Saúde é 5.2% do PIB e para o SNS 4.8% do PIB. O que significa que os valores absolutos apontados por si não estão corretos. Além disso, as críticas feitas pela oposição política são claramente justas. Criar uma pressão inqualificável sobre todas as unidades de saúde (CA) atribuindo orçamentos que se sabe à partida não serem suficientes para as despesas correntes esperadas (recursos humanos, medicamentos e outras despesas) é uma má prática de gestão política que tem efeitos adversos sérios ainda por determinar de forma completa. De resto, os próprios administradores hospitalares são na sua maioria da mesma opinião. Acumular dívidas de forma permanente não dá credibilidade ao Estado nem é um bom exemplo para os portugueses. Imagine que os portugueses pagavam os impostos com um atraso de um ano ou dois. Já imaginou? Claro que a consequência imediata desta gestão política adversa resulta em menor disponibilidade das empresas fornecedoras de medicamentos, dispositivos e materiais clínicos, para constituírem stock adequado e existem falhas conhecidas no fornecimento com implicações negativas para os doentes, contrariamente ao que afirma.

Os médicos que trabalham no SNS, tal como todos os funcionários públicos, têm deveres (e não são poucos) e alguns direitos que devem ser respeitados. Na entrevista já se percebeu que MD se pudesse “mandar” no Governo tinha uma enorme vontade de implementar uma nova forma de escravatura no século XXI, a exploração ilimitada dos médicos. V. Ex. sabe que isso não é possível. E também sabe que terá a oposição dos Sindicatos e da Ordem dos Médicos. Mas também da sociedade civil. É que se perguntar aos doentes se preferem ter médicos ou uma plêiade de gestores nos hospitais, a resposta parece óbvia. Pense nisto.

Os médicos queixam-se das condições de trabalho e muito bem, porque têm a obrigação de defender a segurança clínica e as boas práticas de acordo com a legislação e o seu Código Deontológico. Quanto aos horários de trabalho nem merece grandes comentários (“uns entram às 08h e outros entram às 11h?” e, entretanto, são substituídos nos doentes que estão a operar, nas consultas que estão a fazer, nos doentes que estão a observar nos internamentos, nos relatórios médicos que estão a fazer…?). De resto, os horários dos médicos, como deve saber, não são feitos nem aprovados pelos próprios e os médicos trabalham em equipa, nomeadamente com outros médicos e outros profissionais de saúde. Não conhecemos nenhum hospital que tenha atividade clínica apenas até às 14h.

As equipas não são autogeridas. Quem faz a gestão das equipas são os CA e os diversos diretores nomeados pelas administrações. Acha mesmo que é possível ter os médicos a trabalhar em serviço de urgência da forma que sugere, às pinguinhas, com períodos de, teoricamente, menor afluência sem médicos? Por exemplo, tem ideia do funcionamento dos blocos operatórios no serviço de urgência? Mais um disparate! Os médicos fazem turnos de 12h de serviço de urgência (e às vezes 24h) por necessidade dos hospitais e não por conveniência pessoal. É que, contrariamente a outros profissionais, a imensa maioria dos médicos não trabalha só no serviço de urgência, fazem também muitas outras atividades clínicas (internamento, consulta externa, bloco operatório,…).

As negociações com os vários Sindicatos do setor foram, no seu tempo, um fracasso total, e não o contrário como sugere. E porquê? Porque não cumpriu os compromissos supostamente alcançados com os Sindicatos. Uma falácia!

Mais um sofisma sobre proximidade de cuidados de saúde. Se quiser entender o que é humanização e proximidade em cuidados de saúde teria um longo caminho a percorrer, começando pela relação médico-doente.

Se quiser perceber porque é que os médicos com funções de direção têm apresentado a sua demissão, basta ouvi-los e visitar os respetivos serviços. Porque não experimentou enquanto foi SES? O resto é a aplicação da legislação em vigor, que o Governo ignora demasiadas vezes. Lembro novamente que apesar da sua enorme vontade em escravizar os médicos, ninguém vai aceitar que os direitos, liberdades e garantias consagrados na Constituição da República Portuguesa e na legislação do trabalho continuem a ser desrespeitados no âmbito do trabalho médico.

Sobre os seguros e os impostos a entrevista é caricata. Os seguros privados não saem dos impostos gerais, nem as pessoas deixam de pagar impostos porque os contratam. De resto, o que vale a pena salientar mais uma vez é a necessidade absoluta de reforçar a capacidade de resposta do SNS.

Então porque é que não sabemos quanto é que se gasta na Saúde do orçamento de Estado? 5.2% do PIB diz-lhe alguma coisa? Uns cidadãos gastam mais, outros gastam menos. Uns recorrem também aos serviços privados pagando diretamente do seu bolso, outros não. Pois é senhor ex-secretário de Estado da Saúde, como sabe os portugueses gastam cada vez mais diretamente do seu bolso na saúde. E a estratégia política mantém-se, empurrando cada vez mais os doentes para o setor privado. O que cria desigualdades sociais em saúde terríveis. O senhor, como SES, nada fez para alterar esta realidade, apesar de todos os alertas da sociedade civil. Porque não reforçam a capacidade de resposta do SNS?

Então nem sequer sabe como defender as administrações hospitalares? Tenta sempre culpabilizar os médicos pela má gestão política (vício de quem sendo gestor de carreira é, também, político). Porque não diz que é inaceitável as administrações hospitalares terem orçamentos incompatíveis com as suas necessidades? Porque não defende mais autonomia e flexibilidade na gestão para as administrações hospitalares? Porque não defende orçamentos plurianuais e uma lei de meios para fazer frente à missão complexa de gerir hospitais? Porque não defende um orçamento independente para renovar equipamentos e/ou fazer a sua manutenção adequada? É admirável como, na parte final da entrevista, já está a sugerir que as administrações são incompetentes? Ou que não têm a coragem de denunciar as condições miseráveis em que são obrigados a trabalhar? Algum administrador já lhe disse que o seu orçamento não dá para pagar as despesas fixas previsíveis durante todo o ano, que a meio do ano já não têm orçamento para pagar os medicamentos? Já olhou, com “olhos de ver”, para os resultados financeiros anuais dos hospitais?

A propósito dos telefonemas que recebeu de um Presidente da República por causa dos médicos, que tal revelar um dos telefonemas que recebeu? Ou é segredo de Estado? Ou não será como diz?

Afinal reconhece que a dívida é um problema gerado pelos Ministérios da Saúde e das Finanças. É óbvio que os suborçamentos crónicos e acumulação de dívidas é uma má gestão política e económica. Relativamente aos medicamentos e aos materiais clínicos não é verdade o que diz, nalguns casos faltam mesmo e os atrasos que acontecem são inaceitáveis. A evidência é imensa. Porque não mudou esta situação enquanto foi SES?

MD aponta o dedo aos médicos no incumprimento de horários nas consultas e blocos operatórios, e cancelamentos de exames ou operações. Para tentar justificar a incompetência dos gestores nomeados. Então como é possível cumprir horários na consulta quando se têm doentes marcados à mesma hora ou em tempos impossíveis de cumprir? Como é possível cumprir tempos no bloco operatório quando a equipa multiprofissional não é escolhida nem está formalmente dependente do cirurgião? Como é possível cumprir agendamentos cirúrgicos quando são marcados doentes em excesso para o tempo disponível ou não é possível operar por falta de material clínico ou avaria de equipamentos (cada vez mais frequente)? MD desconhece a realidade, nada de novo!

Finalmente expõe o Ministério da Finanças, em vez dos médicos. Que grande tormento! Sabe quem é o responsável político pela Saúde em Portugal?

Sobre as Raríssimas não fizemos nem fazemos comentários. Também não comentamos as suas preferências clubísticas. Mas não deixa de ser curioso que, após ter dito tão mal dos médicos durante toda a entrevista, termine referindo, a propósito das eleições para o SCP, como pessoas com créditos firmados os médicos Eduardo Barroso e Daniel Sampaio. Ainda bem.

O Bastonário da Ordem dos Médicos