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A resposta devida a quem disse o que não devia – Carta aberta à Ministra da Saúde, Marta Temido

Autor: José MD Poças (Diretor do SDI do CHS, ex-Coordenador da Comissão de Crise para a COVID do CHS; Ex-Membro da Comissão de Crise da COVID da Ordem dos Médicos)

 

“A ingratidão é um direito do qual não se deve fazer uso.” (Machado de Assis, escritor brasileiro, 1839-1908)

 

Apesar de estar de férias, não resisti. Estar de férias e ser médico, ainda por cima em tempos de pandemia, implica estar atento e presente sempre que tal se exige, como considero ser o caso. Nunca tive um período tão longo e com tamanhos desafios, preocupações e responsabilidades em toda a minha vida de quase quarenta anos de profissão. Tal como, estou certo, Vª Exª, também. Para além de tudo o que é suposto ser inerente às funções que constam em epígrafe, extravasando ainda as tarefas assistenciais de índole clínica que me preenchem uma boa parte do dia de trabalho (no Hospital e no Consultório privado), a verdade é que estive muito absorvido, nos últimos dois anos, a escrever, e, nos últimos seis meses, a organizar os textos para que assumissem a forma de um livro que apresentei este mesmo mês de Novembro em quatro cidades do País (em Lisboa, no Porto, em Coimbra e em Setúbal), no espaço de duas semanas. Publicação intitulada “Reflexões em tempos de pandemia: histórias de vida, de prazer, de sofrimento e de morte”.

Em tempos de pandemia”, e, não, “Sobre a pandemia”, porque vão muito para além da temática estrita da COVID, na boa tradição do Humanismo Médico, que tem tão enraizadas tradições no nosso País, como se pode depreender do seu subtítulo. Leitura que, sem ponta de soberba, a recomendo a si, como o podem testemunhar todos as insuspeitas individualidades que convidei para escreverem na sua contracapa e nas duas badanas interiores, bem como para fazer a sua apresentação ou que presidiram às cerimónias, respetivamente: Dos não médicos, Viriato Soromenho Marques (autor do Prefácio), Vera Santos, Paulo Nossa, Frei Miguel e André Martins; dos médicos, Miguel Guimarães, Walter Osswald, Castro Ribeiro, Rocha Marques, José Fragata (autor do Posfácio), António Sarmento, Saraiva da Cunha, Paulino Pereira, Alexandre Lourenço, Lurdes Gandra, Carlos Cortes e Daniel Travancinha. E, ainda, como referi no primeiro discurso de apresentação, também, as dos colegas Daniel Sampaio e Gustavo Carona, intituladas, respetivamente, “COVID-19- relato de um sobrevivente” e “Diário de um médico no combate à pandemia”.

Porque, para os seus autores, escrever é, certamente, uma forma de resistir às frustrações e um meio eficaz de combater os efeitos do nefasto burnout que nos assaltou de súbito. Para os leitores, e, sobretudo, para os que têm responsabilidades executivas no setor, como é o caso de Vª Exª, um meio privilegiado para ficar a conhecer mais aprofundadamente o amago da missão dos médicos, as suas motivações e as suas expetativas, tal como as suas frustrações e as suas limitações. O que se aplica igualmente à perspetiva do doente, afinal o objeto de ação dos médicos e, supostamente, também, o do Ministro da tutela.

Nos dois anos anteriores a este projeto, coincidente com a eclosão da infeção provocada por um vírus que viria a ser denominada de SARS CoV-2, tinha-os passado a levar a cabo a realização de um outro livro intitulado “A relação médico-doente: um contributo da Ordem dos Médicos”, de que fui editor e coautor, em conjunto com mais de oito dezenas de personalidades, quase todas do mesmo mister e de uma Comissão Editorial composta por quatro colegas e presidida pelo atual Bastonário, Miguel Guimarães. Na cerimónia de apresentação, na Torre do Tombo, em Lisboa, estiveram presentes três ex-ministros da Saúde de governos do mesmo partido político que presentemente está em funções no nosso País (Maria de Belém Roseira, Correia de Campos e Adalberto Campos Fernandes, este último, também, seu coautor), mas, Vª Exª, não foi um deles. Infelizmente. Porque seria uma outra oportunidade para tomar contacto com o pensamento dos seus autores e a mensagem de humanismo nele patente, baseada na interiorização espontânea das intemporais normas da ética e da deontologia profissional destes humildes discípulos do Pai da Medicina.

Mas, já no que se refere ao meu primeiro livro, “Ode ou requiem: alegoria sobre a natureza do ato médico”, Vª Exª tomou dele conhecimento, pois eu mesmo lho ofereci autografado, dado ter sido uma das personalidades que convidei para comentar a minha conferência intitulada “A relação médico-doente e o ato médico”, realizada pouco tempo depois da apresentação oficial do mesmo, nos finais do ano de 2015, sessão que decorreu no CHS e que foi Presidida pelo ex-Bastonário da Ordem dos Médicos, António Gentil Martins, e, moderada, pelo meu colega João Sá. Desta iniciativa e da leitura desse livro, estou em crer que Vª Exª não terá ficado com a mínima dúvida acerca daquilo que considero ser a índole da profissão que escolhi desde tenra idade com assumida vocação, tal como dos valores que cultivo, práxis e princípios que, sei, serem, desde sempre, os da larga maioria dos meus colegas.

No meu mais recente livro a que já fiz referência, no capítulo “Incertezas e indecisões” (publicado em 2020/06/08) escrevi textualmente: “Incertezas levam frequentemente a indecisões, e, estas, quando está em causa a saúde pública, podem produzir nefastas consequências para uma comunidade ou, mesmo, para um País inteiro. Muitas vezes, opta-se por não decidir, devido ao medo das consequências de uma indesejável atitude precipitada, aos olhos alheios. Noutras, é-se mais afoito e arrisca-se uma tomada de decisão, devido ao lógico receio de se ser acusado, por outrem, de não se estar a fazer nada. É evidentemente desonesto, do ponto de vista intelectual e ético, fazer julgamentos à posteriori, para quem está fora da responsabilidade inerente ao desempenho de funções que supõem a tomada de decisões que pesam sobre a sociedade ou, mesmo, numa comunidade mais reduzida, com eventual grande impacto, ou para quem não expressou atempadamente as suas opiniões a quem de direito e pela forma forma mais correta, ou seja, em primeira instância, à pessoa concreta, com o indispensável recato e, nunca, demagogicamente, na praça pública. É fácil criticar quem, num ambiente de tamanhas incertezas, fez determinadas opções e não outras, com uma determinada cadência, e não mais apressadamente, ou com um ritmo mais pousado.

Mas, o facto, é que ninguém está realmente a salvo de críticas. Bem-intencionadas, entenda-se. Para que, da próxima, tudo corra melhor do que desta. Seja quem for o responsável em funções nessa altura. Sobre essa matéria, já escrevi, e não vou repeti-lo novamente. Mas, certamente que irei permanecer atento e me manterei acutilante, leal e ponderado. Como sempre. Porque tal é condição de respeito pela dignidade de que todos são credores. Por questão de princípio. Mesmo os que erraram, embora não intencionalmente. Disso, tenho a certeza. Absoluta. É que não são só os políticos que devem ser responsáveis pelas consequências das atitudes que tomam. Os cidadãos, também. Porque, numa sociedade democrática, os direitos não estão divorciados dos deveres. E ninguém pode reivindicar o direito ao incumprimento em situações como a que vivemos, com base no comportamento alheio. Nunca. De modo algum”. Neste texto, que voltaria a escrever tal e qual, penso ser patente uma grande compreensão pela natureza das suas funções enquanto governante, num contexto muito difícil e que exigia então, como exige hoje e exigirá sempre, não uma atitude de indecorosa demagogia ou de estéril confronto, mas antes de leal cooperação.

Por defender tal postura de cidadania interventiva, tomei a iniciativa de lhe escrever várias Cartas Abertas que integram esse mesmo livro, publicadas no site oficial da Ordem dos Médicos ou em órgãos de comunicação social (com vem nele devidamente referido e que não sei se delas terá tomado conhecimento), tal como a redação de um outro documento e, posteriormente, da organização de uma conferência pública que ocorreu em junho de 2020. Estes dois últimos foram intitulados “Do passado ao futuro do CHS”, cujo texto recebeu, na sua versão final, o contributo de vários Diretores de Serviço e de Membros do Conselho Geral, tal como do próprio Diretor Clínico, tendo sido assinado por largas dezenas de médicos da instituição e que terá sido entregue em mão a Vª Exª, numa audiência realizada em julho desse mesmo ano, pelo cessante Presidente do Concelho Geral, Prof. Eugénio da Fonseca, que, tal como eu, também proferiu uma alocução na referida conferência.

Estas iniciativas, de que posteriormente foi dado conhecimento, quer às Câmaras Municipais de Setúbal, Palmela e Sesimbra, quer à Comissão Parlamentar de Saúde da Assembleia da República, quer aos líderes dos Grupos com representação parlamentar, quer, finalmente, ao próprio Secretário de Estado da Saúde em reunião realizada em abril do corrente ano, visavam, antes de recorrermos à demissão coletiva que não desejávamos, a não ser como medida de última instância, tentar inverter o caminho de inexorável declínio do CHS, que passava essencialmente por uma estratégia com três vetores principais: Reclassificação compatível com o grau de diferenciação  dos seus Serviços; um Plano de obras de construção de um novo edifício e de reabilitação dos já existentes, adequado ao movimento assistencial, sem causar os constrangimentos que a simples passagem do Hospital Ortopédico do Outão iria condicionar, se fosse concretizada tal e qual nos foi anunciado superiormente; Quadro médico (e dos restantes setores) dimensionado às necessidades, tal como equipamento tecnológico capaz de propiciar, em simultâneo, um bom desempenho dos mesmos, a satisfação dos doentes e a realização profissional de quem tem a missão de os tratar.

O CHS teve de enfrentar, quase sem qualquer ajuda externa significativa da hierarquia  ministerial, em particular, durante os dois primeiros meses de 2021, um avassalador número de doentes (sete enfermarias cheias, tal como três das quatro UCIs que chegaram a existir, para além de um pavilhão prefabricado com mais do quíntuplo da lotação inicialmente prevista, que chegaram a totalizar mais de 200 doentes internados em simultâneo, o que correspondeu a mais de metade do total de camas disponíveis, dificuldades que se fizeram constar no documento intitulado “Acerca do estado de catástrofe na luta contra a pandemia no CHS” que também redigi e que, depois de receber o contributo de algumas colegas do Grupo de Crise da instituição, foi remetido a Vª Exª, após ter sido assinado por largas dezenas de médicos e de outros profissionais, assim como por alguns membros do próprio CA da instituição.

A demissão do Diretor Clínico, primeiro, seguida de 87 dos 90 Responsáveis Médicos do CHS ocorrida em finais de setembro último, só surgiu, pois, como uma última tentativa de chamar a atenção para a necessidade urgente de se começar efetivamente a resolver os gravíssimos problemas que se arrastam há anos, ao nível do Hospital da Capital de Distrito, pois o financiamento para a realização das obras tinha já deixado de ser aplicado, mesmo apesar de ter constado em OGE, por duas vezes, num passado recente.

Depois de uma entrega total e incondicional desde sempre, mas, sobretudo, nestes últimos dois anos, onde, como disse no discurso de apresentação do livro em Setúbal, efetuado no passado dia 19 do corrente mês “os seus profissionais de saúde, esquecendo-se de si próprios, fizeram com que do seu extremo cansaço brotasse uma torrente de energia anímica em prol da saúde do próximo”, ouvir as declarações proferidas por Vª Exª na 4ª Fª da passada semana, aquando da inquirição parlamentar, só me (nos) provocou(aram) um sentimento de, mais do que sermos vítimas de incompreensão, sentirmo-nos vítimas de soez ingratidão. Mesmo apesar do alegado pedido de desculpas que mais não fez do que tentar, nitidamente em vão, inverter o ónus do teor e da origem do que efetivamente proferiu.

Resiliência, certamente que não lhe terá faltado nestes conturbados tempos, como penso ter sido patente e nenhum dos cidadãos deste País, em sã consciência, lho negará, ou sequer invejará a difícil posição que ocupa. Mas, deixar nas entrelinhas a sugestão de que NÓS não a temos em quantidade suficiente, roça o insulto, por ser manifestamente injusto e indigno de quem deveria, com humidade, compreender as condições dificílimas em que TODOS tivemos que trabalhar, dia após dia, turno após turno, muitas vezes sem os meios necessários para garantir a necessária segurança ou para fazer adequadamente face ao que os doentes efetivamente necessitaram, sem folgas, sem férias, não raramente afastados da nossa família direta, impedidos de tratar os outros doentes com as restantes patologias, e, agora, acometidos em tentar recuperar a atividade clinica que teve de ser suspensa (como consta nos capítulos intitulados, respetivamente, “Linguagem eufemística em tempos de catástrofe” e “Vida e morte em tempo de pandemia: uma ode em estilo de homenagem aos que, durante o seu curso, sofreram, pereceram ou sobreviveram”. Como acha que nos sentimos? Como se sentiria Vª Exª, na nossa posição? Como pretenderá mobilizar as imprescindíveis vontades, se a situação epidemiológica se agravar e nos tiver de voltar a solicitar mais sacrifícios?

É que, podemos, legitimamente, opinar, que os seus três antecessores a que já fiz referência, que me ouviram dizer no discurso que então proferi, que não se é bom médico, nem tampouco bom governante, desconhecendo o singular âmago da natureza humana ou sendo-se indiferente às consequências do sofrimento e da deficiência, dado que isso é condição imprescindível, para além do mais, salvarmos aquele que foi (e ainda é…) o melhor serviço público do regime democrático português- o SNS.”, não seguiram as políticas que seriam, na opinião de alguns (e da minha, também), as melhores para responder aos enormes desafios do setor. Mas nenhum deles se atreveu a desrespeitar a classe médica como Vª Exª ousou fazer. O que merece uma viva e justificada repulsa, pois o que foi afirmado só poderá ter origem em alguém que efetivamente deveria conhecer melhor o que é SER MÉDICO e o que é a MEDICINA.

Não sei quem vai vencer as eleições. Não sei quem vai ser o futuro Ministro da Saúde. Não sei, sequer, no atual contexto, ainda, em quem vou votar. Mas sei, devemos todos saber, que a postura de quem vier a ocupar o seu cargo no futuro próximo, jamais poderá ser a mesma. E, desejar, também, que a aludida abertura de novas faculdades de Medicina não venha afinal a servir, sobretudo, para criar um número excedentário de “médicos”, no propósito (não confesso) de ter sempre alguém que aceite substituir os que causarem incómodo aos governantes, ganhando cada vez mais baixos salários e “encarando o doente como uma mera fonte de rendimento” (como afirmei no referido discurso escutado pelos seus três antecessores), o que poria definitivamente em causa a qualidade da formação médica e equivaleria a dar a machadada final na profissão que escolhi. Com as catastróficas implicações inerentes e que exigiriam uma responsabilização sem precedentes dos percursores de tal inenarrável estratégia!!!

Um repto, para finalizar: pode Vª Exª dispor do meu cargo de diretor como muito bem entender. Tal como, estou em crer, dos restantes 86 colegas demissionários do CHS. Desejo (desejamos) que quem nos vier a substituir, tenha (ainda) mais resiliência para desempenhar as funções que ocupamos. Mas, sobretudo, para resistir estoicamente às palavras desbragadas que poderão ter de ouvir por parte da hierarquia. Por mim (por nós) continuarei(emos) a servir a causa dos doentes e do SNS apenas como médico(s), pois essa é a nossa mais nobre função, até à aposentação (que será, para a maioria de nós, em breve), livre(s) de outras responsabilidades gestionárias e burocráticas.

Mas, sempre, com o mesmo espírito de cidadania interventivo, que tanto incómodo provoca a certos governantes, porque isso é condição de ser MÉDICO de CORPO INTEIRO, como me (nos) preso (presamos) de ser(mos). Até irmos embora um destes dias, mas de consciência bem tranquila. Cientes que se a atratividade de novos médicos para o CHS, que Vª Exª nunca teve a coragem de visitar enquanto Ministra e ao contrário do que afirmou, não é a que deveria ser, não será certamente por não terem Projetos, mas antes por não terem as condições de os executar, o que depende muito mais de si, do que de nós, porque não é suposto recorrermos à falsidade para atrair outros colegas, uma vez que isso é contrário ao nosso saber estar, tal como nos transmitiram sapientemente os nossos insignes Mestres que tanto respeitamos. O que, sem sombra de dúvida, deveria ser também a postura dos governantes.

 

Setúbal, 2021/11/28

José MD Poças

 (Nota: texto adaptado de uma publicação efetuada no “Observador” online, em 2021/11/27)