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A Medicina Interna e a urgência médica em Portugal

O nosso sistema de saúde está demasiado centrado nos hospitais e cada vez mais condicionado pelo desempenho dos serviços de urgência. Porque vão tantos doentes aos serviços de urgência, muitos deles sem situação clínica que o justifique? É preciso responder a esta questão de forma clara para se tomarem as medidas adequadas. Ninguém duvida que os doentes recorrem onde julgam que são atendidos com competência e eficácia, mesmo em detrimento do conforto ou da rapidez. O fecho dos hospitais de proximidade e das urgências que asseguravam, as alterações do âmbito dos cuidados de saúde primários e o envelhecimento da população estão na base da sobrecarga dos grandes hospitais. Os nossos serviços de urgência atendem um número crescente de doentes idosos, com polipatologia, que pouco têm a ver com o doente teoricamente expectável neste âmbito, mas que representam mais de metade das admissões. Para resolver o problema da urgência em Portugal são necessárias medidas de fundo, a começar pela reorganização de todo o sistema de saúde e incluindo o aproveitamento correto das várias especialidades e da competência em Emergência Médica e não a criação duma nova especialidade de Medicina de Urgência e Emergência, que nada vai alterar no imediato e pouco sentido fará na nossa realidade, como procuramos demonstrar.

A Medicina Interna portuguesa é substancialmente diferente da que existe na generalidade dos países europeus, incluindo aqueles onde existe a especialidade de “Emergency Medicine”. A nossa Medicina Interna é autónoma e os internistas não têm dupla titulação, mantendo uma atividade clínica abrangente e diversificada, o que os torna adequados aos doentes que acorrem às nossas urgências com patologia médica, quer aos verdadeiramente urgentes, quer aos outros. O programa de formação em Medicina Interna refere que a especialidade se “ocupa da prevenção, diagnóstico e terapêutica não cirúrgica em adultos, incluindo doentes crónicos, agudos, críticos, convalescentes ou em cuidados paliativos, abrangendo todas as doenças de órgãos e sistemas ou multissistémicas, prestando cuidados integrados até ao fim da vida” e que se “exerce nos diferentes ambientes de prática clínica e abrange as várias fases evolutivas de toda a patologia médica, atuando no internamento (hospitalar e domiciliário), no ambulatório (incluindo consultas diferenciadas), no hospital de dia, na urgência/emergência, nos cuidados intermédios, nos cuidados paliativos, em unidades diferenciadas multidisciplinares, estando aberta a novas formas de abordagem do doente.” Nos objetivos de formação refere-se que os internos devem “integrar a equipa de Medicina Interna no serviço de urgência, por períodos de 12 horas semanais, com formação em exercício, atuando nas áreas do serviço de urgência sob responsabilidade da Medicina Interna, com tutela de um especialista desta especialidade” e que devem “na urgência, observar e orientar doentes do foro da Medicina Interna, incluindo doentes críticos, devendo o treino adquirido ser considerado para o reconhecimento da competência em urgência médica/emergência”.

A par doutras especialidades nucleares, designadamente as cirúrgicas, a Medicina Interna tem garantido a urgência hospitalar e é essencial no estudo e tratamento dos doentes críticos e nos que exigem cuidados mais diferenciados, incluindo aqueles que têm polipatologia. Na urgência pré-hospitalar, no atendimento generalista nos serviços de urgência e no doente crítico, é importante a colaboração de médicos com aptidões específicas, como os atuais detentores da competência em Emergência Médica, em que se incluem mais de duas centenas de internistas.

A insuficiência de recursos humanos nas escalas de urgência, ou a inclusão de médicos indiferenciados nas equipas, duas realidades a ultrapassar, não são motivo para a criação duma nova especialidade, porque isso nem sequer resolveria o problema. Se fosse criada agora a especialidade de Urgência e Emergência e se o treino dos seus internos demorasse 5 anos, iniciando-se em janeiro de 2021 (na melhor das hipóteses), só em fevereiro/março de 2026 haveria novos especialistas. E aqui, importa perguntar: quem, como e onde se fará a formação desses internos, numa altura em que as capacidades formativas estão totalmente aproveitadas? Com tantas declarações públicas, os proponentes da nova especialidade ainda não responderam a estas questões nucleares, nem mostraram um programa de formação. Além disso, admitindo que muitos (mas nem todos) dos atuais detentores da competência em emergência médica fossem admitidos por consenso como especialistas, a mudança de título não aumentaria o seu número, nem os tornaria mais capazes ou disponíveis do que são atualmente. Contudo, a especialidade que é proposta promete ser bastante diferente da atual competência, que tem tido uma ação importante, mas quase restrita ao pré-hospitalar, não se sabendo qual o âmbito de ação que é pretendido para o futuro, porque o que tem sido dito é demasiado vago.

Ora, no mesmo espaço temporal atrás referido serão formados mais de 1000 novos internistas (a partir de janeiro de 2020 serão admitidos mais de 220 internos/ano), muitos dos quais poderão ter interesse especial pela área da urgência e adquirir também a competência em Emergência Médica. Não será isso suficiente para atingir o objetivo que os promotores da nova especialidade defendem? Assim se faria o desenvolvimento da atual competência, aberta aos especialistas interessados na urgência pré-hospitalar e hospitalar, de acordo com o que é proposto como definição da Medicina de Urgência e Emergência: “especialidade baseada em conhecimentos e competências necessárias para a prevenção, diagnóstico e o manuseamento dos aspetos agudos e urgentes de doenças e lesões no vasto espectro da doença física e comportamental, que afetam todas as faixas etárias … abrange o pré-hospitalar, a admissão ao hospital, a ressuscitação e manuseamento de casos urgentes e emergentes até à alta ou transferência para outro médico / especialidade.” Inquestionavelmente, os especialistas em Medicina Interna (com algum treino complementar) são os melhor colocados para desempenharem estas funções no adulto, com a vantagem de nem se pôr o problema da necessidade de “transferência para outra especialidade”, porque a base científica/técnica de abordagem de cada situação é a mesma/comum a todos os internistas.

Em conclusão, a Direção do Colégio de Medicina Interna defende que todos os outros Colégios desenvolvam e aprofundem as competências e definam com rigor os critérios que entendam ser adequados para a admissão dos seus membros, mas é contra iniciativas que ponham em causa lugares que a Medicina Interna ocupa por direito próprio, com base nas suas competências específicas, de acordo com a realidade portuguesa e com bons resultados. Esta é uma posição de princípio, baseada na defesa do superior interesse dos doentes. Defende ainda que para ter a competência em Medicina de Urgência devia ser obrigatório um estágio de, pelo menos, dois anos em Medicina Interna. Dentro destes princípios, não vislumbramos qualquer necessidade de criar uma nova especialidade de Medicina de Urgência e Emergência para atuar numa área que é, pode e deve continuar a ser assegurada por diferentes especialistas, com destaque para os de Medicina Interna. Apoiamos sem reserva e consideramos essencial o desenvolvimento da atual competência de Emergência Médica, que poderá até adotar a designação de “Urgência e Emergência”, continuando a ser uma mais-valia na urgência pré-hospitalar e passando também a desempenhar um papel importante nos serviços de urgência, mantendo-se aí o papel fulcral da Medicina Interna. Como se pode ler no documento do curriculum europeu, “Emergency Medicine is an interdisciplinary specialty, one which is interdependent with all other clinical disciplines. It thus complements and does not seek to compete with other medical specialties”. Isto é a definição clara duma competência tal como entendemos em Portugal.

Mais do que criar uma especialidade, seria interessante que o Colégio de Emergência Médica defendesse que os seus membros assegurassem não só a urgência pré-hospitalar (como já fazem), mas também o atendimento inicial dos serviços de urgência (em vez dos tarefeiros sem especialidade), de acordo com o papel que, segundo nos comunicou a Direção do Colégio, seria o da nova especialidade. Assim veríamos no terreno as possíveis vantagens do modelo proposto, mantendo em aberto as perspetivas de melhoria que todos procuramos.

A Direção do Colégio de Medicina Interna afirma que não cederá na defesa do lugar primordial desta especialidade na área médica dos serviços de urgência, onde deverá ser responsável pelos doentes do seu foro e pela coordenação de toda a assistência prestada a esses doentes, sejam agudos, crónicos agudizados, ou críticos, sendo a especialidade mais apta a avaliar e tratar doentes do foro médico de elevada complexidade.

 

Coimbra, 20 de dezembro de 2019

A Direção do Colégio da Especialidade de Medicina Interna