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A cereja dos desalmados

Autor: João Miguel Nunes “Rocha”

A cereja dos desalmados

O sucesso  da fase inicial da pandemia, tão retumbante que até lhe chamaram o milagre português, não se deveu a nenhum grande mérito dos gestores, DGS, MS, políticos, cuja actuação se pautou por um rol  de falhas, omissões e contradições que esboroaram, a sua credibilidade e a nossa confiança.

O confinamento cujos malefícios: destruição de empregos, abate do tecido produtivo mais frágil, pobreza galopante, tratamento muito desigual, quer das empresas quer das profissões, fome de terceiro mundo… não cumpriu os pressupostos da sua razão de ser, apesar da adesão espontânea  massiva: proteger os mais vulneráveis – os velhos, os doentes – que mesmo confinados em casa ou aprisionados em lares (prisão que se mantém) e apesar do vírus não ter transporte próprio, não escaparam ao contágio e à razia mortal, cujo número real está longe do apregoado. Este resultado, quer se trate de um crime premeditado, o que o torna hediondo, quer de uma desmesurada incompetência, tem responsáveis, que ao invés de punidos, vêm todos os dias do cimo dos seus altos cargos, dar-nos contas do seu falhanço e, omiti-lo, tentando passar a culpa para os cidadãos e ao enumerarem os óbitos vem sempre o coroar feliz: todos acima dos setenta, oitenta anos… E, esta miserável cereja em cima do bolo dos desalmados, enfatiza diariamente, que os novos, muito raramente são afectados com severidade ou com sequelas e a morte  neles é excepcional, o que carcomeu o medo , manifestando-se agora o desrespeito dos jovens pelos limites, inerente a um civismo que se desvaneceu… ou que nunca existiu.

Excepto o confinamento e a sua ambivalência e, os conselhos repetidos até à exaustão: higienização das mãos, etiqueta respiratória, distanciamento, não se vê prodigalidade , ou, medidas de eficácia real, como o seriam: lotação adequada dos transportes públicos; abolição das festas de cariz político, religioso ou lúdico, impostas sem medos, tibiezas ou ambiguidades (pois se até se proíbem os familiares nos funerais…); tratamento atempado e eficaz a quem dele careça, COVID ou não COVID, porque a morte é sempre o fim; ventilação adequada de todos os espaços fechados, quer sejam os lares dos nossos velhos ou as escolas dos nossos filhos, e, a sua desinfecção frequente; limpeza e desinfecção das ruas (ou será que o vírus morre ao cair ao chão); horários desfasados impostos com firmeza e não ao deus dará; multas a doer, para quem viole o distanciamento obrigatório, seja onde for; cumprimento das regras decretadas para os aeroportos (infringidas constantemente); contratação de pessoal de saúde para o SNS, de modo a possibilitar o tratamento adequado de todos os doentes e não ter de se recorrer à inevitável  “selecção”, real desde o início da pandemia (eu próprio recebi várias mensagens a desmarcar-me consultas hospitalares); falar verdade aos cidadãos; testes, testes,

Mesmo para os crentes e até para os clérigos os desígnios de Deus são insondáveis, e o COVID -19 que veio dar uma grande dádiva à  “Senhora da Gadanha ” e trazer o gaudio e a prosperidade às funerárias,  mata quase que exclusivamente pessoas de idade avançada, com ou  sem co -morbilidades graves e sendo obrigação do Estado que nos cobra os impostos, proteger os cidadãos, na saúde e na doença, urgia por força  do dito, isola-los eficaz e não atabalhoadamente, como o fez, privando-os das visitas dos familiares mas não impedindo que outros, os fossem infectar; amargurou-se-lhes  o fim, mas não os livraram de uma morte escusada, encurralados nos lares, ao invés do que fizeram com os migrantes da Almirante Reis, ou do que fariam, se se tratasse de crianças ou de cidadãos importantes.

Aproveitar a pandemia para ressuscitar o SNS, tornando-o apelativo para os profissionais e de confiança para os doentes, o que só se conseguirá com carreiras médicas dignas, exclusividade com remuneração adequada e, muito mais pessoal…

Porque, se o cidadão só merece viver enquanto produzir, porque não tornar os descontos para a reforma, facultativos, como no tempo do ditador.

João Miguel Nunes “Rocha”