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António Vasco Poiares Beltrão Baptista(1927-2023)

    Homenagem

    António Poiares Baptista: médico ilustre, cidadão exemplar
    Texto por Jorge Castilho (Jornalista)

    Fotografias gentilmente cedidas pela Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos

     

    Ao longo do sinuoso curso da vida, por vezes temos a ventura de deparar com pessoas invulgares, que conquistam a nossa admiração e, se tivermos sorte, retribuem a nossa amizade. Foi isso que me sucedeu quando, há umas décadas, tive a felicidade de conhecer António Poiares Baptista, de quem me tornei amigo, e que carinhosamente guardo na minha memória, agora que nos deixou, aos 96 anos de uma vida exemplar, transbordante de êxitos.

    Ao longo de décadas fomos vizinhos no mesmo prédio da Rua da Sofia onde ele tinha o consultório e onde estavam as instalações do “Jornal de Coimbra”, de que eu era director e proprietário.

    E estreitámos relações na Alliance Française de Coimbra, de que ele foi Presidente (e de que eu ainda sou Vice-Presidente), tendo também ele aceitado ser Vice-Presidente da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra, a que eu presido.

    Foi um privilégio ter convivido tantos anos com este grande Senhor, de uma enorme gentileza, de uma profunda cultura, de uma rara sensibilidade, de um requintado sentido de humor.

    E é em jeito de singela homenagem que aqui lhe esboço um retrato, recorrendo a uma entrevista que lhe fiz há alguns anos (publicada em 2011 no jornal “Aurinegra”, que eu então dirigia), deixando para o fim deste texto os detalhes biográficos mais relevantes.

    PIONEIRO NA DERMATOLOGIA

    Prestigiado médico dermatologista ao longo de décadas, Professor Catedrático jubilado da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (de que foi Vice-Reitor durante oito anos), António Poiares Baptista é um dos mais ilustres filhos da histórica vila de Ançã (no concelho de Cantanhede).

    Ali nasceu em 1927, na casa senhorial da Quinta da Loureira, mandada construir no início do século XVIII pelos seus antepassados do lado materno, a família Beltrão, originária de Aguiar da Beira, e que nessa época remota se instalou em Ançã.

    Muito bem-humorado, tão afável como frontal, apreciava o convívio com os amigos. Bom conversador, demonstrava uma vasta cultura, a par com uma profunda sensibilidade artística.

    Com poucos meses de vida saiu de Ançã para Moçambique, onde seu Pai foi exercer Medicina. Alguns anos depois, ainda adolescente, veio com o irmão estudar para Coimbra.

    Jogou voleibol enquanto aluno do Liceu D. João III, e foi praticante de natação, com algum destaque, na Associação Académica de Coimbra. Uma modalidade em que, já depois dos 90 anos, se sagraria como um dos melhores do Mundo (mais concretamente o 4.º melhor em 50 metros bruços, na categoria de Masters).

    Já matriculado em Medicina foi para Paris especializar-se em Dermatologia, regressando a Coimbra 4 anos depois, já casado com uma jovem francesa por quem se apaixonara. Voltaria a Paris, poucos anos volvidos, para preparar o doutoramento em Dermatologia, que concluiu na Faculdade de Medicina de Coimbra, onde leccionou durante décadas e até 1997, quando se jubilou por ter atingido o limite de idade. Continuou a exercer clínica no seu consultório da Rua da Sofia até 2007, quando decidiu que era altura de se auto-reformar e passar a ter mais tempo para si, para a Família, para a pintura e para Ançã.

    Assim se esboça, em breves pinceladas, o percurso da vida deste médico-pintor, que adiante tentaremos retratar de forma mais detalhada e colorida.

    DE ANÇÃ PARA COIMBRA COM PASSAGEM POR ÁFRICA

    As ligações do Prof. António Poiares Baptista ao concelho de Cantanhede radicam na família materna, como já antes se referiu, mas também na paterna. Seu bisavô paterno, o advogado António José da Silva Poiares, nasceu em Bolho, Cantanhede, tendo escritórios ali e em Coimbra. Personalidade destacada, foi Presidente da Câmara de Cantanhede e Provedor da Misericórdia daquela então vila (entre 1881 e 1918), tendo vencido uma complexa acção judicial que permitiu à instituição tomar posse do valioso legado de D. Crisóstomo de Amorim Pessoa, Arcebispo de Braga. Como prova de gratidão, existe um monumento com o seu busto junto ao edifício do antigo Hospital da Misericórdia e também uma rua com o seu nome na cidade de Cantanhede.

    Um neto deste ilustre advogado concluiu o curso de Medicina em Coimbra, e foi exercer para Ançã, onde conheceu e casou com uma jovem da secular família Beltrão.

    Do casamento nasceram dois rapazes, José (que viria a ser engenheiro electrotécnico) e, um ano depois, António (o protagonista deste relato). Tinha poucos meses quando a família partiu para Moçambique, onde o Pai foi exercer clínica.

    Tal como o irmão, fez a escola primária em Quelimane e Inhambane.

    Na altura os funcionários do então Ultramar tinham direito, de 4 em 4 anos, à chamada “licença graciosa” na Metrópole, que durava 6 meses.

    No termo de uma dessas licenças, os Pais decidiram deixar os dois pequenos em Coimbra, em casa de um tio, o médico David Baptista. António ingressou na 4.ª classe, José no 1.º ano do Liceu.

    Entretanto rebentou a II Guerra Mundial, e as longas viagens marítimas entre Moçambique e Portugal (duravam quase um mês) foram suspensas, por causa dos ataques dos alemães, que afundaram diversos navios.

    Assim, os Pais só voltaram a Portugal após o final da Grande Guerra (em 1945), reencontrando os filhos já na Universidade: José no Porto, onde se formou em Engenharia Electrotécnica, António no 1.º ano da Faculdade de Medicina de Coimbra.

    “Nunca quis ser outra coisa que não médico” – afirmou-nos, acrescentando: “Para meu azar, logo no primeiro exame que fiz, de Anatomia, tive um 19. O meu Tio David comentou: ‘Estás desgraçado!’. E, de facto, a partir daí fiquei com a responsabilidade de tirar boas notas. Acabei a licenciatura com média de 18,2. Na época, só outros 2 colegas conseguiram formar-se com nota semelhante: o Luciano dos Reis, que foi Professor em Coimbra e em Luanda, e o Josué, que foi médico em Aveiro”.

    Apesar de ser aluno brilhante, ainda arranjava tempo para praticar desporto. No Liceu D. João III jogara voleibol, já na Universidade foi nadador da Associação Académica de Coimbra, treinado por duas velhas glórias da natação nacional, Manuel Gaspar e Luís Conceição, que ensinaram a nadar e treinaram sucessivas gerações de jovens de Coimbra, mas também oriundos de outros pontos do País, que vinham estudar para a cidade universitária.

    “Treinávamos na Piscina Fluvial que existia no rio Mondego e num tanque no Campo de Santa Cruz, a que chamávamos “caldo verde”, pois era a cor da água, por causa dos limos. Entrei em competições em diversos pontos do País e até ganhei algumas medalhas. Mas não por mérito meu, pois foi sempre nas provas de estafetas, em que os outros puxavam e eu ia atrás!” – referiu-me, modesto, e com uma gargalhada.

    O mesmo bom humor com que me explicou as razões que o levaram a optar pela Dermatologia:

    “A nota mais baixa que tive foi exactamente num exame de Dermatologia: apenas 17! Talvez por isso, mas também porque não existiam grandes nomes nessa área em Coimbra (o Professor de Dermatologia era o Mário Trincão, cardiologista!). Concorri a uma bolsa e fui para Paris, onde estive quatro anos a aprender, no Hospital de Saint Louis, com um dos mais insignes Mestres, o Prof. Robert Degos, uma referência a nível mundial”. Voltaria mais tarde para trabalhar com este reputado especialista, então para preparar o doutoramento.

    EM PARIS ENCONTROU A MULHER DA SUA VIDA

    Enquanto o Irmão José regressava a África (era Director dos Correios em Angola na altura da independência daquele País, depois de ter ocupado cargo semelhante em Macau) António, fascinado pela cultura francesa, decidiu ir aprofundar a sua formação académica em Paris. Mas não foram só conhecimentos científicos que António Poiares Baptista encontrou na capital francesa.

    Também se deslumbrou com os espectáculos:

    “Recordo-me de ter ido ao ‘Follies Bergères’ dois meses depois de estar em Paris. Para mim, como provinciano, foi um acontecimento de espantar!”.

    De facto, o célebre cabaret parisiense tinha fama em todo o Mundo sobretudo pelos ousados bailados de coristas em trajos muito reduzidos.

    Também a intensa vida cultural de Paris o deslumbrou, e talvez por isso, visitando museus e exposições, vendo artistas de rua, tenha descoberto vocação para uma actividade que mais tarde iria aprofundar: a pintura.

    Mas as tertúlias, frequentadas por alguns outros portugueses com quem estabeleceu amizade na capital francesa (alguns ali exilados, outros estudantes como ele), igualmente o seduziam.

    E foi por causa de uma dessas tertúlias que surgiu a paixão pela que viria a ser a Mulher da sua vida e Mãe dos seus dois filhos, como ele próprio me contou:

    “Na altura era Leitor de Português na Sorbonne o Urbano Tavares Rodrigues, de quem me tornei amigo. Num dos dias em que fui encontrar-me com ele à saída das aulas, para jantarmos juntos, apresentou-me algumas alunas francesas que estudavam Português como cadeira de opção. Entre elas estava uma estudante da licenciatura em Espanhol, chamada Claude”.

    O namoro depressa começou e quatro anos volvidos, quando regressou a Portugal, António Poiares Baptista já vinha acompanhado por Claude Masson, com quem entretanto se casara, e com quem teve dois filhos: Pedro Masson Poiares Baptista (tal como o Pai médico dermatologista em Coimbra) e Isabel Poiares Baptista (igualmente médica e Professora na Faculdade de Medicina Dentária da Universidade de Coimbra).

    Claude faleceu em Maio de 2009, e parte das suas cinzas foram colocadas em Ançã, junto das sepulturas dos sogros, e a outra parte em França, junto à sepultura da Mãe.

    Para combater a solidão, Poiares Baptista dedicou-se mais à pintura, onde foi um auto-didacta, mas cuja técnica aperfeiçou com Collete Vilatte (uma artista que criou uma galeria em Condeixa e que faleceu em 2009).

    O REGRESSO ÀS ORIGENS

    Depois de ter decidido acabar com as consultas e, sobretudo, após a morte de Claude, António Poiares Baptista começou a passar mais tempo em Ançã, para onde ia quase todos os fins-de-semana.

    Fazia parte da Confraria do Bolo de Ançã, mas confessou-me que não gostava do chamado “Bolo de Cornos”. E comentou, com o seu proverbial bom humor: “Ainda por cima têm por hábito oferecer este bolo por altura dos casamentos. Que raio de ideia pouco apropriada!”.

    Falava com orgulho da Banda de Ançã, a Phylarmonica criada em 1879, e de que seu Avô e seu Pai foram presidentes.

    E com igual orgulho do moinho histórico existente no centro de Ançã, que, juntamente com seu Irmão, cedeu à Câmara de Cantanhede por algumas décadas, na condição de se manter em uso e do moleiro não ter de pagar renda.

    Para rematar, relatava, com mais uma gargalhada franca, uma visita de Mário Soares a Ançã. Chamado à tribuna, Poiares Baptista ouviu Soares perguntar para o lado: “Quem é este gajo?”.

    Alguém disse ao então Primeiro-Ministro aquilo que é reconhecido por todos:

    “É o Professor Poiares Baptista, um dos mais ilustres filhos de Ançã e um dos mais prestigiados médicos portugueses!”. 

    SÍNTESE BIOGRÁFICA

    António Vasco Beltrão Poiares Baptista nasceu a 20 de Setembro de 1927 em Ançã. Licenciou-se em 1951 pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (com 18 valores). Especialista em Dermatologia pela Faculdade de Medicina de Paris (1953-56), bolseiro do Governo Francês como Assistente Estrangeiro (1956-57) e bolseiro da Fundação Gulbenkian para Doutoramento (1961-62) no Hospital de Saint Louis (Paris), sob orientação do Prof. Robert Degos.

    Foi Professor de Dermatologia na Faculdade de Medicina de Coimbra de 1965 a 1997 e nesse mesmo período Director da Clínica de Dermatologia e Venereologia dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC).

    Chefe do Internato Médico dos HUC (1969-74), foi também Director dos HUC entre 1974 e 1978.

    Presidente do Conselho Científico da Faculdade de Medicina (1978-92) e Director daquela Faculdade de 1990 a 1994.

    Foi Vice-Reitor da Universidade de Coimbra durante 8 anos (1982-90).

    Dos muitos outros cargos que exerceu, destacamos os seguintes: Presidente da Sociedade Portuguesa de Dermatologia e Venereologia, Vice-Presidente da Associação dos Dermatologistas Francófonos, Presidente da Comissão Nacional de Avaliação Externa das Faculdades de Medicina e Medicina Dentária, Presidente do Conselho Nacional de Avaliação de Formação da Ordem dos Médicos.

    Era Membro da Academia Nacional de Medicina de França, da Academia Portuguesa de Medicina e da Real Academia de Medicina de Salamanca.

    Autor ou co-autor de vários livros de Dermatologia e de cerca de 300 artigos científicos publicados (em Portugal e no estrangeiro).

    Foi Cônsul Honorário de França em Coimbra entre 1975 e 1997 e Presidente da Alliance Française de Coimbra.

    Entre as diversas distinções que recebeu, destaco as seguintes: Grande Oficial da Ordem de Santiago de Espada, Cavaleiro da Ordem National de Mérito de França, Medalha de Prata de Serviços Distintos do Ministério da Saúde, Medalha de Mérito da Ordem dos Médicos, Cavaleiro da Ordem Nacional do Leão do Senegal, Medalha de Prata do Mérito Cultural de Cantanhede.

    Datas

    Nome completo: ANTÓNIO VASCO POIARES BELTRÃO BAPTISTA
    Cédula :   7080
    Especialidade: DERMATO-VENEROLOGIA
    Data de nascimento: 20/09/1927
    Data de formatura: 13/11/1951
    Faculdade: UNIVERSIDADE DE COIMBRA
    Data de inscrição na OM: 10/12/1951
    Data de falecimento: 12/11/2023

    Nota: a OM assegura aos herdeiros os direitos de acesso, retificação e apagamento destes dados pessoais.

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