Não foi por falta de aviso que a tutela não resolveu os problemas crónicos e graves do Hospital de Setúbal – a unidade mais visitada pelo bastonário neste seu mandato. No dia 20 de setembro, Miguel Guimarães voltou a visitar o hospital, encontrando dezenas de macas nos corredores e relatos de um somatório de problemas complexos, o que levou a mais uma intervenção pública sobre as dificuldades de Setúbal e a necessidade de intervenção urgente do Ministério da Saúde. Nada aconteceu e, na semana passada, o diretor clínico apresentou a sua demissão. Na quarta-feira, seguiu-se a apresentação de demissão por parte de 87 dos médicos com funções de direção, desde direção clínica, diretores de serviço e departamentos, coordenadores de unidade e comissões e ainda chefes de equipa de urgência. Para o bastonário, os médicos de Setúbal têm sido “verdadeiros heróis” e “só a dedicação aos doentes tem evitado o pior”.
A demissão foi apresentada nas instalações de Setúbal da Ordem dos Médicos, após uma reunião pedida pelos médicos à Ordem e aos sindicatos. Na conferência de imprensa, os diretores dos serviços de Anestesiologia, Oncologia e Ginecologia/Obstetrícia relataram na primeira pessoa as dificuldades que atravessam, com o esvaziamento de equipas e perda de diferenciação. Só na oncologia foram cerca de 2000 os doentes que ficaram sem médico assistente com mais reduções no quadro – e só o esforço de quem ficou permitiu que não fossem cancelados tratamentos.
“O pedido de demissão (…) é o último grito de alerta para a situação desesperante a que o Centro Hospitalar de Setúbal chegou, à rutura das urgências e em vários serviços primordiais do hospital”, disse Nuno Fachada, diretor clínico demissionário, que garantiu que o problema começa no facto do hospital ser financiado incorretamente, como se tivesse menos diferenciação do que a que de facto oferece. Também o presidente do Conselho Sub-Regional de Setúbal da Ordem dos Médicos, Daniel Travancinha, salientou que “o SNS está enfermo de forma transversal em todo o país”, mas assegurou que em Setúbal o caso é mais grave e que há “situação de rutura com a possibilidade, em breve, de encerramento de serviços essenciais”.
Por seu lado, o presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos lembrou os sucessivos atrasos na ampliação do Hospital de São Bernardo e na requalificação do serviço de urgência. Alexandre Valentim Lourenço salientou também o testemunho de alguns diretores de serviço, nomeadamente que “50% capacidade dos blocos operatórios não é utilizada por não haver anestesistas suficientes” e que os 10 novos médicos prometidos pela tutela não chegariam sequer para colmatar as carências na obstetrícia.
O bastonário encerrou a conferência, mostrando total solidariedade para com os colegas e elogiando a dedicação de Nuno Fachada, “que tudo fez para tentar resolver a situação, mas que sabe que tem também e missão de tudo fazer para proteger a qualidade da medicina no hospital”. Miguel Guimarães disse não ser compreensível que um hospital privado consiga abrir um grande centro de oncologia em apenas quatro anos e que no setor público tudo se arraste por dezenas de anos. “O Governo tem de conseguir fazer a mesma coisa. Não podemos dizer que defendemos o SNS e depois pouco ou nada fazemos”.
Para o bastonário, “estes médicos são poucos, multiplicam-se em horas extraordinárias e muitos estão em exaustão”, pelo que merecem a atenção do Ministério da Saúde. “É preciso perceber como está a funcionar a política de recursos humanos do SNS”, frisou, defendendo que os locais carenciados possam contratar diretamente os médicos que formam, em vez de se aguardar por um concurso nacional que cria disrupção. Reforçar a carreira médica e rever a política de pagamento de horas extraordinárias – para não permitir que as empresas médicas recebam mais que os profissionais do quadro – são duas das prioridades avançadas por Miguel Guimarães.
“Não posso deixar de destacar os heróis que estes médicos são todos os dias. Não por causa deles, mas por causa dos seus doentes. Se não fossem os seus doentes, provavelmente muitos destes médicos já tinham saído do SNS”, rematou, apelando a uma revisão total da política do país, para que a saúde seja vista como um ganho e não como um gasto.
A conferência contou ainda com intervenções do secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos, Jorge Roque da Cunha, e do coordenador do Sindicato dos Médicos da Zona Sul, João Proença.