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Solicitado a pronunciar-se sobre o Projeto Lei 912/XIV /2ª, o Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia emitiu o seguinte parecer, homologado em Conselho Nacional no dia 4 de outubro de 2021. No final deste documento encontra-se uma nota que consubstancia a posição da Ordem dos Médicos perante a Assembleia da República e própria sociedade civil:
1- O termo violência obstétrica é inapropriado em países onde se prestam cuidados de saúde materno-infantil de excelência, como é o caso de Portugal. O termo não se adequa à realidade que se vive nestes países; lança alarme, medo e desconfiança sobre as grávidas e as suas famílias e põe em causa os profissionais de saúde que se esforçam por lhes prestar os melhores cuidados possíveis, segundo a melhor e mais atual evidência científica. A comunidade científica e as instituições internacionais separam o conceito de violência obstétrica de outras formas de desrespeito ou insatisfação com os cuidados prestados às grávidas. A violência obstétrica é apontada, por todas as instituições idóneas, como um grave obstáculo à prestação de cuidados materno-infantis adequados e não como algo que deles resulta. Mesmo quando algum indicador de saúde não é tão excelente quanto desejamos, não há qualquer similaridade entre o que se passa em Portugal e em países onde não se respeitam os direitos humanos, onde mulheres, grávidas e crianças morrem ou ficam com sequelas graves, por falta de assistência médica, onde as taxas de mortalidade materna e podem ser mais de cento e cinquenta vezes superiores às de Portugal.
2- Corroborando o que dissemos no ponto anterior, na fundamentação da proposta de Projeto de Lei não se dá como provada nenhuma situação de violência obstétrica em Portugal. A proposta de Projeto de Lei assenta nos resultados de dois inquéritos lançados nas redes sociais pela Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto {APDMGP). Os inquéritos foram respondido por menos de 2% das mulheres que tiveram um parto (vaginal ou por cesariana) em Portugal, entre 2012-2015 e 2015-2019, não foram publicados em nenhuma revista científica nacional ou internacional, não tiveram revisão independente conhecida de nenhum especialista em Ginecologia-Obstetrícia e não se referem a mortalidade materna ou perinatal, a internamentos em cuidados intensivos, a sequelas para toda a vida, à privação de cuidados médicos necessários ou à sua realização comprovada sem consentimento, aquilo que são, e devem ser, o foco principal dos cuidados obstétricos. Os resultados do inquérito circunscrevem-se a opiniões sobre a satisfação de expectativas de participação pessoal, conforto, relações com os profissionais e partilha social, tudo causas relevantes, que os especialistas em Ginecologia e Obstetrícia defendem, mas de patamar diferente do da violência obstétrica.
3- Também corroboram o referido nos pontos anteriores, os dados da Ordem dos Médicos onde não se deu como provada nenhuma situação de violência obstétrica, praticada por médicos em Portugal. A este propósito, já tivemos oportunidade de emitir uma nota quando confrontados com uma resolução recente da Assembleia da República sobre o assunto: não temos registo de se terem dado como provadas práticas de intervenções sem indicação médica ou sem consentimento informado. Na mesma linha, não temos conhecimento de nenhuma condenação, por órgãos governamentais, como a IGAS (Inspeção Geral das Atividades em Saúde) ou tribunais, de médicos por situações que possam ser consideradas violência obstétrica. Por outro lado, não obstante as limitações conhecidas de instalações e outros recursos, os inquéritos de satisfação regularmente realizados nos Serviços de Obstetrícia e Neonatologia nacionais têm transmitido resultados muito positivos, constituindo uma ferramenta essencial para uma melhoria contínua da assistência prestada às grávidas e aos recém-nascidos.
4- O Colégio condena obviamente qualquer tipo de violência, por ação ou omissão de cuidados médicos, ou de qualquer outro tipo de práticas médicas, que não as ditadas pela evidência científica, na qual se inclui a opinião de especialistas reconhecidos pelos seus pares. Em países onde se respeitam os direitos humanos, as más práticas médicas são condenadas não só pelos tribunais e por entidades governamentais como a IGAS, mas também pelas ordens profissionais. Em Portugal, estes crimes ou infrações deontológicas já se encontram previstos no Código Penal e no Código Deontológico, tal como é referido na proposta de lei em apreço, e as penas podem ir até à prisão, com inibição temporária ou permanente do exercício da profissão.
5- Para além da utilização inapropriada do termo violência obstétrica referida no ponto 1 deste parecer, que perpassa do Projeto de Lei, é muito perigosa a ideia que também é passada, apoiada pelas respostas aos inquéritos promovidos pela APDMGP, de que é má prática a indução do trabalho de parto, a episiotomia, o parto instrumentado com ventosa ou fórceps, a analgesia epidural, a cesariana, entre outras intervenções, tais como a realização de manobras de manipulação abdominal (como as associadas à resolução de uma distocia de ombros, à versão externa, à extração fetal durante a cesariana, à manobra de Mueller-Hillis ou à verificação da formação do globo de segurança), ainda que realizadas com a devida indicação e competência. Os procedimentos referidos constituem boas práticas, que permitem reduzir morbilidade e mortalidade materna e fetal, e só o não são quando realizados sem justificação ou consentimento. Importa sublinhar que tanto é má prática realizar um ato médico desnecessário como não o realizar quando é necessário.
6- Uma outra ideia perigosa que perpassa no Projeto de Lei, apoiado pelas respostas ao inquérito promovido pela APDMGP, é a de que a gravidez, o parto e o puerpério são processos fisiológicos em que raramente se justificam intervenções médicas, quando na verdade representam um período muito perigoso para a mulher e o seu filho. A ratio de mortalidade materna e a taxa de mortalidade perinatal em países em que as grávidas não têm acesso a cuidados de saúde pode chegar aos 1.200/100.000 e aos 100/1.000, respetivamente, cerca de 150 e 25 vezes superiores às Portuguesas (excluindo os abortamentos e as mortes por acidentes, crimes e guerra, que aumentariam muito a diferença referida). Acresce que se estima que por cada caso de morte há três a cinco casos de situações muito graves de risco de vida e sequelas, que atiram os números de desfechos trágicos para mais de um terço das grávidas. A estes números devem ser associados os valores estimados de cerca de 30% de grávidas que padecem de dor grave associada a sofrimento materno e fetal, durante o parto, sem apoio de analgesia eficaz, sem falarmos das mais de 80% das parturientes que optam pela analgesia epidural quando tal lhe é proporcionado sem custos, como acontece em Portugal.
7- De assinalar ainda que ao contrário do que parece, as análises promovidas pela APDMGP mostram fracas associações entre a insatisfação e as intervenções ou outro tipo de atuações durante o parto. Essa constatação reforça a ideia que defendemos nos pontos 1 a 3, de que o que está em causa é uma análise de insatisfação e não de violência, que teria originado certamente associações muito mais fortes. Na verdade, sem ser objetivo do nosso parecer uma análise pormenorizada dos textos divulgados pela APDMGP, neles se constata que, apesar de grande parte dos resultados terem tido significado estatístico, eles revelam que as associações entre as variáveis analisadas foram fracas a muito fracas, com quase todos os valores absolutos de correlação de Spearman inferiores a 0,4. Também é preocupante constatar-se como podem ser enganadores os resultados apresentados nos textos referidos, a necessitarem de uma análise científica apropriada, ao “sugerirem” que a cesariana sem trabalho de parto (capítulo IV -Satisfação das inquiridas e muitas outras questões, do segundo inquérito) e o parto no domicílio sem programação (capítulo li -Local do parto/Tipologia) foram as opções que revelaram associações mais fortes com a melhor experiência de parto, não sendo estas, de forma alguma, práticas a generalizar, tudo resultando de enviesamentos dos inquéritos realizados. Com o devido respeito, é óbvio que é de esperar que uma população motivada para manifestar a sua insatisfação com o parto, ou cuja relação pacienteprofissionais de saúde foi insatisfatória, responda favoravelmente à pergunta se está insatisfeita com o parto. Também é de esperar que as mulheres refiram satisfação com o parto, quando puderam escolher o local, os profissionais e a via do parto, sem ter tido qualquer complicação, quando comparadas com as que não tiveram igual oportunidade, mesmo que as opções possam não ter sido as mais condizentes com as boas práticas, como pode ser o caso dos exemplos apontados.
8- É de temer que o Projeto de Lei promova o afastamento das grávidas das instituições de saúde, havendo indícios de que tal já esteja a acontecer em Portugal, nomeadamente entre franjas mais vulneráveis da população. Na verdade, a percentagem de partos não hospitalares, que teve um mínimo de 0,1% em 2010, tem estado acima dos 0,7% desde 2015. Acresce que, de acordo com dados da Direção-Geral da Saúde (DGS), nos anos de 2017 e 2018, a ratio de mortalidade materna em migrantes foi cerca de 4 vezes superior à da população portuguesa e a ratio de mortalidade materna fora do hospital foi cerca de 25 vezes superior à hospitalar. Em oposição à constatação referida, deve constituir orgulho nacional, Portugal ter passado de uma das piores posições da Europa para uma das melhores do mundo, em saúde materno-infantil. Na verdade, em 1970, em Portugal, 63% dos partos eram não hospitalares; muitas mulheres passavam dias em trabalho de parto, no domicílio, longe de tudo, muitas vezes abandonadas, exaustas, sem recurso a qualquer analgesia e aí faleciam, mães e filhos, ou ficavam com sequelas para toda a vida; a ratio de mortalidade materna era de 73,4/100.000 nascimentos vivos e a mortalidade perinatal de 38,9/1.000 nascimentos; nos hospitais raramente havia condições dignas de dormida, de higiene, de analgesia e de relação entre as grávidas e o pessoal de saúde, escasso e sem meios adequados; os pais não podiam acompanhar as grávidas. No ano 2000, os partos fora do hospital passaram para 0,3%, a ratio de mortalidade materna para 2,5/100.000 e a mortalidade perinatal para 6,2/1.000. Na última década, de 2010 a 2019, a mediana de partos fora do hospital, de ratio de mortalidade materna e de mortalidade perinatal foi, respetivamente, de 0,7%, 7,15/100.000 e 3,9/1.000. Atualmente, em Portugal, todas as grávidas têm acesso a todo o tipo de diagnósticos e terapêuticas, incluindo acesso universal a analgesia no parto, com possibilidade de presença de acompanhante durante o parto.
9- É também de temer que o Projeto de Lei acentue o afastamento dos profissionais de saúde do SNS, sabendo-se que a excessiva carga horária dedicada à urgência e o não reconhecimento do seu trabalho constituem razões principais de afastamento. É do conhecimento público que muitos hospitais têm atualmente muita dificuldade em constituir as equipas médicas para assegurar as urgências de Ginecologia/Obstetrícia, problema que pode ser agravado e no seu extremo levar ao encerramento de urgências nalguns hospitais do SNS.
10- Importa continuar a lutar por melhores condições de acolhimento e de tratamento personalizado das grávidas e das suas famílias nas instituições de saúde, dotando-as com melhores instalações e mais recursos humanos. Importa continuar a lutar para que os cidadãos confiem nos profissionais e nas instituições de saúde. O Colégio exigiu, exige e sempre exigirá o tratamento digno das grávidas e das suas famílias, bem como dos profissionais de saúde que delas cuidam.
11- Com todo o respeito pelas grávidas e famílias que sentiram ou sentem algum grau de insatisfação ou desrespeito com o parto que tiveram e com o mais profundo pesar pelas mortes ou sequelas materno-infantis, que ainda não é possível evitar, o Colégio está contra a proposta de Projeto de Lei apresentada: não se adequa à realidade Portuguesa, não ajuda a resolver insatisfações de grávidas e famílias com os cuidados de saúde, desvia a atenção de assuntos que urge resolver, como o dos recursos humanos e das instalações, é ofensivo para os profissionais e as instituições de saúde, promove o abandono dos profissionais de saúde do SNS e afasta as grávidas das instituições de saúde, deixando-as vulneráveis a grupos que as podem explorar, sem qualquer regulação governamental ou profissional.
Referências
– Bohren MA, et ai. The Mistreatment of Women during Childbirth in Health Facilities Globally: A Mixed Methods Systematic Review. PloS Med 2015;12(6):e1001847
– United Nations. A human rights-based approach to mistreatment and violence against women in reproductive health services with a focus on childbirth and obstetric violence 2019.
– Graham W, et ai. Diversity and divergence: the dynamic burden of poor maternal health. Lancet2016;388(10056): 2164- 2175.
– Pordata. Taxa de Mortalidade materna.
https://www.pordata.pt/DB/Portugal/Ambiente+de+Consulta/Tabela (acedido em 20 de julho de 2021 ).
– Pordata. Taxa de mortalidade perinatal.
https://www.pordata.pt/Portugal/Taxa+de+mortalidade+perinatal+e+neonatal-529 (acedido em 20 de julho de 2021 ).
– Pordata. Partos: total e em estabelecimentos de saúde https://www.pordata.pt/Portugal/Partos+total+e+em+estabelecimentos+de+sa%C3%BAde-152 (acedido em 20 de julho de 2021).
– Roser M and Ritchie A (2013) – “Maternal Mortality”. Published online at OurWorldInData.org. Retrieved from: https://ourworldindata.org/maternal-mortality [Online Resource]
– World Health Organization. (2006). Neonatal and perinatal mortality : country, regional and global estimates. World Health Organization. https://apps.who.int/iris/handle/10665/43444
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Não obstante a adesão ao transcrito parecer do Colégio da Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia a Ordem dos Médicos não quer deixar de dizer complementarmente que:
O enquadramento de uma realidade na política criminal implica, em nosso entender, a existência de um problema que tenha ou possa significar potencialmente uma expressão social relevante já que devemos ter cautela na criação de normas penais que são sempre a ultima ratio da intervenção do direito na vida social.
Como bem explica o Colégio não há um problema que requisite esta intervenção embora se possa entender que existem, como sempre, vertentes relativas aos direitos das grávidas que podem ser melhoradas em âmbito distinto, como seja a da informação e do consentimento esclarecido.
Ainda que se entenda que o bem jurídico em causa é dotado de dignidade penal a criminalização da conduta exige que haja uma efetiva e específica necessidade de tutela penal para que a intervenção da lei não se considere excessiva e, por isso, violadora do princípio da proporcionalidade.
Na opinião da Ordem dos Médicos, face à realidade portuguesa e aos dados disponíveis, não faz qualquer sentido procurar criminalizar condutas dos profissionais de saúde por via de uma alegada necessidade de proteção das mulheres na gravidez.
O quadro penal dos crimes contra a integridade física, contra a liberdade pessoal e contra a liberdade e autodeterminação sexual é bastante, rigoroso e abrangente.
Por último sempre se dirá, na mesma linha e com os mesmos fundamentos, que a proposta de alteração do artigo 15-A da Lei 15/2014, de 21 de Março com a redação da Lei 110/2019, de 09 de Setembro, não tem sustentação na realidade de prestação de cuidados de saúde obstétricos em Portugal sendo de refutar a definição legal de violência obstétrica e, consequentemente, os conceitos propostos de violência física e psicológica.
Em conclusão:
A pretensão que consta da proposta de lei em apreço promove a indução de uma litigiosidade absurda na relação dos profissionais de saúde obstétricos com as grávidas e com o casal;
A proposta tem conceitos indeterminados e suscetíveis de gerar insegurança na referida relação e sugere uma exaustão nos procedimentos que é desadequada à realidade obstétrica nacional.