Homenagem
Ao longo da sua vida activa, Daniel Serrão interveio de forma marcante no panorama científico e cultural do país. Investigador e docente de Anatomia Patológica, reconhecido nacional e internacionalmente como perito competente, inovador em conceitos e interpretações em patomorfologia, ontribuiu também de forma decisiva para a introdução em Portugal da Bioética, de que foi brilhante cultor e expositor. A sua esfera de influência foi porém bastante mais larga, atingindo o público em geral, numa generosa e empenhada actividade cívica de exposição e debate dos grandes problemas bioéticos da nossa época, mormente os gerados pelo avanço e utilização de meios tecnológicos novos na área da saúde. Só o traumatismo craneo-encefálico sofrido num vulgar atropelamento citadino, em Outubro de 2014, viria interromper bruscamente essa sua dedicada intervenção cívica.A sua carreira académica, com entrega em exclusividade à investigação e ao ensino, representa a adopção da norma que traçou, ou seja a do professor universitário como um investigador que ensina. Assim procedeu, no Porto e em Luanda, constituindo um sólido prestígio de especialista em patologia hepática, biopsia renal, oncologia; publicou duas centenas de trabalhos científicos e orientou colaboradores, que vieram a ser professores respeitados e investigadores de alta qualidade, quer na sua própria área (Sobrinho Simões, Vítor Faria, Saleiro e Silva, Fátima Carneiro, Leonor David, entre outros), quer em outras disciplinas (Hipólito Reis, Valdemar Cardoso, Tomé Ribeiro, por exemplo). Em Junho de 1975, todavia, vê ruir os seus projectos de vida, ao ser demitido de todas as suas funções (e privado do respectivo vencimento), por uma iníqua decisão do Ministério da Educação, alegando falsamente uma colaboração com a polícia política do anterior regime. O Conselho de Revolução viria a anular a infamante decisão, um ano depois, mas a necessidade tinha obrigado Daniel Serrão a montar um laboratório de Anatomia Patológica que viria a funcionar com assinalável êxito e reconhecida valia até 2002.
Universitário autêntico, Daniel Serrão satisfez a todas as exigências que ao professor se podem colocar: investigou a publicou (com a notável característica de procurar o nexo entre os dados experimentais e a realidade clínica, num exercício precoce do que hoje se chama investigação de translação), ensinou estudante dos três graus universitários, criou escola, colaborou com outros departamentos e disciplinas, tomou posição interventiva no debate acerca da natureza e funções da Universidade. Todos os seus contributos são marcados pela procura da verdade, a partir da sua enorme erudição científica e cultural: os seus escritos aí estão, de luminosa clareza, sólida fundamentação, corajosa argumentação propositiva.
Médico até à medula, não deixou de pagar o seu tributo à acção da Ordem, no Conselho Geral, na Assembleia Geral e no Conselho de Ética Médica, vendo reconhecido o seu valor, ao criar a Ordem o Prémio com o seu nome, atribuído ao melhor aluno das Faculdades do norte do País; e, por outro lado, dedicou, ao longo dos anos, especial atenção à política de saúde, tendo presidido ao Conselho de Reflexão sobre a Saúde, nomeado pela ministra Maria de Belém Roseira, e elaborado o respectivo Relatório, documento tão notável quão lamentavelmente esquecido, apesar da sua actual pertinência.
Saúde e doença, estar doente e morrer são dados e conceitos a que não foi indiferente, ele que tantos milhares de lâminas perscrutou em que células de bela aparência transmitiam sinais ominossos ou potencialmente letais – viu mesmo as suas próprias células cancerosas prostáticas, que uma cirurgia oportuna facilmente eliminou. As suas reflexões sobre estes temas brotam de uma compaixão autêntica, não sentimental, humaníssima, originada nas suas convicções de filosofia personalista e expressas em estilo elegante e forte, aliando a poesia à racionalidade.
A sua obra ultrapassa largamente a mera esfera profissional, sem nunca desmentir o seu porvir médico. Assim surgem na sua bibliografia originais e penetrantes ensaios sobre Pessoa, Agustina Bessa Luís, António Gedeão, Pina Martins … O mesmo manancial marca a sua última e tão fecunda quinzena de anos, dedicada de forma intensa à Bioética, de que foi entusiasta introdutor em Portugal e cultor competentíssimo, para além de docente, expositor e difusor. Certamente que a partir das suas reflexões anteriores sobre a dor, o envelhecimento, a arqueobiologia, a origem da fala, o nascimento da inteligência, o funcionamento do cérebro, registam-se centenas de intervenções, pela palavra e pela escrita, explicando o que é e para que serve esta área transdisciplinar, inovadora do pensamento e normativa do agir, determinante na procura das regras do bem viver e da defesa intransigente da liberdade e da dignidade humanas. Acumulam-se os sinais exteriores da sua total dedicação à novel área da Bioética: professor de Ética e Deontologia Médica, de cursos de pós-graduação, mestrado e doutoramento, co-autor de livros de texto, conferencista em cinco países, membro de comités de Bioética do Conselho da Europa e da Unesco, membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida – sem a sua presença e intervenção o panorama da Bioética no nosso país e na Europa seria bem mais pobre e magro.
Para melhor difundir a mensagem bioética, Serrão não hesitou em recorrer à comunicação social, dando entrevistas, escrevendo artigos de opinião em diários, prestando depoimentos (até ao telefone, acerca de notícias do dia) e participando em programas televisivos de grande audiência e popularidade. Em toda a parte, a sua voz de comunicador de eleição, dotado de estilo claro e elegante, racional e cientificamente correcto, serviu sempre para propagar uma mensagem de humanismo, respeito pela vida, liberdade e integridade da pessoa humana, desde a sua concepção até à morte natural.
Os seus méritos foram reconhecidos: não lhe faltaram Prémios (dois Prémios Pfizer, Prémio Nacional de Oncologia, Prémio Centenário do Rotary International, Prémio Nunes Correia Verdades de Faria, Prémio Pedro Hispano, Prémio Nacional de Saúde) nem distinções honoríficas (Grã Cruz da Ordem de Santiago da Espanha, Medalha de Mérito Militar, Medalha de Ouro da Cidade do Porto, Medalha de Ouro do Ministério da Saúde, Medalha de Prata da Cidade de Vila Real e, a título póstumo, Grã Cruz da Ordem do Infante D. Henrique) nem convites para integrar Academias, tais como a das Ciências de Lisboa, a Portuguesa de Medicina, a Nacional do Rio de Janeiro, a Europeia das Ciências e das Artes e, sobretudo, a Academia Pontifícia para a Vida.
Professor, ensaísta, cultor da Bioética, investigador, autor, Daniel Serrão foi, antes de mais e como fundamento de toda a sua tão marcante prova de vida, médico. Médico humanista, na tradição de grandes figuras que enobreceram no passado a sua Faculdade, tais como Ricardo Jorge, Hernâni Monteiro, Luís de Pina, Fernando Magano, para referir apenas alguns que da lei da morte se libertaram. Como Ricardo Jorge, podia ter afirmado “Médico e português retinto, hei de o ser até às portas da morte”. Assim foi.
Walter Osswald
Breve Nota Bibliográfica
Para saber mais acerca da vida e obra de Daniel Serrão, poderá recorrer-se às seguintes publicações:
Ana Sofia Carvalho, Manuel Valente Alves (coord.). Daniel Serrão – um retrato. Universidade Católica Portuguesa, Porto, 2008 (colectânea de 70 depoimentos de personalidades nacionais e estrangeiras
H. Manuel S. Pereira. Daniel Serrão – Aqui diante de mim. Esfera do caos, Lisboa 2011 (trata-se de uma longa entrevista, em que Daniel Serrão responde às numerosas e inteligentes perguntas do entrevistador, não se escusando a aflorar e relatar aspectos da intimidade do seu percurso)
Carlos Costa Gomes. O pensamento bioético de Daniel Serrão. Gráfica de Coimbra, Coimbra 2013 (Análise e interpretação do pensamento de Daniel Serrão, inclui ainda listas de mais de 1000 textos da sua autoria, na sua maioria não publicados, bem como de centenas de palestras e comunicações)
Walter Osswald. Daniel Serrão, um homem para todas as estações. Observador, 14.1.2017 htpp:/observador.pt/opiniao/daniel – serrao – um homem para todas as estações /acedido em 13 de Outubro de 2017).
Datas
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1 de Março de 1928 – Nascimento em Vila Real de Trás-os-Montes
1944 – Curso Geral dos Liceus completado com 18 valores (Aveiro)
1951 – Curso de Medicina, na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (média de 17 valores)
1958 – Casamento com Maria do Rosário de Castro Valladares Souto (do casamento resultaram 6 filhos, dos quais dois faleceram ainda em vida do Pai).
1959 – Doutoramento em Medicina (Universidade do Porto), com 19 valores
1961 – Professor Extraordinário (Anatomia Patológica), aprovado em concurso de provas públicas, por unanimidade
1967-69 – Serviço militar, como Capitão Médico Miliciano, em Angola e Moçambique; em 1968-69 acumula com o cargo de Professor Extraordinário dos Estudos Gerais de Angola
1970 – Director do Serviço de Anatomia Patológica do Hospital de S. João e regente do Curso de Anatomia Patológica da Faculdade de Medicina
1972 – Professor Catedrático, aprovado por unanimidade
1975-1976 – Demitido de todas as suas funções, no decurso do “saneamento” baseado em falsa alegação de colaboração com a polícia política do anterior regime; pena anulada pelo Conselho de Revolução, que reconheceu a falsidade da acusação.
1976 – Reintegração em todas as suas funções
1975-2002 – Direcção do seu Laboratório de Anatomia Patológica, tendo realizado um milhão e seiscentos mil exames citológicos e histológicos para serviços públicos e privados
1998-2014 – Intensa actividade como conferencista, escritor e professor na área da Bioética e da Ética Médica, em instituições da Universidade do Porto, da Universidade Católica Portuguesa (Porto e Braga) e da Universidade Portucalense
1998 – Jubilação
2017 – Morte por infecção respiratória, na sequência de grave atropelamento ocorrido em 2014.
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