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Contribuição para uma apreciação da nova «Lei de Saúde Mental»

Autor: José Manuel Jara – Médico Psiquiatra

            A proposta de le n.º 24/XV/1.ª em análise foi aprovada na generalidade na Assembleia da República, em 14 de outubro, aguardando a subsequente discussão na especialidade, na Comissão de Saúde. A nova lei substitui a Lei nº 36/98 (Lei de Saúde Mental).

  • Sobre a exposição de motivos

Na exposição de motivos da nova lei afirma-se que, “apesar dos progressos realizados, decorridos mais de 20 anos”, depois da aprovação da legislação subsequente à da Lei de Saúde Mental, visando a organização dos serviços de saúde mental (DL nº 35/99), definindo o modelo de organização da prestação (Despacho nº 11411/2006), instituindo a Comissão Nacional para a Reestruturação dos Serviços de Saúde Mental, responsável pelo Plano Nacional de Saúde Mental (2007-2016), e ainda com uma Resolução do Conselho de Ministros (nº 49/2008), “era clara a necessidade de repensar a organização da prestação de cuidados de saúde mental”.

Aliás, a profícua produção legislativa não teve paragem, com sucessivos decretos, acrescentados aos acima citados, mas cuja execução ficou muito aquém dos propósitos. Isto é, a abundância de letras de lei não teve a esperada execução prática, sendo mais notória a impotência na concretização do Plano de Saúde Mental, sucessivamente adiado. No entanto, a Lei de Saúde Mental, N.º 36/98, cuja parte mais destacada e regulamentada define as normas do Internamento Compulsivo dos portadores de anomalia psíquica, foi, de facto, posta em prática.

E quais os motivos para repensar, em Portugal, a “organização dos cuidados de saúde mental”? No texto da proposta de lei, a justificação é assim: “(…) por um lado, os enormes avanços registados nesta área, a nível clínico, e, por outro, os compromissos assumidos por Portugal, relativamente a esta matéria, no âmbito da OMS, do Conselho da Europa, da União Europeia e de outras instâncias internacionais”. Não nos parece que tenha havido nenhuma grande evolução na psiquiatria, e também não se notou nenhuma grande revolução na elaboração de políticas de saúde mental ou no enunciado de novos direitos para os doentes mentais.

A reiterada enunciação de direitos e deveres é muitas vezes uma compensação sublimada para as insuficiências crónicas nos serviços prestadores de cuidados, hospitalares, comunitários e sociais. A título de exemplo, muitíssimo pouco se fez para o apoio residencial consentâneo com as necessidades de cada pessoa desprotegida, com doença mental crónica. Mas proclamou-se aos quatro ventos a palavra de ordem “desinstitucionalização”, quase sem objeto. Não se viu nada até hoje que possa corresponder a um verdadeiro direito praticado a trabalho protegido, na área da saúde mental. Mesmo o que corresponde à prática de “terapia ocupacional”, é de uma notória insuficiência.

Enquanto na antiga Lei de Saúde Mental se enunciam, num Capítulo I, as normas para a próxima reorganização dos serviços de saúde mental, que viriam a ser objeto de decreto-lei 35/99, a nova Lei de Saúde Mental já foi antecedida pelo decreto-lei 113/2021, de 14 de dezembro, que “estabelece os princípios gerais e as regras de funcionamento dos serviços de saúde mental.” Ordem inversa.

No parágrafo seguinte transparece, o que se afigura uma razão de peso, o avançar, finalmente, do Plano de Saúde Mental, até agora retardado. Vai contar para a sua conclusão, até 2026, com o financiamento do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Assim seja.

No entanto, a exposição de motivos, que se detém em referências consensuais sobre os direitos humanos das pessoas com deficiências e com “problemas de saúde mental”, é omissa na avaliação concreta de como foi cumprida a lei 36/98, na parte do internamento compulsivo. Seria do maior interesse saber que avaliação foi feita pela Comissão de Avaliação, ao longo de duas décadas. Por exemplo, qual a percentagem de internamentos compulsivos, comparando com a hospitalização voluntária, nas diferentes regiões do país, qual a duração média da hospitalização nesse regime, que aplicação foi feita, em termos percentuais, da passagem a tratamento compulsivo ambulatório? Quais as carências de meios e recursos de profissionais para garantir as melhores práticas na assistência médica psiquiátrica e psicológica aos doentes? Qual a opinião dos “utentes”, os “portadores de anomalia psíquica”, e qual a opinião dos seus familiares sobre a aplicação da lei? O que consideram sobre a condução dos doentes, por mandado do Ministério Público ou do Delegado de Saúde, para o internamento de urgência? E sobre a condução do internando pela polícia, com acompanhamento, sempre que possível, dos serviços de urgência psiquiátrica? Possível, de facto?  E que uso prático correspondeu ao modelo mais judicial do Internamento, não urgente, da Secção III da lei 36/98? E sobre as condições de espaço, de vagas, em que decorre a hospitalização (internamento) nos «Serviços de Saúde Mental»? E qual a opinião colhida nos profissionais da saúde mental, médicos psiquiatras, enfermeiros de saúde mental e psiquiatria, psicólogos, técnicos de serviço social e outros terapeutas? Uma sinopse destes factos iria instruir e fundamentar as alterações a introduzir na nova lei, no que é a sua matéria mais importante, que agora se designa por “Tratamento Involuntário”, em vez do título anterior de “Internamento Compulsivo”.

A nova lei, designada «Lei de Saúde Mental», sendo fundamentalmente uma lei para o «Tratamento Involuntário» de doentes mentais, mal se concebe merecer a designação de «saúde mental». Pois que o tratamento involuntário é uma intervenção de exceção, para casos em que falhou a assistência médico-psiquiátrica normal, eticamente recomendável, condição de base para a relação terapêutica. Aliás, no tratamento involuntário, deve ser feito todo o esforço, durante a hospitalização e nas consultas, para que o doente, ao melhorar clinicamente, possa aceitar a necessidade e vantagem para a sua pessoa do tratamento, que visa libertá-lo do sofrimento mental e da alienação em que a doença o deixou. É um trabalho persistente, muito personalizado, dos técnicos de saúde mental. E o sucesso resulta, em muitos casos, das boas práticas e do respeito pela pessoa do doente. O grande psiquiatra francês Henri Ey dizia bem, que a doença mental é muitas vezes uma “patologia da liberdade”. A libertação da doença, como os meios terapêuticos que a psiquiatria dispõe, se bem apropriados, é uma recuperação da liberdade, perdida pelo grave transtorno da mente.

O tratamento não voluntário está em contradição com o que deve ser a prática saudável no exercício das profissões, que intervêm no tratamento e na ajuda na recuperação da grande maioria dos doentes, mentais ou psiquiátricos, como se quiser designar. A necessidade ocasional, de exceção, do tratamento involuntário, dá ao mesmo tempo a dimensão da necessidade inadiável do tratamento de doentes graves, cuja conduta anómala, resultante da patologia, leva a perigos para terceiros e para o próprio, tanto em aspetos pessoais, como materiais. A perceção da perturbação e da desadaptação foi designada nos primórdios da assistência aos doentes como alienação mental ou loucura, medindo a sua gravidade.  O paradoxo está no facto de a gravidade máxima da perturbação mental ser acompanhada pela negação da doença pelo próprio, por incapacidade de ajuizar, e pela recusa e oposição em ser tratado. E o não tratamento pode conduzir a um agravamento progressivo da doença, tornando irreversível o processo psicopatológico e a deterioração da personalidade. Para além do risco para terceiros, em linguagem jurídica, para os bens pessoais e patrimoniais.

Os eufemismos não extinguem o estigma. A psiquiatria, que noutros tempos era desvalorizada pela “antipsiquiatria”, agora é muitas vezes minimizada pelo evitamento do uso do termo. Um exemplo extrai-se na leitura sintomática da exposição de motivos da nova lei, onde se diz: “Como novas inovações do regime proposto, assinala-se a revisão e atualização dos direitos e deveres das pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental, em linha com os progressos das ciências médicas e da farmacologia.” (p.3). Nempsiquiatria”, nempsicofarmacologia” …

A saúde mental é um problema de todas as sociedades e de todas as pessoas, crianças, jovens, adultos e idosos. Inclui-se no âmbito amplo da saúde pública, como parte importante da saúde em geral, tanto do indivíduo, como da coletividade. Mas essa conceção genérica de saúde mental não se deve confundir com as questões da “saúde mental” das pessoas, que sofrem de doenças psiquiátricas, mais ou menos graves, agudas e crónicas, de diversas etiopatogenias, requerendo diversificadas medidas terapêuticas especializadas. Tal como noutras áreas, a prestação de cuidados de saúde mental a doentes, envolve serviços diferenciados, tanto hospitalares como comunitários, dotados de recursos humanos apropriados para o diagnóstico e a terapêutica médica psiquiátrica e as intervenções psicológicas e sociais. A pessoa do doente deve beneficiar de uma assistência integrada com os cuidados primários de saúde e o acesso a cuidados de saúde gerais.

  • O Tratamento Involuntário

No Capítulo I da lei define-se o “Objeto” (Artigo 1º) e “Definições” (Artigo 2º). No Artigo 1º, que define o conteúdo genérico da lei, pretende-se abranger a totalidade da problemática da saúde mental, como “política de saúde mental”, pressupondo uma distinção em relação à política de saúde em geral. A lei, citamos, “consagra os direitos e deveres das pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental e regula as restrições destes direitos e as garantias de proteção da liberdade e da autonomia das pessoas.”

Transparece numa leitura atenta do conteúdo deste artigo que o núcleo do Objeto da lei é, de facto, a regulação das restrições desses direitos. Pois que os direitos das pessoas com “necessidade de cuidados de saúde mental” não podem, nem devem ser diferentes dos das pessoas com outras doenças.

A prova desta interpretação é feita na análise do conteúdo da primeira alínea do Artigo 2º, que motivou alguma discussão no debate em zoom, promovido pelo Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, no dia 20 de outubro, com uma grande presença de médicos psiquiatras A controvérsia incidiu na comparação da designação aplicada na lei anterior, “anomalia psíquica grave”, com a designação inserida na lei atual, «Doença Mental», especificada como “condição caracterizada por perturbação significativa das esferas cognitiva, emocional ou comportamental, incluída num conjunto de entidades clínicas categorizadas segundo os critérios de diagnóstico da CID da OMS.”

É óbvio que o que se pretende nesta definição, para efeitos da lei, se restringe à doença mental, sem aspas, cuja gravidade pode levar à necessidade de aplicação das medidas previstas no tratamento involuntário. A lei não visa o grande leque de doenças e doentes que são tratados “voluntariamente”, como é regra na prática da assistência médica e na prestação de cuidados de saúde à grande maioria dos doentes com perturbações psiquiátricas. A especificação “perturbação significativa” deve ser entendida, para melhor compreensão, como “grave”, ou “muito grave”, em vários domínios, nomeadamente na conduta da pessoa. As questões semânticas têm alguma importância. O termo “anomalia psíquica grave” era inapropriado, pouco ou nada inserido na psiquiatria, de conotação mais judicial, podendo ser entendido no âmbito das “personalidades anormais”.

A questão que aqui se pretende apreciar incide sobre o agora designado “Tratamento involuntário”, matéria que está inserida na lei, do artigo 14º ao artigo 46º. É o tema fundamental da nova Lei de Saúde Mental.

Na discussão que decorreu, aquando da aprovação da Lei de Saúde Mental 36/98, houve quem considerasse, nomeadamente o Colégio de Psiquiatria de então, que o processo escolhido poderia determinar uma judicialização, excessiva dos procedimentos de “internamento compulsivo” dos “portadores de anomalia psíquica”. Com efeito, desde logo, a própria alteração da Constituição, em sede de privação da liberdade, pelo aditamento da alínea h) ao artigo 27º, antecedeu e condicionou a futura lei de internamento compulsivo. Sabe-se que o modelo escolhido resulta de uma tendência geral das legislações de muitos países, para reforço de garantias judiciais nos procedimentos de tratamento involuntário, em pessoas com doenças mentais graves. Mas convém não esquecer que a medida de “internamento em estabelecimento terapêutico adequado” (artigo 27º, alínea h) da CRP), que pode, sem ferir sensibilidades, merecer a designação de “hospitalização”, em vez de “internamento” (que pode ocorrer, para outros fins também), pois decorre em hospitais públicos, destina-se ao tratamento médico, não é uma “medida de segurança”, nem tem como razão fundamental a prevenção criminal. É sim, uma medida terapêutica instituída por necessidade imperiosa, em casos de doença mental grave, quando a recusa do tratamento voluntário, por ausência de juízo crítico da pessoa doente, pode ter repercussões graves para o próprio e terceiros, tanto para bens pessoais como patrimoniais. Sendo um dos bens a própria saúde da pessoa.

Nessas situações de exceção, a hospitalização involuntária é um bem. Seria um mal, se fosse desnecessária, sem diagnóstico médico psiquiátrico e, também, caso houvesse uma forma voluntária de assegurar o tratamento. Se se aprofundar a questão, torna-se visível que, de facto, a “privação da liberdade” para estes casos deve ser entendida como cingida à limitação, para o doente, da “liberdade de não se tratar”, isto é, à coação de ser obrigado a tratar-se medicamente. Por isso, é óbvio que este procedimento se insere no foro do direito civil e não criminal. De facto, na sua essência é um processo de interdição parcial da autonomia da pessoa do doente, de limitação da liberdade de não se tratar. Por isso, entende-se a designação, por exemplo, na lei americana, como “Civil Commitment”.

A que vêm estas considerações? A inovação mais destacada da nova Lei de Saúde Mental incide sobre a problemática acima abordada. Em vez do título “Do internamento compulsivo”, no Capítulo II da Lei 36/98, a nova Lei de Saúde Mental, já aprovada na generalidade, tem no seu Capítulo IV, o título “Tratamento involuntário”. E na Secção I, artigo 14.º, define-se assim, a «Noção e fim do tratamento involuntário»:

«1- Diz-se involuntário o tratamento em ambulatório ou em internamento que seja decretado ou confirmado por autoridade judicial.

 2- O tratamento involuntário é orientado para a recuperação integral da pessoa mediante intervenção terapêutica e reabilitação psicossocial

Um pequeno reparo na redação. Teria sido mais acertado dizer «finalidade» em vez de «fim» do tratamento involuntário. Na mudança de conceção neste artigo, está tacitamente reconhecido que a problemática da “privação da liberdade” não é, na nova formulação, o cerne da questão jurídica. A lei incide, com maior nitidez, sobre a compulsividade do tratamento e não do internamento. O internamento ocorre como necessidade de hospitalização, dada a gravidade inicial da perturbação, tal como acontece com outros doentes, que são hospitalizados voluntariamente. A ideia de “privação da liberdade” continua, no entanto, subjacente a todo o processo, e tal evidencia-se inequivocamente pelo grau de judicialização, que se configura num excesso de procedimentos burocrático-jurídicos, como salvaguarda contra hipotéticos malefícios em prejuízo do cidadão. Não más práticas, na prestação de cuidados, mas atos deliberadamente lesivos de direitos da pessoa, da sua autonomia.

A Secção II do mesmo capítulo, do Artigo 15º ao Artigo 27º, explicita os passos do «Processo Comum» do tratamento involuntário. O artigo 15º, que contém matéria inovadora, é citado na íntegra, pela sua importância, com a finalidade de fazer uma apreciação concreta do seu teor.

«1- Pressupostos do tratamento involuntário

«a) A existência de doença mental; b) A recusa do tratamento medicamente indicado necessário para prevenir e eliminar o perigo previsto na alínea seguinte; c) A existência de : i) Perigo para bens jurídicos pessoais ou patrimoniais de terceiros, em razão da doença mental e da recusa de tratamento; ou ii) Perigo para bens jurídicos pessoais ou patrimoniais do próprio, em razão da doença mental e da recusa de tratamento, quando a pessoa não possua o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento; d) O fim terapêutico do tratamento, conforme previsto no nº 2 do artigo anterior.

«2- O tratamento involuntário só pode ter lugar se for:

«a) A única forma de garantir o tratamento medicamente indicado; b) Adequado para prevenir e eliminar o perigo previsto na subalínea i) e ii) da alínea c) do número anterior; c) proporcionado à gravidade da doença mental, ao grau do perigo e à relevância do bem jurídico.

«3- O tratamento involuntário tem lugar em ambulatório, assegurado pelas equipas comunitárias de saúde mental, exceto se o internamento for a única forma de garantir o tratamento medicamente indicado, findando logo que possa ser retomado em ambulatório.

«4- (…)

Os destaques são nossos e visam salientar que é o termo perigo, que tem maior expressão semântica, denotando o risco para os bens jurídicos pessoais ou patrimoniais de terceiros e do próprio. A redação jurídica, certamente apropriada, não tem uma clara legibilidade para leigos, suscitando dúvidas quanto ao significado de “bens jurídicos”, que estão fora a linguagem comum, numa lei que deve ser acessível no seu conteúdo. O termo “perigo”, repetido, pode induzir erradamente, por uma leitura menos atenta, que a essência dos casos é a perigosidade, com uma possível analogia com condutas criminosas. Se assim fosse, o procedimento poderia ser entendido como uma medida de segurança pré-delitual.

Por outro lado, verifica-se um claro recuo, negativo para as finalidades preconizadas, em relação à lei anterior, pela supressão do conteúdo do nº 2 do artigo 12º, da Lei 36/98, que diz o seguinte:

«Pode ainda ser internado o portador de anomalia psíquica grave que não possua o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento, quando a ausência de tratamento deteriore de forma acentuada o seu estado.»

Na nova lei, menciona-se, nos “Pressupostos” do Internamento de Urgência (Artigo 28º), “o perigo para bens jurídicos pessoais ou patrimoniais do próprio ou de terceiros, nomeadamente por deterioração aguda do estado da pessoa com doença mental” (…). Mas esta referência à deterioração está condicionada pelo efeito comportamental, não resulta da própria necessidade imprescindível do tratamento da doença.

A alínea 2) do artigo 12.º da Lei 36/98, põe a tónica no tratamento médico psiquiátrico indispensável em casos de doença mental grave, cujo não tratamento atempado leva a grave deterioração, mesmo que não se verifique o que genericamente se inclui dentro da noção de “perigo”.

Um dos pressupostos errados de algumas tendências das práticas assistenciais na área da saúde mental consiste na minimização da assistência prestada no serviço hospitalar, onde a especialidade médica fundamental é a psiquiatria, como num serviço de neurologia é a neurologia, de medicina interna é a medicina interna, etc. Perdoe-se a tautologia. A especialidade médica de psiquiatria está e continua no centro da assistência a doentes mentais, e contém os fundamentos básicos para o diagnóstico das doenças e para o seu tratamento. E tal decorre a nível hospitalar, como a nível comunitário e ambulatório. A linguagem reflete preconceitos e ideologias. Tenha-se em atenção a redação do artigo 16º (Legitimidade), onde se designam os requerentes com legitimidade para promover o tratamento involuntário. Na redação da alínea f), atribui-se legitimidade para requerer o tratamento involuntário ao “responsável clínico da unidade de internamento do serviço local ou regional de saúde mental ou do estabelecimento de internamento, conforme os casos (…)”. E por que não, ao médico psiquiatra responsável do Serviço de Saúde Mental local ou regional ou do serviço de saúde mental hospitalar?

Sendo a saúde dos doentes mentais, com a sua diversidade clínica complexa, com evoluções por fases ou crónica, muito singularizada na sua expressão pessoal, exigindo abordagens terapêuticas diversificadas, a prestação de cuidados de saúde mental, lato sensu, inclui obrigatoriamente profissionais especializados, psicólogos, enfermeiros de saúde mental, técnicos de serviço social, e outros terapeutas especializados, que trabalham individualmente e em equipa. No nosso país, os serviços públicos de saúde mental, tanto hospitalares (internamento), como hospitais de dia, como a nível comunitário, em Centros de Saúde, em apoio domiciliário ou em residências protegidas, são manifestamente insuficientes, mais atrasados em todos os domínios do que outras áreas dos serviços de saúde. E a abundância de legislações sobre «saúde mental», produzidas pelos governos, ao longo de vários quinquénios, enfermam de um mal, que está por resolver. Não têm tido o financiamento necessário para os projetos concebidos verem a luz do dia.

A necessidade do tratamento ambulatório para doentes com patologia psicótica crónica ou muito recidivante, pouco aderentes a tratamento oral, gerou a investigação de fórmulas injetáveis de longa duração, para a prevenção de recaídas. Essa possibilidade já tem algumas décadas, desde os anos 80 do século passado. E registaram-se progressos significativos no aperfeiçoamento de fármacos de longa duração com menos efeitos adversos e maior eficácia. São os progressos da psicofarmacologia, que enriqueceram as possibilidades de terapêuticas psiquiátricas, mais afinadas e eficientes. Mas estas possibilidades não devem ser causa de um procedimento de controlo remoto, empobrecendo a relação terapêutica com médicos e outros profissionais da saúde mental. A remissão clínica e estabilização da doença abre as portas ao progresso da pessoa, à sua capacitação e integração social. As equipas comunitárias de saúde mental, quando existirem em todo o país, em número e capacidade, terão muito trabalho pela frente.

Estas considerações aplicam-se também aos doentes em tratamento involuntário ambulatório. Se o procedimento for tão só esse controlo remoto, com uma injeção periódica do antipsicótico, fica aquém do objetivo de reabilitar a pessoa, de contribuir para que se integre socialmente, que possa recuperar a consciência do benefício que o tratamento lhe traz, libertando-o, se possível, do procedimento “involuntário”. O controlo judicial, com o recurso à polícia, para reconduzir o faltoso ao cumprimento da terapêutica, pode ser altamente estigmatizante, sendo da conveniência máxima o acompanhamento das forças da ordem por elementos das equipas de saúde mental comunitárias ou hospitalares, conhecedoras da pessoa do doente. A pobreza de recursos em profissionais da saúde mental não se resolve com a polícia ou a GNR, cuja intervenção pode ser necessária, mas que conota o procedimento com uma forte carga estigmatizante e repressiva, para o “louco perigoso”. Mais a mais, na «comunidade», à vista dos vizinhos, dos outros, contrariando em ações todos os direitos humanos enunciados em bem-intencionados formulários legais.

De forma abreviada, o que a lei estatui, e nisso é semelhante à anterior, são duas modalidades de tratamento compulsivo, o Processo Comum (Secção II) e o Internamento de Urgência (Secção III). No Processo Comum definem-se vários passos até à decisão final, decretada pelo juiz: o Requerimento a quem é conferida legitimidade (Artigo 16.º), os Atos instrutórios, a “Avaliação clínico-psiquiátrica”, por dois médicos, os Atos Preparatórios da “Sessão Conjunta”, a Sessão Conjunta, a Decisão do juiz e o Cumprimento da decisão. É neste procedimento que sobressai a judicialização, com maior expressão e clareza. Deste processo pode resultar a aceitação do tratamento voluntário, ou, desde logo, uma medida de “Tratamento Ambulatório Involuntário” ou o Internamento involuntário (hospitalização num serviço de psiquiatria e saúde mental). De notar que o “juízo técnico-científico inerente à avaliação clínico-psiquiátrica está subtraído à livre apreciação pelo juiz” (Artigo 2º., alínea 6). É um procedimento com alguma demora, cauteloso, que se contrapõe ao “Internamento de Urgência”, da Secção III, em que a hospitalização de emergência antecede a “confirmação” pelo juiz.

Em que medida este «processo comum» é comum? Nas circunstâncias habituais do tratamento involuntário, o internamento de urgência é a prática corrente, dada a evidência, muito frequente, da emergente da necessidade do recurso a um serviço de urgência psiquiátrica. A confirmação judicial é posterior, com prazos definidos. O juiz intervém discretamente, não se desloca ao serviço hospitalar, onde está internado o doente.

A presença do magistrado judicial, ocorre na chamada «sessão conjunta», realizada no Tribunal. São audiências de diferentes intervenientes no processo (requerente, defensor oficioso, Ministério Público, médico psiquiatra, acompanhantes e outros, indicados na lei, artigos 16.º, 22.º e 26º) alguns por teleconferência, incluem o “requerido”, na fase de primeira avaliação em processo comum. No procedimento de urgência, após a confirmação do internamento pelo juiz, segundo os trâmites iguais aos da lei 36/98, é agendada uma “sessão conjunta” também. As sessões conjuntas de revisão realizam-se, obrigatoriamente, de 2 em 2 meses, e destinam-se a fundamentar as deliberações do juiz, ao longo do processo do tratamento involuntário.

As “sessões conjuntas”, realizadas em tribunal, têm uma composição plural, judicial, médica e do doente em tratamento involuntário e seus representantes, com a intenção de melhor avaliar e julgar, conferindo ao juiz o poder de decidir. As exigências de tempo a que obriga, com intervalos relativamente curtos de revisão, pode produzir incómodos, particularmente para os médicos. Para alguns doentes, afetados por doenças que perturbam severamente a capacidade de ajuizar e as emoções, a exposição a várias pessoas, em sessão conjunta, pode não ser benéfica para a sua saúde mental.

Há casos em que o processo comum pode estar indicado, em situações em que não há uma necessidade de intervenção urgente. Mas este procedimento é pouco praticado. A nova lei, no Artigo 20º, alínea 2), abre a possibilidade de as avaliações clínico-psiquiátricas serem feitas no domicílio do requerido. O exame medico-psiquiátrico, realizado por dois psiquiatras, requer algum distanciamento e formalidade, mais aceitável num consultório médico, e não se adequa á realização no domicílio do presumível doente, podendo a intromissão na sua intimidade ser fonte de maior suspeição e mal-estar.

A formatação judicial tem, na figura do “Defensor Oficioso”, a expressão menos defensável da intervenção jurídica, pois que está suportada na argumentação contraditória, com o pressuposto de que o procedimento de Tratamento Involuntário possa ser uma inculpação e “condenação arbitrária” da pessoa. Só com um grande esforço, para superar o senso comum e o bom senso médico-psicológico, se acata essa intervenção, insólita para muitos doentes, alguns com sintomas paranóides graves, outros melancólicos e propensos a ver em todo o processo a confirmação dos seus delírios de culpa. O defensor, que se presume não ter formação em psicopatologia, vê-se condenado a uma função, as mais das vezes, extravagante.

Outro aspeto que não tem sido muito comentado, mas que merece consideração. Na Secção IV (Disposições processuais comuns), o Artigo 34.º estabelece as Regras de Competências, onde no nº 1, alínea a), se verte o seguinte:

  • Sem prejuízo dos números seguintes, para efeitos do disposto no presente capítulo, é competente:
  1. O juízo local criminal com competência ma área da residência do requerido, ou o juízo de competência genérica, se a área referida não for abrangida por juízo local criminal.»

É matéria que deve ser questionada. Dado que não estamos em face de um procedimento que decorre do direito criminal, porque é que se atribui aa Tribunal Criminal a função? Por insuficiência de meios? Porque agiliza os procedimentos? Porque envolve as forças da ordem, para o cumprimento de mandados? A verdade é que alguns doentes, ou outras pessoas envolvidas, podem ver nesse procedimento uma punição, mesmo ao lerem nos ofícios o papel timbrado com a designação «Tribunal Criminal». Ou no local onde vão ter a «sessão conjunta», a par dos processos criminais. É uma situação estigmatizante, prejudicial sob o ponto de vista de saúde mental, e que contrasta com a moldura de direitos humanos que se defende e promove.

 

3-Considerações sobre direitos e deveres dos doentes e a política de saúde mental

Ao reler a lei 36/98, na parte que se refere a esta matéria, poderá verificar-se uma arrumação mais cuidada, na forma como é sistematizada a problemática dos direitos e deveres. Assim, no artigo 5º do Capítulo I, estão seriados os «Direitos e deveres do utente» em saúde mental, “sem prejuízo da lei de Bases da Saúde”, com três números, correspondendo nove alíneas ao n.º 1.  Ainda não se faz menção ao consentimento escrito para a Estimulação Magnética Transcraniana.

Na secção do Capítulo II (Do internamento Compulsivo), Secção II, inserem-se dois artigos, o artigo 10.º, «Dos deveres e direitos do internando», correspondentes a direitos processuais, e o artigo 11.º, «Direitos e deveres do Internado», onde se explicita que “O internado mantém os direitos reconhecidos nos hospitais gerais”.

A formulação é clara e bem ordenada. Já o mesmo não se poderá dizer da nova lei, que substitui a anterior.

Na nova Lei de Saúde Mental, Capítulo III, Secção I, repartem-se os direitos e deveres, em dois artigos, «Direitos e deveres em geral» (artigo 7.º) e «Direitos e deveres em especial» (artigo 8.º). Se se percorrer cada um dos artigos ficará percetível uma classificação menos precisa, que pode resultar em confusão, imprópria para uma lei desta importância.

No artigo 7º, nº. 1, inclui-se despropositadamente uma alínea j), cujo conteúdo é “Não ser sujeito a medidas privativas ou restritivas da liberdade de duração ilimitada ou indefinida”, que destoa de todo a série, cuja designação é “Direitos e deveres em geral”. Na alínea b), no mesmo artigo e número, estabelece-se como direito “Escolher livremente a entidade prestadora de cuidados de saúde, tendo em vista o tratamento de proximidade indispensável à continuidade do plano integrado de cuidados, na medida dos recursos existentes”. Fica por saber a que diversidade se reporta “livremente”, e quais os recursos. Ainda no mesmo artigo, n.º 1, alínea g), a redação é a seguinte: “Usufruir de condições de habitabilidade, higiene, alimentação, permanência a céu aberto, segurança, respeito e privacidade em unidades de internamento dos serviços locais ou regionais de saúde mental, estabelecimentos de internamento ou estruturas residenciais;” As unidades de internamento hospitalar dos serviços de saúde mental têm a mesma designação que outros estabelecimentos de internamento não definidos?

Os “Direitos e deveres em especial” (Artigo 8º.) são, aproximadamente, o que consta nos direitos do internando e do internado da anterior lei, com alguns aditamentos. No mesmo lote inserem-se procedimentos que requerem consentimento escrito e outras condicionantes, mas que deveriam estar na rubrica de direitos gerais.

A originalidade está na Secção II, em Casos especiais (artigo 10º), “Diretivas antecipadas de vontade e procurador de cuidados de saúde”, alínea 2:

«Podem constar do documento de diretivas antecipadas de vontade disposições que expressem a vontade clara e inequívoca do outorgante, em matéria de cuidados de saúde mental, nomeadamente no que diz respeito a: a) “Tratamento em internamento, b) medidas coercivas de contenção, c) a ECT e a EMT e d) a medicação psicotrópica

Perpassa, neste articulado, uma nuvem de antipsiquiatria, com um a amálgama típica para depreciar e estigmatizar os meios terapêuticos da psiquiatria. Note-se que “psicotrópica” está no lugar de “psicofarmacológica”.

No artigo 11º, “Medidas Coercivas”, estabelece que essas medidas, “incluindo isolamento, e meios de contenção físicos ou químicos”, “só podem ser utilizadas como último recurso e por um período limitado à sua estrita necessidade. Um catálogo de boas práticas, como recomendação aos serviços hospitalares de psiquiatria, para médicos e enfermeiros, apenas com o reparo de pôr na mesma balança a química e a física, isto é, a antiga camisa de força e a medicação tranquilizante, antipsicótica e sedativa. Que exige uma medida certa, mas que merece um respeito que não transparece na redação do artigo.

A possibilidade de, no tratamento involuntário, serem prescritas, segundo certas condições, a Eletroconvulsivoterapia e a Estimulação magnética transcraniana, é consentâneo com a sua finalidade terapêutica (Artigo 12.º).

Para a Gestão do património, Secção III, arruma-se o assunto com um artigo, o 13º. Em tempos, no ano de 1998, quando foi aprovada a Lei de Saúde Mental pretérita, prometeu-se, nas Disposições Finais, Artigo 46º, que “A gestão do património dos doentes mentais não declarados incapazes é regulada por decreto-lei.” Hoje, depois do enunciado de tantos direitos, a questão resolveu-se numa penada.

Neste percurso pelo tratamento involuntário, com alguns desvios para outros temas de boa saúde mental, deixou-se a política para o fim. Em inglês distingue-se “politics” e “policy”, termos que nós, pobremente, exprimimos com um único termo, “política”. O Capítulo III da Lei de Saúde Mental é “Política de Saude Mental”, e nele constam apenas 4 magros artigos (3º, 4º, 5º e 6º). Comecemos pelo último, o mais representativo, pois tem o título, “Serviços de Saúde Mental”. Vale a pena transcrever, para ver a «policy»: “Os princípios gerais e as regras da organização e funcionamento dos serviços de saúde mental são definidos em diploma próprio, considerando-se, para efeitos da presente lei, serviços locais ou regionais de saúde mental os serviços que sejam qualificados nesse diploma.”

Mais claro não poderia ser. E reporta-se ao decreto-Lei de dezembro de 2021, 113/ 2021? Ou vamos ter ainda mais uma lei para o rol?

Para dar por finda esta apreciação da Lei, tenha o leitor interessado pela matéria cinzenta, como suporte da mente, a devida consideração pelo artigo 4º, “Fundamentos da Política de Saúde Mental”, em que se insere uma alínea b), de grande avanço para a saúde da mente:

«A prestação de cuidados de saúde mental, no ambiente menos restritivo possível, devendo o internamento hospitalar ter lugar como medida de último recurso

Por falta de vagas? Voluntário ou involuntário?

 

28 de outubro de 2022

José Manuel Jara, médico psiquiatra