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O Serviço Nacional de Saúde e o Estado da Saúde Perinatal

Autor: Maria Teresa Neto, Professora Catedrática Jubilada. Universidade NOVA de Lisboa. Faculdade de Ciências Médicas/NOVA Medical School.

 

Guardo como recordação a publicação da Secretaria de Estado da Saúde intitulada “Subsídios para o lançamento das bases do Serviço Nacional de Saúde”, publicado em Novembro de 1974, que serviu de base à discussão da proposta para um Serviço Nacional de Saúde.

Na altura, havia os Serviços Médico-Sociais da Previdência, os sub-sistemas, os hospitais e os médicos no seu consultório (1). Por isso ter um Serviço Nacional de Saúde parecia uma miragem. Foi precisamente nesse ano e no mesmo mês que, tendo terminado o curso de medicina na Faculdade de Medicina de Lisboa, comecei a trabalhar nos Hospitais Civis de Lisboa. Não sabia, na altura, que iria assistir à implantação da “miragem”, nem suspeitava os efeitos que viriam a ter as reformas na saúde, na sociedade e nas pessoas.

Olhando à distância de 45 anos tudo parece muito longe, e incompreensível o modo de vida que tínhamos. Esgoto e distribuição de água potável no domicílio eram um luxo de, respectivamente, 17% e 25% da população e só 20% tinha casa com cozinha, retrete e casa de banho.(1) Em 1970 a taxa de mortalidade neonatal era 25,4/1000 NV; em 1973 a taxa de partos hospitalares era 51,7%, a de mortalidade materna era 59/100.000, a de mortalidade infantil 44,8/1000 NV (1). Morria-se de difteria, poliomielite e tosse convulsa. Estes eram os números conhecidos e que podiam estar longe da realidade. Se hoje nos queixamos da falta de rigor nos registos que são electrónicos e estão à mão de um “click”, podemos imaginar como seria na época.

Quando, na sequência da reforma dos cuidados de saúde da mulher e da criança levada a cabo pela primeira Comissão Nacional de Saúde Materna e Infantil, os índices começaram a melhorar, fizemos disso uma bandeira. Na realidade, a mortalidade materna chegou aos 5,2/100.000 nascimentos em 2011 e, em 2017, a taxa de partos hospitalares subiu aos 99,3%; por outro lado, em 2017, a mortalidade perinatal chegou aos 3,3/1000 Nados-Vivos (NV) (4,2/1000NV em 2018), a neonatal a 1,8/1000NV (2,2/1000NV em 2018) e a infantil a 2,7/1000NV (3,3/1000NV em 2018)(2). Ficámos assim situados nos melhores lugares do mundo, emparceirados com os países ricos e civilizados e o Serviço Nacional de Saúde português passou a ser exemplo para muitos Governos (3). E, por ter índices tão bons, descansou. O desinvestimento profundo e de longa duração levou a uma degradação do SNS de difícil recuperação se é que alguma vez conseguiremos voltar ao nível onde já estivemos.

Por outro lado, imaginamo-nos “desenvolvidos” mas continuamos pobres, dos mais pobres da Europa. Continuamos a ter o mais baixo produto interno bruto (PIB) per capita; os salários mais baixos – cerca de metade da Dinamarca;  de 1995 para 2018 houve uma divergência entre o aumento dos salários dos empregados per capita na Europa e em Portugal; a despesa do Estado com a saúde (execução orçamental em função do PIB em % do PIB) igualou, em 2018, o valor de 2001 (4,4%). (2)(4) Somos também, de entre os países ditos desenvolvidos, o que mais gasta do seu bolso – cerca de 28% do total das despesas com a saúde, contra a média de 15% da EU. (5)

O desenvolvimento e a emancipação da mulher, o investimento na carreira, mas, sobretudo, as dificuldades financeiras, as necessidades de emprego seguro, ordenado adequado e casa própria – levaram a que, progressivamente, a mulher decidisse ter filhos mais tarde na vida – em média aos 29,8 anos em 2018 (2). Em 2017, 32,1% das mulheres teve o primeiro filho com 35 anos ou mais e esta tendência aumentou 10,3% entre 2010 e 2017. Como a fertilidade vai diminuindo com a idade, muitas vezes é necessário recorrer à procriação medicamente assistida (PMA) para engravidar. A idade materna mais elevada associa-se a maior risco de complicações maternas, fetais e neonatais, com implicações na saúde das futuras gerações.

Em 2018, comparando mães com idade igual ou superior a 40 anos com mães com idade entre os 25 e os 29 anos, verificou-se maior taxa de prematuridade (10,6% vs. 7,4%), de baixo peso ao nascer (11,7% vs 8,7%) e de gemelaridade (4,3% vs 2,5%) (2). Há outras complicações, nomeadamente paralisia cerebral, cuja taxa de incidência é máxima nos filhos de mães com idade superior a 39 anos (1,70 /mil NV). (6)  A mortalidade materna também é maior nas grávidas com 35 ou mais anos e o risco de morte é considerado especialmente elevado para as mães com idade entre os 45 e os 49 anos. (7, 8) Como dizia Henrique Raposo “Ter filhos aos 40 é um fracasso colectivo”.

Os resultados dos últimos 15 anos em Portugal, comparando 2001 com 2017, justificam estes valores. Houve aumento da idade materna, diminuição do número de nados-vivos, aumento das taxas de prematuridade (5,6% versus 8,1%), de baixo peso (7,2% versus 8,9%), de gemelaridade (2,4% versus 3,4%) e da mortalidade materna (6,2 versus 10,4/100000 NV). Neste último indicador, porém, os dados devem ser analisados com reserva porque foi introduzido em 2014 um novo sistema de notificação que melhorou a colheita de dados, merecendo este assunto análise detalhada (2, 3, 9).

Se a pobreza relativa em que vivemos e a gravidez em idades avançadas da mulher, têm tão grande repercussão nos indicadores de saúde, não menos importantes são factores relacionados com as condições de trabalho dos profissionais de saúde. Lembro-me das equipas com especialistas suficientes e internos em diferentes fases de formação. Agora há escassez de obstetras, de pediatras, de anestesiologistas. Diminui-se a lotação de serviços de ponta, encerram-se salas de blocos operatórios e, por isso, protelam-se cirurgias, por falta de enfermeiros. Como o doente pode reclamar se não for chamado para cirurgia num determinado período de tempo, será dirigido para hospitais longe da área de residência, a centenas de quilómetros de distância, ignorando o bem-estar global do doente.

Entre 2016 e 2018, houve 5636 pedidos de documentação à Ordem dos Enfermeiros para exercer no estrangeiro e entre 2014 e 2019 saíram do país 2162 médicos. No passado recente não havia médico que não se sentisse orgulhoso de trabalhar no SNS.

O trabalho era árduo mas entusiasmante, as equipas eram estruturadas, as chefias de reconhecida capacidade mobilizadora e de renome internacional. Progredia-se na carreira, não havia ponto electrónico e ninguém se atrevia a sair antes do chefe por volta das 17h. Os incentivos à progressão na carreira, o orgulho de pertencer a uma equipa, a competição saudável, o reconhecimento pelo trabalho desenvolvido, pertencem ao passado. As estruturas obsoletas em muitas instituições, o material velho, desadequado e avariado, a falta de condições de trabalho, a incapacidade de responder às necessidades do doente, a obrigatoriedade de aquisição dos dispositivos mais baratos do mercado aumentando o risco de eventos adversos, estão em amplo contraste com as instalações e os equipamentos dos hospitais privados. Por isso o médico e o enfermeiro optam cada vez mais por trabalhar no sector privado ou no estrangeiro, onde as suas enormes qualidades profissionais são amplamente reconhecidas.

Na mesma medida estão os salários do pessoal de saúde que podem ser 3 a 4 vezes superiores nos serviços privados ou noutros países da Europa. O regime de dedicação exclusiva do passado, um atractivo grande na altura, não tem comparação nos tempos actuais. Não irá resolver o problema da falta de médicos e, se for implementada, ou as condições nomeadamente os salários, igualam o privado, ou corre-se o risco de todos os médicos saírem do SNS. Há um enorme trabalho de recuperação a desenvolver na saúde perinatal em Portugal. Mas com uma condição – que os deputados não se imiscuam em aspetos técnicos da medicina, como foi o caso da imposição de novas vacinas no Plano Nacional de Vacinação, à margem dos pareceres técnicos. A qualidade em saúde das futuras gerações depende do investimento imediato em todo o processo que envolve a saúde materna e a saúde infantil, integrado num sistema publico universal e gratuito.

 

Referências 

  1. Subsídio para o lançamento das bases do Serviço Nacional de Saúde. Secretaria de Estado da Saúde. Ministério dos Assuntos Sociais. Lisboa, Novembro de 1974
  2. Estatísticas Demográficas 2018
  3. Neto MT. Perinatal care in Portugal: Effects of 15 years of a regionalized system. Acta Pædiatrica, 2006; 95: 1349-1352
  4. Acedido em Outubro de 2019
  5. The Lancet. National health care in Portugal: a new opportunity. Editorial. 2019; 394:1298. DOI: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(19)32278-0
  6. Virella D, Folha T, Andrada MG, Cadete A, Gouveia R, Alvarelhão J, Calado E. Paralisia cerebral em Portugal no Século XXI. Indicadores Regionais. Crianças nascidas entre 2001 e 2010. Regsitos de 2006 a 2015. Federação das Associações Portuguesas de Paralisia Cerebral 2019
  7. Euro-Peristat Project. European Perinatal Health Report. Core indicators of the health and care of pregnant women and babies in Europe in 2015. November 2018. Available www.europeristat.com
  8. Nove A, Matthews Z, Neal S, Camacho AV. Maternal mortality in adolescents compared with women of other ages: evidence from 144 countries. Lancet Global Health 2014; 2: e155-164
  9. Gomes MC, Ventura MT, Nunes RS. How many maternal deaths are there in Portugal? J Maternal-Fetal and Neonatal Med 2012; 25: 1975-9