O acesso a cuidados de saúde de qualidade deve (ou deveria) ser para todos. Assim o consagra a Declaração Universal dos Direitos Humanos que, desde 1948, reconhece a Saúde como um direito inalienável de todas as pessoas. Algo ligeiramente diferente se lê no portal do Serviço Nacional de Saúde (SNS): “O XXI Governo Constitucional, no seu programa para a saúde, estabelece como prioridade a redução das desigualdades entre cidadãos no acesso à prestação de cuidados, assim como o reforço do poder do cidadão no Serviço Nacional de Saúde (SNS)”. Note-se a admissão de que as desigualdades no acesso a cuidados de saúde existem, de facto.
A saúde é um bem e um direito primordial e devia ser acessível a todos, em condições de equidade. O código genético do SNS reforça de forma clara este objectivo. Devia, mas tal não está a acontecer e são já sucessivos os governos que têm feito letra morta deste direito universal, demitindo-se do seu maior dever: proteger os cidadãos e providenciar-lhes acesso igualitário a cuidados de saúde de qualidade. É uma questão de dignidade e de solidariedade.
A esperança média de vida dos portugueses aumentou e ultrapassa hoje os 80 anos. Ainda bem, dir-se-ia, não fora um outro indicador demográfico logo vir desmoronar esta aparente conquista: Portugal está entre os países da União Europeia onde a qualidade de vida saudável acima dos 65 anos é pior. Por outras palavras: vive-se mais… mas não se vive melhor. A longevidade associada a uma elevada prevalência de doenças crónicas aumenta os custos com a saúde, com efeitos diretos nas necessidades dos cidadãos e no contexto da prestação de cuidados de saúde.
Mudou o paradigma, mudam os governos, mas a saúde não se atualizou à medida da realidade. Pior: tem vindo a degradar-se devido a um subfinanciamento crónico, numa fragilização daquela que deveria ser uma das maiores ‘pérolas’ da nossa democracia – o SNS –, num escarnecimento das necessidades da população.
Estima a Organização Mundial de Saúde (OMS) que metade da população mundial não tem acesso a serviços essenciais de saúde. E que quase 100 milhões de pessoas sobrevivem com menos de dois dólares por dia, tendo que pagar os serviços de saúde do seu próprio bolso. Ainda segundo a OMS, mais de 800 milhões (quase 12% da população mundial) gastam pelo menos 10% do orçamento familiar em despesas de saúde.
Em Portugal, segundo um estudo desenvolvido pela NOVA-IMS, foram contabilizadas em 2017 quase 800 mil faltas a consultas por causa dos valores com transportes e 750 mil faltas a consultas devido aos custos com as taxas moderadoras. A mesma investigação estima que 10,8% dos portugueses optaram por não fazer a terapêutica prescrita pelo médico devido a insuficiência económica, tal como já tinha sido relatado antes pela OCDE.
Hoje, quem pode, vai optando por recorrer ao sector privado. De facto, um quarto dos portugueses tem hoje seguro de saúde, o que também pode ajudar a explicar o impulso que o sector beneficiou nos últimos anos. A hospitalização privada tem hoje uma presença muito significativa no sistema de saúde e assegura mais de 6 milhões de consultas externas por ano, 1.1 milhões de episódios de urgência e cerca de 250 mil médias e grandes cirurgias. Os portugueses ‘desviam-se’ para o privado em busca das respostas que não encontram – ou encontram em condições deficitárias – no serviço público.
A realidade espelha assim as gritantes desigualdades sociais que se acentuam quando se fala em Saúde. A pergunta faz sentido: será mesmo que viver mais e saudável é um luxo só acessível aos ricos? Responda o Governo: se a Saúde, em Portugal, é mesmo para todos!?
Miguel Guimarães
Bastonário da Ordem dos Médicos
Viver mais e saudável será só para ricos? (Art. Opinião Bastonário da OM)