Autora: Ana Sofia Vitorino, Médica Interna de MGF no 4º ano (USF Mare, ACeS Cascais)
Resumo: Este artigo pretende transmitir a experiência de uma interna de Medicina Geral e Familiar na participação numa Missão Humanitária em São Tomé e Príncipe, que decorreu em outubro de 2017. Através da descrição das atividades desenvolvidas e das dificuldades sentidas, esta interna pretende fazer uma reflexão crítica sobre a sua experiência e as vantagens da participação nestas missões.
Introdução
Príncipe faz parte do arquipélago de São Tomé e Príncipe (STP) e é uma das ilhas vulcânicas oceânicas mais antigas do Golfo da Guiné. Segundo o relatório da UNESCO de 2012, estima-se uma população de 6737 habitantes.1
Os serviços de saúde da ilha de Príncipe dispõem de um hospital, localizado na cidade de Santo António, e de alguns postos comunitários nas principais Roças da ilha, que habitualmente estão fechados e sem médicos. Os recursos humanos e materiais são escassos, sendo agravado pela dificuldade de mobilidade e transporte, apesar de ser uma ilha pequena. Muitos destes problemas são minimizados pela atividade das Organizações não governamentais (ONG) em STP e a cooperação de Portugal com a República de STP. Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2003 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, STP é considerado um país de “Desenvolvimento Humano Médio”.2
Contextualização
A ONG Ascendere trabalha na ilha de Príncipe desde 2011, com principal objetivo de atuar a nível da saúde preventiva. Com missões de 8 dias a cada 3-4 meses a Ascendere realiza:
- rastreio de cancro do colo do útero às mulheres da ilha de Príncipe, com posterior envio das amostras para análise em Portugal. Em caso de identificação de alterações na citologia esfoliativa, é feita a convocatória dessas doentes, para a realização de colposcopia e conização no hospital da ilha na missão seguinte;
- ecografias obstétricas às grávidas da ilha;
- consultas de pediatria geral;
- consulta de saúde adulto, onde é feito o acompanhamento de doentes com hipertensão e Diabetes (e enviado medicamentos não disponíveis na ilha).
O Hospital
O Hospital Doutor Manuel Dias da Graça, fundado em 1982 e situado próximo do centro da Cidade de Santo António, apresenta um piso único com vista para a Baía de Santo António. É constituído por: 3 enfermarias de internamento (ala de homens, mulheres e pediátrica), 1 sala de partos e puerpério, 3 gabinetes de consulta, 1 gabinete para procedimentos médicos com marquesa ginecológica, 1 sala de cuidados de urgência, 1 sala de enfermagem e a secretaria.
As consultas são registadas em cadernos do hospital onde se preenche, numa tabela: os sintomas, sinais, diagnóstico e medicação.
A maioria das consultas eram pedidas pelos doentes (e não programadas) e por doença aguda. Não existem registos clínicos por nome do doente e o acompanhamento de doenças crónicas é praticamente inexistente.
Os gabinetes estavam equipados com uma mesa, 2 cadeiras e uma marquesa de observação. Não existia material médico de apoio, tendo cada médico da Missão trazido o seu próprio material: estetoscópio, otoscópio, espéculos para ouvidos, aparelho de medição da TA, glucómetro, tiras e lancetas, máscaras e luvas. Os únicos exames disponíveis eram o hemograma e sumária de urina tipo II. O aparelho de radiografia encontra-se avariado há muito tempo e sem perspetiva de arranjo. Para se medicar um doente tinha-se de consultar a lista de medicamentos disponíveis na ilha e confirmar na farmácia que o fármaco não estava esgotado. A maioria dos medicamentos para crianças era prescrito em comprimidos, por falta de xaropes, dividindo-se o comprimido em 2, 3 ou 4 partes. Reutilizava-se a parte superior das garrafas de plástico para mimetizar a função das câmaras expansoras.
Sempre que se identificava patologias graves, com necessidade de cirurgia e/ou internamento com terapêutica não existente na ilha, os doentes eram enviados para a ilha de São Tomé ou, em determinadas situações, para Portugal.
As Roças
Durante a missão e com o objetivo de nos aproximarmos da população e interagirmos com as pessoas no seu local de residência, foi feita Medicina Comunitária em alguns postos comunitários, localizados nas principais roças da ilha (roça Belo Monte, roça Sundy, roça Nova Estrela…).
Estes postos comunitários eram de muito pequenas dimensões, habitualmente com uma pequena galeria que fazia a comunicação entre os 2 gabinetes de observação médica. Um dos gabinetes estava sempre equipado com um armário com alguns medicamentos. Não havia casas de banho nem eletricidade em alguns postos. A marquesa ginecológica era transportada pela equipa da Ascendere, sempre que se fazia serviço à periferia.
Descrição das atividades e dificuldades sentidas durante a missão
No primeiro dia de missão várias pessoas aguardavam às portas do hospital, esperançosas por uma observação pelos médicos da Ascendere. Abundavam as mulheres e crianças que alegremente nos acenavam, sentados nas escadas ou simplesmente no chão frio de pedra da parte exterior do Hospital.
A forma mais eficaz de divulgação da missão na ilha foi através da rádio local, mas nem todos os locais tinham cobertura de rede. As restantes pessoas foram progressivamente aparecendo ao longo dos dias da missão, através do passa-a-palavra.
No início da missão surgiram logo alguns problemas logísticos. Não estava presente nenhum médico no hospital para nos receber, a sala de procedimentos (local onde eram guardados os medicamentos vindos de Portugal e o material médico) tinha o chão alagado e em vários momentos do dia a eletricidade falhava, mesmo dentro do hospital, o que impossibilitava o uso do ecógrafo. À medida que os dias passavam, a adaptação às condições existentes foi aumentando, permitindo observar todos os doentes que os médicos da Ascendere se tinham proposto a ver.
De um modo geral foram observadas: 130 grávidas, 232 crianças, 144 mulheres e mais de 80 adultos. Foram feitas 79 citologias esfoliativas do colo do útero e convocadas cerca de 20 mulheres para, na missão de janeiro de 2018, realizarem colposcopia. Foram referenciadas cerca de 40 crianças para o Hospital de São Tomé, principalmente para correção de hérnias umbilicais. Também foram referenciadas 3 crianças para Portugal: menina de 5 meses com displasia congénita da anca; menino de 9 anos para estudo de cardiopatia e menino de 5 anos com epilepsia.
Análise reflexiva sobre a participação nesta Missão Humanitária
A participação na Missão Humanitária da ONG Ascendere foi, sem dúvida, uma mais valia para o crescimento pessoal e profissional desta interna. Durante estes dias acordava-se cedo e apenas se interrompia a atividade médica para almoçar. Aproveitava-se ao máximo os momentos de sol para observarmos o maior número de pessoas, não fosse a luz falhar novamente.
Diariamente era transportado o material médico para postos comunitários, as caixas de medicamentos e a marquesa ginecológica. Percorria-se os caminhos de terra, para chegar a cada local, onde nos aguardavam ansiosamente várias mulheres e crianças. A maioria tinham sido mães pouco depois da menarca. Entre os 20-25 anos já tinham cerca de 2-3 filhos. Os homens em idade adulta apareciam raramente, pois era encarado como “uma fraqueza”. Apesar das poucas condições habitacionais, sociais e de saúde, conseguia-se sentir no olhar a alegria e a vivacidade desta população.
A procura pelos nossos conselhos médicos foi imensa e a confiança depositada em nós também.
A comunicação também era diferente. Apesar de se falar a língua Portuguesa, houve necessidade de adequar a linguagem à capacidade de entendimento desta população. Também se constatou a existência de vários mitos relacionados com a contraceção, tendo sido um desafio a sua desmistificação, através da educação para a saúde. Esta foi, sem dúvida, uma oportunidade única de melhorar as capacidades e técnicas comunicacionais devido às dificuldades que surgiram.
De um modo geral considero que a participação neste tipo de atividades foi de extrema importância para o desenvolvimento pessoal e profissional enquanto interna de MGF. O contacto com novas culturas, a necessidade de adaptação ao meio e às condições de trabalho, a melhoria das técnicas de comunicação (adaptados à população em questão) e o trabalho com equipas de médicos diferentes, contribuiu para o enriquecimento da experiência médica da autora. Além disso, este tipo de missões proporciona não só uma nova visão médica, mas também social e cultural, aumentando o conhecimento e a tolerância face aos múltiplos contextos sociais, étnicos e culturais com que o médico de família tem de contactar durante a sua prática clínica. Por último, gostaria de confidenciar que este tipo de missões são mais do que uma simples missão. É dar um pouco de nós a estas pessoas e acreditar que conseguimos sempre fazer mais e melhor ao ajudar.
Referências bibliográficas
- http://www.unesco.org/new/en/natural-sciences/environment/ecological-sciences/biosphere-reserves/africa/sao-tome-and-principe/the-island-of-principe/
- https://www.dgs.pt/assuntos-internacionais/areas-de-intervencao/coop-para-o-desenvolvimento/sao-tome-e-principe.aspx