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Uma pandemia (barreira ou oportunidade?)

Autor: Alberto Rodrigues, Médico Interno de MGF na USF das Conchas (ACeS Lisboa Norte)

 

Em dezembro de 2019 surgiram na cidade de Wuhan, na China, os primeiros casos de uma doença respiratória aguda causada por um novo coronavírus que viria a ser denominado SARS-CoV-2. A doença provocada pelo SARS-CoV-2 foi então designada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) por Covid-19. No dia 11 de março de 2020, com cerca de 118 mil casos confirmados em 114 países e 4.291 mortes a OMS declarou a passagem de epidemia de Covid-19 a pandemia.

O primeiro caso confirmado em Portugal foi no dia 2 de março. No dia 26 de março a Direção Geral de Saúde (DGS) anunciou a entrada na fase de mitigação, com consequente necessidade de adoção de novas medidas a nível dos cuidados de saúde, incluindo a reorganização dos Cuidados de Saúde Primários (CSP). Deparámo-nos com uma realidade, nova para muitos, inclusive para mim. Assistiu-se à suspensão de quase toda a atividade assistencial presencial nas unidades de saúde.

Em documento elaborado pelo Colégio da especialidade de MGF, em março de 2020, salientou-se o importante papel da especialidade frente à pandemia. De uma forma geral e resumidamente, foi sugerido uma nova forma de trabalho em que prioriza a consulta não presencial, quando possível. O contato presencial passou a ser restrito, em situações consideradas indispensáveis, como consultas do recém nascido, cumprimento do Programa Nacional de Vacinação (PNV), algumas situações relacionadas a saúde da mulher, entre outras. Assim, grande parte do trabalho passou a ser feito com recurso a meios de telecomunicação (e-mail ou chamada telefónica). Para reduzir o risco de contágio entre os profissionais de saúde, foi sugerido uma dinâmica de trabalho com equipas fixas, com redução do número de profissionais em simultâneo nas Unidades. Alguns profissionais mantiveram sua atividade laboral em regime de teletrabalho, sem prejuízo da resposta ao utente, com acesso à Rede Privada Virtual (VPN).3 Era urgente dar resposta aos doentes com suspeita de Covid-19 através da criação de Áreas Dedicadas a Covid-19 na comunidade (ADC-C), garantindo assim a segurança de todos.

Neste contexto, como interno do 4º ano de MGF deparei-me com 2 grandes desafios: se por um lado via a atividade curricular do último ano de internato interrompida por tempo indeterminado, com expectativas frustradas em relação ao inicialmente proposto para atingir os objetivos, por outro sentia necessidade de ter uma participação ativa, de ajudar a encontrar soluções e poder atuar no terreno. O tempo era de exceção. De circunstâncias nunca antes vividas. De medo. De ansiedade. Mas também de oportunidade.

Diante esta nova realidade decidi encarar o desafio na linha da frente, desde logo integrando, de forma voluntária, a linha de apoio ao médico (LAM) um dos primeiros mecanismos a ser criado para fazer face aos primeiros casos de Covid-19 no país.

Depois, aquando da iminente entrada em fase de mitigação, integrei a equipa responsável pela organização da ADC-C do meu ACeS. Desde escolher o espaço, o circuito do utente e dos profissionais com separação entre áreas limpas e áreas contaminadas, ajudar a elaborar o esquema de rotação na escala de profissionais até assegurar questões logísticas de sinalética e material, os desafios foram imensos. Todos os dias surgiram novas orientações, novas dúvidas, respostas diferentes. Lidar com a incerteza tornou-se a única certeza diária.

Enquanto equipa responsável, percorremos um longo caminho para que o funcionamento da ADC-C fosse de encontro com as recomendações dos órgãos responsáveis e com as necessidades da comunidade. Foi preciso improvisar. Usar as instalações e os materiais disponíveis que, podendo não ser os ideais, eram os reais. Foi preciso recorrer à força de vontade dos vários profissionais (médicos, enfermeiros e secretários clínicos), incansáveis na procura de soluções. Pedir ajuda, aprender com o que já estava a ser feito noutros locais. Foi fundamental trocar ideias com colegas do meio hospitalar, trabalhar em articulação com a Saúde Pública, Conselho Clínico e de Saúde, Diretora Executiva e com as várias equipas da Unidade de Recursos Partilhados do ACeS. No final, foi com grande orgulho que percebemos que, na globalidade, o nosso trabalho correspondeu às orientações para as “mini-equipas” exclusivamente dedicadas a ADC-C, que viriam a ser publicadas pelo colégio de MGF da Ordem dos Médicos poucos dias depois.

Após organização dos circuitos no local designado para ADC-C e elaboração do manual de funcionamento distribuído a todos os profissionais do ACeS, a abertura do ADC à comunidade foi no dia 26/03, com equipas compostas por 2 médicos, 2 enfermeiros e 1 secretário clínico. Inicialmente, o período de funcionamento era das 8h às 20h, divididos em 2 turnos, todos os dias da semana, inclusive finais de semana. Posteriormente, foi reduzido o horário de funcionamento aos finais de semana para 10h-18h, com apenas uma equipa escalada nestes dias. Foram observados utentes de todas as idades.

Uma vez que, apesar de vários pedidos, não foi possível ter testes disponíveis na ADC-C, nem em local adjacente, aos utentes com credenciais para realizar teste, foi-lhes entregue os contatos de laboratórios, disponibilizados pela DGS, para o agendamento e realização dos mesmos. Os utentes com pedidos de teste são introduzidos nas plataformas SINAVE e no TRACE-Covid, plataforma desenvolvida para acompanhamento dos utentes suspeitos ou com diagnóstico de Covid-19 em vigilância no domicílio. O acompanhamento clínico é feito diariamente até cumprir critérios de cura.

Ainda com um longo percurso a ser percorrido, olho para trás e vejo com grande satisfação a minha prestação na ADC-Comunidade. Sinto que cresci muito como médico e como pessoa. Fazer parte da organização fez com que eu desenvolvesse capacidades organizativas, gestoras e de liderança. Durante o trabalho diário foi reforçado o sentimento de entreajuda da equipa, o que levou ao fortalecimento e coesão da mesma com consequente maior qualidade na prestação de cuidados à população. A constante necessidade de informação atualizada fez-me aprimorar o interesse e a capacidade de leitura crítica de artigos, o resumo de Normas de Orientação Clínica e a partilha organizada com a equipa e sociedade científica.

Quanto ao internato, muitos dos objetivos do último ano não foram cumpridos da forma a que estávamos habituados, muitos estágios e formações foram cancelados, com eventual prejuízo formativo. No entanto, na minha opinião, talvez seja a oportunidade de pensarmos sobre modelos de internato e de avaliação mais flexíveis. Mesmo “fechando portas” esta pandemia trouxe oportunidades para reinventar e inovar alguns aspetos no dia a dia do Médico de Família, como por exemplo a teleconsulta.

Estando no último ano do internato, e com toda a incerteza que ainda paira, estou certo que sou hoje mais flexível, mais resiliente e mais capaz de encarar o futuro como Médico de Família.

 

Referências Bibliográficas:

  1. Sistema Nacional de Saúde. “Covid-19 | PandemiaAcessado em 19/05/2020. Disponível em: https://www.sns.gov.pt/noticias/2020/03/11/covid-19-pandemia/
  2. Sistema Nacional de Saúde. “Covid-19 | Fase de mitigação”. Acessado em 19/05/2020. Disponível em: https://www.sns.gov.pt/noticias/2020/03/26/covid-19-fase-de-mitigacao/
  3. Ramos, V, Santos, I. Recomendação do Colégio de MGF sobre organização de “mini-equipas” exclusivamente destinadas ao serviço em ADC nos CSP; 03/2020. Consultado a: 05/06/2020. Disponivel em: https://ordemdosmedicos.pt/wp-content/uploads/2020/03/recomenda%C3%A7%C3%A3o-CMGF-26-2020-2vs.pdf.
  4. Direção Geral da Saúde, Norma 004/2020. “COVID-19: FASE DE MITIGAÇÃO Abordagem do Doente com Suspeita ou Infeção por SARS-CoV-2”. Atualizada em 25/04/2020. Disponivel em: https://www.dgs.pt/directrizes-da-dgs/normas-e-circulares-normativas/norma-n-0042020-de-23032020-pdf.aspx