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Um Testemunho – 2ª Parte

Autor: João M Videira Amaral, médico Pediatra, Professor Catedrático NOVA Medical School / UNL

 

SOBRE O CONVÍVIO COM FIGURAS EMINENTES NO INÍCIO DO MEU INTERNATO

Uma instituição é um bem inestimável criado por Pessoas, dependente das mesmas, a sua anima. Antes de conhecer o HDE e de aí iniciar o meu trabalho de aprendiz de pediatra, li sobre a sua História e seus precursores e fiquei a saber, com enorme expectativa, que ia encontrar personalidades eminentes da medicina. 

Reportando-me à parte inicial do presente escrito, sobre a evolução do HDE, pode deduzir-se que a mesma, consubstanciando enorme progresso com impacte altamente positivo na saúde e bem-estar da comunidade, foi de facto concretizada por muitas Pessoas, não só da área da Medicina (os meus Mestres), mas também doutras áreas.

Todos os mestres que passo a  evocar tiveram como berço da formação os velhos (mas gloriosos) Hospitais Civis de Lisboa, caracterizados por um manancial de doentes a par de escassez de meios, com vencimentos de penúria, e sem folgas de banco. Contudo, imperava grande entusiasmo e o espírito de “mais trabalho, mais experiência”. A todos muito devo, testemunhando aqui a minha homenagem.

Tentando elaborar um texto de cariz histórico e de estilo fluente, optei a partir daqui, por omitir títulos distintivos como Professor, Doutor, Mestre, ou Dr.

  1. Como discípulo e antigo colaborador de Nuno Cordeiro Ferreira (que recentemente partiu) recordando com saudade tempos idos, tive o privilégio de com este mestre trocar ideias, reaprendendo de medicina, cultura e humanismo.

Do que tenho lido de Paul Valéry retirei uma frase que se adapta à figura de Nuno Cordeiro Ferreira, o clínico, o investigador e o pedagogo: “Pensar como Homem de acção, agir como Homem de pensamento”…Pela minha parte, adaptando-a com mais propriedade à figura, eu acrescentaria :… pensamento à distância ou intuindo o futuro.

Figura ímpar da pediatria nacional com projecção internacional, a quem o HDE muito deve pela obra deixada, entendo como dever ético realçar alguns marcos da sua acção, os quais influenciaram muitas gerações de pediatras, incluindo aquela a que pertenço.

Não posso deixar de testemunhar quanto me incitou a publicar um estudo original sobre raquitismo carencial que realizei com material de estudo do HDE –  o meu primeiro trabalho científico (com os recursos institucionais da época e a ajuda de um laboratório na Suíça) divulgado Revista Portuguesa de Pediatria, órgão da SPP.

Eis, então, alguns dos referidos marcos:

–  Com os seus relacionamentos sociais e prestígio científico, foi possível o apoio de mecenas como a Fundação Calouste Gulbenkian, viabilizando a aquisição de verbas para bolsas de estudos dos colaboradores e de equipamento para a criação de unidades modernas e pioneiras ao tempo, como as unidades de cuidados intensivos neonatais, de gastrenterologia, e de hematologia.

– Através das suas relações científicas com personalidades estrangeiras, da Europa e América Latina, trouxe a Portugal e ao HDE muitos académicos e especialistas, no âmbito de reuniões no HDE e de congressos (estou a lembrar-me do êxito do Congresso de Internacional de Pediatria de Língua portuguesa).

– Na qualidade de académico e de professor catedrático, foi um dos fundadores da Faculdade de Ciências Médicas (hoje NOVA Medical School) em ligação à Universidade Nova de Lisboa iniciando-se pela sua mão o ensino pré-graduado da pediatria no seu HDE. Nesta perspectiva inovadora, incentivou doutoramentos de colaboradores seus, alguns dos quais atingiram a cátedra.

– Entre vários prémios recebidos, os quais incrementaram  a notoriedade da instituição HDE, antes da sua jubilação recebeu o internacional Prémio Montaigne.

– Após a sua jubilação e durante cerca 10 anos foi coordenador dos HCL.

Por fim, cabe salientar que para mim foi uma honra ser seu colaborador toda a carreira, e seu assessor, designadamente com a elaboração de relatórios justificativos para aquisição de equipamento sofisticado junto da Fundação Calouste Gulbenkian para a criação da pioneira unidade de cuidados neonatais, já citada anteriormente. De facto, testemunho que um estágio que eu realizara anteriormente na unidade de cuidados intensivos do Hospital La Paz, em Madrid foi-me extremamente útil, indispensável, mesmo, quanto a treino em intensivismo e a organização perinatal.

  1. Apresentando-me no primeiro dia do internato no serviço 1 de Pediatria Médica, onde fora colocado, tive a honrosa oportunidade de ser recebido por Maria Elisa Sacramento Monteiro (Infelizmente já não entre nós), de quem já tinha ouvido falar muito elogiosamente pela sua elevada competência.

Minha orientadora nos primeiros tempos do estágio, com o tempo tornaram-se-me patentes  a sua postura de grande humanismo, a sua vasta experiência, e o seu profissionalismo; por conseguinte, tudo, atributos contagiantes de grande líder. Impunha-se a todos pelo seu exemplo de trabalho árduo, realizado sempre com entusiasmo e rectidão.

Não me posso esquecer duma das suas atitudes exemplares: algum doente por si observado no consultório privado necessitando de cuidados urgentes ou emergentes era por si acompanhado ao “banco do HDE”. Não se limitava a escrever uma carta-relatório.

Clínica exímia, aplicando sempre o bom senso, muito estudiosa e sempe actualizada, preocupava-se em expor aos seus colaboradores e discípulos os dados da investigação mais recente em pediatria.

A crítica construtiva que fazia, contendo sempre cunho pedagógico, era feita com compreensão e cordialidade, portanto, sem vexar. Não esqueço o que dizia aos internos quando, no serviço de urgência, uma criança com dificuldade respiratória evidenciava grande agitação e ansiedade: “—Atenção, pensem na possibilidade de hipoxia grave e possível pneumotórax !… E, quando surgia uma criança com marasmo dizia: “todos os iões estão com valor baixo… e, não esqueçam o potássio !”

– Num período em que era muito elevada a prevalência da subnutrição, dedicou-se à investigação nesta área com o apoio dos mais novos, incitando-os à publicação dos resultados. A este propósito recordo que foi com o seu apoio que fiz a primeira apresentação pública de comunicação científica em evento da SPP.

– Tive o privilégio de ser seu colaborador quando chefiou a unidade de recém-nascidos da maternidade anexa ao HDE. Nesta área, inovando toda a filosofia assistencial, levou a cabo uma autêntica modernização dos procedimentos em neonatologia, o que para mim foi muito estimulante; e, apoiando-me a progredir, despertou em mim um gosto especial pela neonatologia. Até essa altura, o problema da hipoglicémia do recém-nascido não era suficientemente valorizado. A este respeito, testemunho que foi com um estudo liderado por Maria Elisa Sacramento Monteiro que apresentei, com resultados, em Jornadas Nacionais da SPP, a minha primeira comunicação, sobre tal tópico.

  1. No referido período inicial da minha carreira cabe uma referência especial a outra figura cimeira, a outro mestre que também muito me apoiou e influenciou – António Martins Roque – com quem há poucos dias troquei algumas ideias. Coordenando ao tempo uma enfermaria de primeira infância – velha sala 3 do serviço 1, por onde passei, era o chefe da equipa de banco em que fui integrado desde os primórdios do meu estágio.

Como seu discípulo, desde o início, sempre admirei vários dos seus atributos:  a sua preparação clínica de excelência, a sua larguíssima experiência, a sua diplomacia, a sua arte de comunicar com a criança e a família, o seu senso clínico, e a sua extraordinária capacidade de síntese, apanágio dos que têm sabedoria, para além do conhecimento. Interiorizei logo, desde os primeiros momentos de convívio, que era um clínico que inspirava confiança às famílias das crianças por si tratadas.

Salientando que dava o máximo de oportunidades de aprendizagem aos seus internos, estou a recordar-me de que, a propósito de cada caso clínico, estabelecia uma relação com o que de mais recente tinha lido nos Advances in Pediatrics, no Year Book e na Pediatric Clinics of North America.

Para além dos três mestres anteriores, com quem mais tempo convivi e, portanto, mais me influenciaram, passo a citar outras figuras cimeiras contemporâneas.

  1. João Pascoal Duarte, infelizmente, deixou-nos muito cedo. Era provavelmente o pediatra mais popular do HDE. Irradiava simpatia com colegas, famílias, crianças, e todos os profissionais do HDE. Humanista e Homem de afectos, com uma grande cultura, escrevia muito bem, com um estilo que suplantava muitos escritores “profissionais”; Fernando Pessoa era o seu poeta preferido.

Grande comunicador, com uma vocação especial para a clínica, fazia excelentes palestras e conferências sobre os mais variados temas científicos utilizando diapositivos muito bem elaborados. Publicou igualmente artigos de grande cunho pedagógico que os internos, como eu,   liam com grande interesse.

Manifestando desde sempre uma predilecção pela subespecialidade da nefrologia, “fez escola”: veio a ser o pioneiro na formação duma equipa de pediatras nefrologistas, culminando na criação duma modelar unidade de nefrologia pediátrica dispondo de equipamento sofisticado para a realização de técnicas.

  1. Outra figura eminente do grupo que descrevo é Gertrudes Gomes da Costa. Excelente clínica e investigadora, de saber enciclopédico, foi pioneira na criação de normas de orientação clínica de pediatria que, curiosamente, divulgava em formato de jornal de parede.

A propósito da sua autoria de numerosas publicações, lembro-me de que cada edição da Revista Portuguesa de Pediatria trazia invariavelmente um artigo seu, o que traduzia  produtividade científica assinalável. Importa assinalar também a edição dum livro de grande cariz pedagógico intitulado “Recém-Nascido” em co-autoria com Nuno Cordeiro Ferreira de quem foi colaboradora e braço direito no HDE e na faculdade.

Tendo-se doutorado em 1986, defendendo tese intitulada ”Beta-talassémia – lipidoperoxidação e antioxidantes”, viria a mais ser mais tarde regente da disciplina de Pediatria da FCM no HDE após jubilação de Nuno Cordeiro Ferreira.

Tendo especial predilecção pela Hematologia, associada a Nuno Cordeiro Ferreira, formou uma equipa subespecializada e uma unidade assistencial, o que veio a consubstanciar a criação da primeira subespecialidade no HDE – a de Hematologia. 

  1. A propósito de Mário Dinis Esteves, soube que esteve recentemente no HDE no âmbito da comemoração dos 30 anos da subepecialidade de Pneumologia no seu serviço, subespecialidade por que sempre se interessou e que ajudou a criar. Estando ausente, fora do país, na altura, tive pena de não o cumprimentar e abraçar recordando os tempos de convívio. A propósito, realço fundamentalmente três períodos:

– quando, como interno, fiz estágio na enfermaria para tratar pacientes com desidratação grave e subnutridos a que me referi na 1ª parte do presente testemunho;

– na unidade de recém-nascidos da maternidade, que chefiou temporariamente e demonstrou, grande preparação na abordagem dos grandes tópicos sobre perinatologia e organização perinatal;

– e quando, mais tarde (estávamos em 1972), protagonizei uma vivência única após meu exame final do internato:  assessorei-o na Universidade de Luanda durante dois meses como segundo assistente no ensino da Pediatria, convidado por Nuno Cordeiro Ferreira, professor titular da disciplina na referida Universidade.

Com uma formação pediátrica de elevada craveira e digna de assinalar, lembro-me do entusiasmo com que abordava certos temas como nutrição e equilíbrio hidroelecrolítico. Com um estilo de linguagem científica de grande rigor, muito apelativo, e também muito interessado em doenças metabólicas, formou um núcleo desta valência no HDE, precursor duma unidade assistencial, surgida já depois da sua aposentação

  1. José Alberto Mateus Marques era uma personalidade de elevada craveira intelectual, com uma cultura multifacetada, e uma competência clínica que competia com a de académicos estrangeiros convidados que ao tempo tinham reuniões clínicas no HDE para discussão de situações complicadas: muitas vezes questionava-os cientificamente, saindo “vencedor”.

Como particularidade, e em conversa com o mesmo, fiquei a saber que sabia alemão e, como passatempo no campo da História, dedicava-se ao estudo da Inquisição em Portugal. Com dotes oratórios e de escrita notáveis, promoveu uma formação de qualidade em prol dos mais novos e   organizou com regularidade múltiplas jornadas científicas com a participação dos colaboradores e sempre seguidas da publicação de monografias sobre temas diversos.

Pode afirmar-se que cada reunião que promovia para internos e pediatras “já feitos”, cada conferência que fazia, cada discussão de casos clínicos constituíam sempre verdadeiros actos pedagógicos.

Muito crítico, e assumidamente sem a preocupação de ser “politicamente correcto “, entre as  suas publicações figura um  livro que, para além de aspectos biográficos referentes a figuras marcantes da medicina pertencentes à Escola dos HCL, integra igualmente  intervenções de opinião sobre diversos aspectos da Pediatria. O título daquele é muito sugestivo: “Médicos e Hospitais; Tempos e Andamentos”. Lisboa: Gradiva, 2001.

Toda a comunidade pediátrica do País lhe reconhecendo perfil científico e profissional para ser candidato a presidente da SPP em eleições que se aproximavam, testemunhei como secretário geral, acompanhado pelo então vice-presidente João Pascoal Duarte, que Mateus Marques declinou o convite. O facto foi comentado na altura como possível epifenómeno da sua postura de coerência e de verticalidade, possivelmente por discordar de questões que desconhecíamos.

Nesta linha, cabe salientar ainda dois factos: – foi sempre sua opção não ser professor universitário; – deixou explícito o seu desacordo sobre o programa nacional de formação de internos oficializado em 1996 pelo facto de, a propósito, “o seu HDE” não ter sido consultado para debate sobre a elaboração do mesmo. Dizia que tal atitude era tomada em prol da formação dos internos, que sempre defendeu.

Infelizmente, o HDE perdeu esta figura cimeira, que partiu, já no início deste milénio.

  1. De Fernando Sabido, director do serviço 1 quando me apresentei, recordo a sua atitude de clínico prático (muito baseado na sua larga experiência) e de excelente comunicador com a criança e família. Especialmente interessado em problemas relacionados com a nutrição, e exímio em questões de puericultura, deixou escola sobretudo nestes campos. Lembro-me de que recomendava doses de vitamina D superiores às convencionais, o que justificava pela elevada prevalência de raquitismo carencial comum no nosso país.

Entre as suas publicações, editou um livro intitulado “Alimentação do Lactente” (Lisboa: edição do autor, 1977), o qual, para além das noções  teóricas, incorporava ementas altamente sofisticadas, bem acolhidas por lactentes e famílias, e de grande utilidade para internos, pediatras e profissionais ligados à saúde infantil A este respeito, trocando impressões com colegas doutras escolas fiquei com a noção de que algumas das suas propostas poderiam ser consideradas controversas… Rivalidades ?

  1. Com Humberto Silva Nunes, director do serviço 2, a que eu não pertencia, convivi menos. Posso testemunhar que li muitos dos seus escritos no “Boletim Clínico dos HCL”, nas “Publicações do Internato” incluindo “Cursos de Aperfeiçoamento para Internos” de 1965 e 1966, e que assisti a algumas das suas conferências. Quando aparecia no “banco”, falava muito com os internos, com quem trocava impressões e a quem fazia perguntas “de surpresa”, comentando também alguns dos casos em observação pela equipa na altura. A subnutrição, pela sua elevada prevalência ao tempo, eram um tema que abordava com muita frequência.

Manifestando grande sensibilidade social, falava frequentemente no papel do serviço social nos hospitais e na necessidade de os serviços de pediatria incorporarem educadoras de infância.

Nos primórdios da minha carreira como interno houve outro aspecto das suas abordagens temáticas que me impressionaram positivamente, e aprecio hoje ainda mais, passados muitos anos: falava muito da importância do aleitamento materno, da ligação das ciências básicas à clínica, da necessidade de abordagem interdisciplinar, designadamente nos quadros mórbidos mais complexos, e da importância dos exames complementares a realizar, sempre com fundamentação baseada na história clínica.

A propósito, um facto curioso relacionado com o meu 3º ano da faculdade merece ser destacado: no HDE vim a verificar que já conhecia Silva Nunes, sem antes ter fixado o seu nome. Com efeito, assistia na primeira fila do anfiteatro a todas as aulas de anatomia patológica dadas por Jorge Horta. Este professor referia-se ao primeiro sempre com deferência pelo facto de o mesmo se interessar por esta ciência básica e de estar a preparar tese de doutoramento intitulada “ Contribuição para o estudo do problema da respiração fetal”, tema avançado para a época; li com todo o interesse tal dissertação em livro, que o próprio me veio a oferecer quando lhe falei no facto, o que muito me empolgou.

  1. Conheci Fernanda Sampayo  quando  estava  no meu internato geral no serviço de medicina interna e cardiologia do Hospital de Santa Marta, onde existia uma enfermaria para asssitência a crianças com cardiopatia.

Estando nessa enfermaria a observar um adolescente com valvulopatia reumatismal, perguntei ao meu orientador de então – internista e cardiologista Lino da Silva – quem era a médica que tinha entrado na enfermaria para observar algumas das crianças internadas, tendo a propósito duma, portadora de cardiopatia cianótica , chamado a atenção para “a necessidade de se  administrar  ferro”. Este facto singelo ficou marcado na minha mente.

Fiquei a saber que se tratava duma pediatra de prestígio internacional pertencendo ao quadro do serviço 2 do HDE, que se deslocava regularmente como coordenadora à referida enfermaria, que tinha feito com assinalável brilho e distinção todos os concursos de provas públicas teóricas,  práticas e eliminatórias para provimento de vaga de assistente dos HCL (como foi dito, cargo designado actualmente chefe de serviço), e  que nos Estados Unidos da América  obtivera  graduação pelo American Board da Academia Americana de Pediatria

Mais tarde, estando eu já no HDE, viria a criar em 1970 o primeiro serviço de cardiologia pediátrica em Santa Marta, tendo como precursora a anteriormente referida enfermaria no Hospital de Santa Marta. Soube entretanto que, com base na investigação sobre “Electrocardiografia fetal”, fizera com brilho provas de doutoramento na Universidade Clássica de Lisboa. A este respeito, ainda há poucos dias, numa reunião, se referiu criticamente ao facto de no respectivo juri “não haver pediatras”.

Com uma formação pediátrica global avançada, criando escola, é indubitavelmente a fundadora da cardiologia pediátrica em Portugal.

E agora, um facto curioso: Fernanda Sampayo fez parte do juri do meu exame final do internato para obtenção de especialista. Era de esperar alto grau de exigência, o que de facto aconteceu; estávamos numa época em que surgira um novidade científica decorrente da investigação: o feto, futuro recém-nascido de mãe com antecedentes de rubéola durante a gravidez, é portador de vírus e, por conseguinte, fonte de contágio. Nunca me esquecerei da  pergunta que me fez sobre o assunto. Sem vaidade, respondi correctamente…

Com uma  postura exemplar de rigor e verticalidade nas suas convicções e nos actos, e uma cultura geral invulgar com predilecção pela música e outras artes, numa fase mais adiantada da minha carreira fui estabelecendo com Fernanda Sampayo  uma relação profissional de extrema cordialidade, que muito me enriqueceu.

No campo da formação pediátrica geral dos internos de cardiologia fazendo estágios no HDE e na unidade que chefiei, estava sempre atento às suas críticas e sugestões.

Como meu testemunho enquanto médico do HDE e simultaneamente secretário geral e presidente da SPP, sintetizo os seguintes aspectos do seu contributo altamente relevante com repercussão na pediatria nacional:

 – criação da Secção de Cardiologia Pediátrica da referida sociedade e primeira presidente da mesma; – coordenaçao de três grupos de trabalho produzindo importantes documentos de análise designados respectivamente:  1. Pediatria em Portugal – anos 80;  2. O problema das subespecialidades pediátricas;  3. O problema da assistência à criança pelos clínicos gerais.

Sobre as subespecialidades pediátricas que entretanto se iam formando, sempre entendeu que o subespecialista pediátrico deverá ter uma formação pediátrica global sólida: antes de ser subespecialista, deve ser pediatra geral/global competente.

  1. Em 1968 tive o privilégio de conhecer Manuel Cordeiro Ferreira, alguns anos após a sua jubilação. Figura de enorme prestígio e director de excelência do HDE em décadas anteriores, integrara historicamente a primeira direcção da SPP.

Para nos situarmos geracionalmente, cabe referir a contemporaneidade como colega de curso de Fernando da Fonseca, e que Silva Nunes, citado antes, fora seu colaborador. Foi um verdadeiro líder carismático com projecção internacional, designadamente pelo seu relacionamento muito próximo com outras figuras europeias da época, de quem era amigo, como Debré, Fanconi, mais antigos, e Ballabriga, mais recente.

Clínico de elevada craveira, pai de Nuno Cordeiro Ferreira e avô de Gonçalo Cordeiro Ferreira,  procedeu a muitas reformas em prol do desenvolvimento da instituição HDE. De acordo com dados da história da medicina, era extremamente metódico e sóbrio, muito devotado ao doente; pelo exemplo, impunha naturalmente grande respeito e disciplina junto de todos os colaboradores, médicos e não médicos. Tendo feito escola, muito contribuiu para a modernidade da pediatria portuguesa.

Relativamente a obras de fundo levadas a cabo no HDE, importa dizer que promoveu uma modernização arquitectónica no início da década de 60, melhorando a funcionalidade global.

No seu tempo, a urgência pediátrica de toda a cidade de Lisboa estava concentrada no banco do Hospital de São José, imagine-se em que condições!  Com a sua forte determinação, confrontado com inúmeras dificuldades postas por alguns “velhos do Restelo”, que superou inteligentemente, o referido serviço foi transferido para o HDE. Tinha o condão de abordar os problemas numa perspectiva de futuro e de longo prazo, de modo amplo e à distância, convicto de que a carência de meios não deve constituir desculpa para não fazer.

Usufruí do seu hábito de, semanalmente, realizar reuniões num pequeno gabinete da sala 1 do antigo serviço 1 para discussão de casos clínicos que lhe eram apresentados pelos respectivos colegas responsáveis e por internos. Tais reuniões agregavam também antigos colaboradores seus, fazendo apenas clínica privada que, acorrendo voluntariamente ao HDE, expunham problemas diversos que tinham em mãos. Eram trocadas ideias, falava-se dos problemas pediátricos comuns e raros, e lembro-me de que os comentários finais do líder eram muito enriquecedores, aprendendo-se muito com a sua vasta experiência. Nas discussões, a semiologia clínica era altamente valorizada, no tempo em que os exames de imagem mais “sofisticados” eram a tomografia convencional, a urografia de eliminação e os exames com contraste do sistema digestivo. A ecografia só apareceria 12 anos depois em Portugal.

A propósito de colegas seus estrangeiros de quem era amigo, lembro que o Núcleo Museológico tem fotografias a preto e branco mostrando Manuel Cordeiro Ferreira, com alguns dos  colaboradores já citados e dos amigos estrangeiros convidados, a observar e a discutir situações clínicas.

Angel Ballabriga, com quem tive a honra de conviver ainda bastante quando pertenci à direcção da SPP e por ocasião do seu doutoramento honoris causa pela UNL por proposta de Nuno Cordeiro, dizia com “muita honra” que a primeira conferência que proferira no estrangeiro quando era jovem, fora em Lisboa, no HDE, por convite “dos Cordeiro Ferreira”, sobre “Toxoplasmose”.

Para terminar este meu testemunho sobre Manuel Cordeiro Ferreiras, sentindo saudades porque na altura era novato, dou conta de dois episódios contendo algo de pitoresco.

– Manuel Cordeiro Ferreira, sendo crítico construtivo, dizia por vezes com ironia, a propósito das discussões clínicas: “O médico, quando não sabe o que o menino tem, diz que se trata de uma virose”.

– No primeiro Verão que passei no HDE, em Agosto, havia um doente internado de 7 anos com um tumor abdominal. Tinha feito análises de sangue que excluíam determinadas etiologias, tinha indicação operatória, mas o cirurgião só realizaria a laparotomia depois de ouvir a opinião de Manuel Cordeiro Ferreira, que estava em férias em Vidago e só chegaria daí a dois dias. Ponderada devidamente a situação sobre a pertinência do adiamento de dois dias, o doente foi operado após a douta opinião da pessoa indicada. Lembro-me de que tudo correu bem a seguir. 

Seguidamente testemunho factos relacionados com os cirurgiões pediátricos no topo da hierarquia com quem mais privei.

  1. De Eduardo Rosado Pinto (pai de José Rosado Pinto, que mais tarde seria um dos pioneiros da moderna Imuno-Alergologia pediátrica dirigindo um serviço no HDE e fazendo escola) – que recordo saudosamente, tendo partido há bastantes anos – testemunho, entre outros atributos, a grande empatia que estabelecia com as gerações mais novas, com os seus colaboradores e com todos os elementos não médicos do então designado serviço 3, de que foi director. Pedindo-lhe certa vez para me esclarecer uma dúvida, muito sensibilizado fiquei pelo modo simpático e natural como me recebeu.

Humanista de grande cultura, falava com grande à vontade, não só de medicina, cirurgia e ortopedia da criança e adolescente, mas também de música, pois era um melómano  e tinha diploma do curso superior de piano do Conservatório Nacional.

Com os seus colaboradores criou um escola de ortopedia pediátrica, formando equipas que se deslocavam probono semanalmente ao Hospital São João de Deus em Montemor-o-Novo para operar como principal missão, crianças com sequelas de poliomielite. Mais tarde, em tempos de Abril de 74, viria a ser re-eleito inequivocamente como director por todos os colaboradores, médicos e não médicos, o que foi considerado por alguns um gesto de “legitimação revolucionária”.

  1. Tentando falar com Fernando Afonso ao elaborar este texto, soube que estava em viagem de turismo algures na Europa e que tinha optado após a sua aposentação, por se desligar das questões médicas e cirúrgicas para usufruir das coisas boas da vida, como muitos outros , o que é bom sinal.

Da fase activa, formando muitos cirurgiões pediátricos, recordo a sua extrema simpatia, o modo rigoroso como estudava os doentes para as operações e a fama de ter “mãos prodigiosas de cirurgião”.  Lembro-me de ter assistido a reuniões de formação de grande cunho pedagógico; como interno estagiário de pediatria médica no seu serviço 3, testemunho que me convocou várias vezes para segundo ajudante em intervenções cirúrgicas, explicando ao pormenor os procedimentos que realizava.

Testemunho também um facto curioso, semelhante àquele que relatei a propósito de Silva Nunes: conheci Fernando Afonso no meu 5º ano da faculdade, no Hospital de Santa Maria (HSM). Sendo assistente da disciplina de Patologia Cirúrgica, e tendo acontecido que vim a pertencer à sua turma na prática de enfermaria e bloco operatório, já nessa altura me apercebera do seu perfil humano e científico.

Por fim, mais dois factos curiosos que testemunho: – Fernando Afonso sabia os nomes de todos os seus alunos, e reconhecia-os; – morando eu numa das avenidas que dava acesso ao HSM e encaminhando-me a pé diariamente para as aulas, certo dia, reconhecendo-me, deu-me boleia no seu automóvel. Isto não se esquece!

  1. Do mesmo tempo de Fernando Afonso, outra figura cimeira da cirurgia pediátrica, importa citar: trata-se de António Gentil Martins, um humanista de grande cultura, com quem ainda privo actualmente por aparecer em muitas reuniões. Com efeito, exercendo ainda clínica, mantém uma actividade multifacetada de cidadania e solidariedade, envolvido em obras sociais e artísticas. De nome, conhecia-o já desde o meu internato geral, pois era muito falado entre os cirurgiões da equipa de banco de São José.

É seguramente, o cirurgião pediátrico português mais conhecido a nível mundial, sobretudo por ter sido Presidente da Associação Médica Mundial e por outras razões: pioneirismo na separação de gémeos siameses, vasta experiência em cirurgia oncológica, e inovação, consubstanciada por  técnicas cirúrgicas originais que criou, divulgou e seguidas pelos seus pares nacionais e internacionais. Posso testemunhar o que afirmei com dois episódios passados no Addenbrooke´s Hospital em Cambridge e no Hospital La Paz em Madrid: quando fazia estágios na década de 80 nestes hospitais, dois colegas estrangeiros, sabendo que eu era português, perguntaram-me se conhecia Gentil.

Em Portugal, pelo seu protagonismo em questões éticas e fracturantes (assumindo frontalmente posições que muitos consideram controversas), pela defesa em prol do HDE (desde artigos de opinião, a intervenções na televisão e participação em maratonas com camisola com o logótipo do hospital) e ainda pelos três mandatos como Bastonário da Ordem do Médicos, toda a gente o conhece.

Um episódio singular ocorrido poucas semanas após o início do internato de pediatria merece ser testemunhado: em certa noite, estando de serviço no banco do HDE, pelas três da manhã, ajudei-o com outro colega mais diferenciado numa reanimação dramática dum doente seu operado na véspera utilizando o velho ventilador Bird. Ou seja, estando em sua casa, no sono nocturno, deslocou-se de imediato ao hospital na sequência de telefonema de enfermeira, que lhe dera conta da situação. Estávamos numa fase em que não havia enfermaria de cuidados intermédios nem de intensivos.

Após criação do ensino pré-graduado de Pediatria no seu HDE, e dado o seu perfil científico-pedagógico e profissional excepcional, foi professor convidado para leccionar Pediatria Cirúrgica, pela mão do regente da disciplina, Nuno Cordeiro Ferreira. Apesar da sua alta capacidade, foi adiando o doutoramento que, por opção própria e multiplicidade de tarefas profissionais, não o realizou. Como seria de esperar, sendo o conteúdo das aulas muito completo, pugnava pela criação duma disciplina autónoma de Pediatria Cirúrgica, o que não veio a acontecer dados os constrangimentos regulamentares em horas lectivas.

Falando bastantes vezes com Gentil Martins, longilíneo de biótipo – com quem sempre tive o privilégio de obter dele uma empatia, que muito me honra – perguntei-lhe certa vez qual o segredo para a manutenção da sua “juventude”, com desejo de continuar a operar. Responde-me invariavelmente, abrindo os dedos da mão exposta em posição horizontal: “Já vês… não bebo, não fumo e não tremo…!”

  1. A propósito do meu estágio na Pediatria Cirúrgica, não posso esquecer o impacte altamente positivo que teve na minha formação de novato aprendiz o convívio com outra figura cimeira – José António Matos Coimbra. Especialmente interessado em problemas nefrourológicos, e fazendo parte da equipa de ortopedia liderada por E Rosado Pinto a que me referi anteriormente, ao tempo tinha regressado de Liverpool onde trabalhara no Alder Hey Hospital com mestres da cirurgia pediátrica britânica. Era um verdadeiro pedagogo, “hiperactivo” e despachado, mas muito humano.

Valorizando justamente o papel das equipas de enfermagem, a propósito daquelas com quem trabalhou em Liverpool, dizia que “estavam muito bem preparadas”. Não posso esquecer uma das suas afirmações a este propósito: “…no Alder Hey as enfermeiras palpam sempre a cabeça dos bebés e não se esquecem dum gesto semiológico simples – o de palpar o asterion para detectar  eventual disjunção de suturas relacionável com hipertensão intracraniana ”.  Aprendi muito com ele e até o ajudei nalgumas intervenções.

Para além das vivências da cirurgia pediátrica, tinha outras actividades relacionadas com a escrita literária (escrevia muito bem), botânica e jardinagem, navegação de recreio e automóveis antigos.

Em finais da década de 70 deslocou-se para o Hospital Pediátrico de Coimbra, tendo-nos deixado para sempre, segundo apurei, em 2009.

 

Tendo iniciado este escrito com Epicuro,  termino-o com um pensamento que me vem à memória  muitas vezes, me obriga a reflectir, e me enriquece:

“Eu não existo. Sou todos os livros que li, todas as pessoas que amei, todos os lugares por onde passei… ”

                                                                                                                                                        Jorge Luís Borges