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Um Testemunho – 1ª Parte

Autor: João M Videira Amaral, médico Pediatra, Professor Catedrático NOVA Medical School / UNL

 

INTRODUÇÃO

Sendo a História constituída por memórias baseadas em documentos e testemunhos, ter o privilégio de testemunhar certos factos permite que os mesmos sejam revividos, o que poderá ser reconfortante para quem os viveu; e, para quem não os viveu, o conhecimento dos mesmos poderá contribuir para uma melhor compreensão do momento presente.

No âmbito das Comemorações dos 140 anos do Hospital de Dona Estefânia (HDE), a Professora Maria Teresa Neto convidou-me para dar o meu testemunho relacionado com vivências da minha carreira na Instituição, a qual sempre considerei como a minha segunda casa.

Respondendo ao repto duma colega e amiga que muito me apoiou desde longa data, quer como académica ilustre que atingiu a cátedra na Faculdade, quer como colaboradora dedicada da equipa intensivista de Neonatologia, dividi este escrito em duas partes:

– na primeira, para além do testemunho de vivências, foco aspectos essenciais da evolução do HDE, a qual não se pode desligar da evolução da Medicina em Portugal e no Mundo.

– na segunda, sem pretensões biográficas, evoco as figuras eminentes que constituíam a cúpula hierárquica, a quem me apresentei aquando do início do internato de pediatria, e com quem mais privei. Tais figuras, meus primeiros mestres, representam exemplarmente o prestígio da Escola Pediátrica dos Hospitais Civis de Lisboa (HCL) em que se integrava o HDE. Igualmente, destaco factos, ideias e circunstâncias relacionados, que me influenciaram e muito me marcaram.

Encaro esta tarefa com muito gosto e em espírito de missão, dando a conhecer às novas gerações um caminho percorrido, muitas vezes superando dificuldades  com a intervenção de muitos, a quem muito devo.

 

1ª Parte

SOBRE A EVOLUÇÃO DO HOSPITAL DE DONA ESTEFÂNIA

As pessoas felizes lembram o passado com gratidão, alegram-se com o presente, e encaram o futuro sem medo”

                                                                                                                                                                                  Epicuro

 

Foi no ano de 1968 que iniciei o meu internato de Pediatria no HDE: iniciei vivências que me enriqueceram como pessoa comum e como médico aprendiz, então jovem; vivências prolongadas durante muitos anos (39, oficiais e, mais alguns, ex-officio) que, na minha perspectiva, tipificam as práticas e a evolução duma área da Medicina devotada a Crianças e Jovens, correspondendo a cerca de 20% da população em Portugal.

Ao tempo, no âmbito da Saúde, e não só, o nosso País era considerado de transição, entre subdesenvolvido e desenvolvido. A par duma natalidade traduzida por cerca de 200.000 nados-vivos anuais – garantindo a renovação de gerações – a taxa de mortalidade infantil de 70/1.000, do tipo “terceiro mundo”, envergonhava-nos.

Logo de início, tendo como pano de fundo o ambiente do “meu hospital”, o que me impressionou mais?

– O apoio e dedicação dos mestres e colegas mais antigos com quem muito aprendi.

–  A extraordinária perícia e a dedicação das enfermeiras, em número insuficiente, mas cruciais, que faziam milagres e conseguiam canalizar veias de bebés muito pequenos… Para mim um espanto, vindo eu do internato geral de adultos, internato que ao tempo não contemplava a pediatria.

– A elevada prevalência de patologia evitável, exemplificada designadamente por casos de marasmo – os “distróficos” na gíria de então -, kwashiorkor, raquitismo, formas graves de tuberculose, sífilis congénita, sarampo, de tosse convulsa, meningite, etc..

– A existência duma enfermaria para tratamento de situações de desidratação grave por  gastrenterite aguda obrigando a fluidoterapia endovenosa; predominavam doentes de primeira infância com patologia de base variada.

– Os internamentos prolongados, os doentes separados da família e os casos de hospitalismo. As leis vigentes ainda não contemplavam a presença permanente dos pais junto dos filhos, embora houvesse caso a caso uma boa relação humana médico – doente – família.

O panorama traçado ao de leve consubstanciava globalmente certo o atraso do País e uma filosofia de governação com falta de investimento em medidas preventivas e de promoção da saúde; por outro lado, a iliteracia em assuntos básicos por parte da população mais desfavorecida agravava o problema.

Felizmente o panorama foi mudando de modo progressivo ao longo do tempo. Houve uma mudança não só política, como económica e social; houve a integração na União Europeia, e o País passou a ser reconhecido pelas instâncias internacionais como desenvolvido.

Com efeito, operou-se investimento importante na área dos cuidados primários (a casa começa a construir-se pela base…), na promoção da saúde, na prevenção de doenças infecciosas, na assistência perinatal, na reestruturação dos centros de saúde, na modernização e ampliação da rede hospitalar, e na educação para a saúde desde a escola básica.  Os frutos da mudança conduziram a uma melhoria expressiva dos indicadores de saúde, espelhando números que contribuem para aumentar a satisfação dos mais pessimistas (e dos políticos); isto, pelo menos, quanto a taxas mortalidade infantil e de menores de 5 anos, que desceram respectivamente até 2,8/1.000 e 4/1.000 em 2015, ultrapassando países tradicionalmente na linha da frente e aumentando a autoestima nacional. Contudo, em paralelo com esta melhoria, Portugal não fugiu à “epidemia europeia” da baixa natalidade: no referido ano, menos de 90.000 nascimentos, o que compromete a renovação de gerações.

Todo este esforço foi reconhecido pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que colocou Portugal em posição destacada na cotação mundial dos melhores sistemas de saúde: o 6º melhor para se nascer entre 80 países com mais de 10 milhões de habitantes, e fazendo parte dos 5 países com melhores resultados em indicadores de saúde na Europa.

Contudo, há que ser realista, pois ao longo dos anos a patologia mudou e todos os que se dedicam à clínica passaram a enfrentar outros problemas, muitos de forte cariz social: a toxicodependência, a pobreza e exclusão social em certas bolsas da população, as repercussões do ambiente de stress, de violência, disfunção e negligência familiares, os maus tratos com múltiplas facetas, os efeitos da poluição, a obesidade e excesso de peso com a respectiva comorbilidade, a infecção por VIH, as  doenças crónicas, e muitos outros. No âmbito das situações mais correntes, os tempos de internamento diminuíram, mas certa patologia mais complexa, passou a levantar a questão da necessidade dos cuidados domiciliários e continuados (inexistentes ou insuficientes para a idade pediátrica).

Hoje, ex officio, ainda apareço no “meu hospital” porque me sinto bem, não me desligando abruptamente dos progressos da medicina pediátrica, e fico enriquecido com a oportunidade de contacto com os amigos e as novas gerações.

Pode então perguntar-se: o que tenho testemunhado e o que mudou, especificamente quanto à prestação de cuidados e sua organização, ao ensino, recursos técnicos e treino clínico, às carreiras médicas e concursos, e à investigação?  Eis o que me foi dado testemunhar:

– a preocupação de criar, cada vez mais, ambiente acolhedor e humanista para o doente incluindo a presença permanente da família; – modernização de estruturas e aquisição de equipamento sofisticado em diversas áreas, em prol da melhoria da qualidade assistencial, auditada a nível internacional; – criação de unidades de cuidados intensivos neonatais e pediátricos; – criação e desenvolvimento de uma dezena de subespecialidades pediátricas (a Hematologia foi a primeira) pressupondo implicitamente o desenvolvimento de técnicas específicas e a respectiva valência formativa; – modificação dos nomes de cargos hierárquicos (o actual chefe de serviço era designado assistente dos hospitais e o actual consultor/assistente hospitalar era designado por interno graduado; – e, mais recentemente, reorganização da orgânica assistencial com novas designações decorrentes da fusão de serviços de pediatria médica que existiam noHDE “em duplicado “ e, – é curioso – “salutarmente rivais”…

No âmbito do ensino e recursos técnicos testemunhei como mais marcantes os seguintes factos:

– após a revolução de Abril e um período de transição de ensino médico nos HCL devido a plétora de alunos ultrapassando a capacidade da Faculdade de Medicina de Lisboa; a partir de 1977, com a criação da Faculdade de Ciências Médicas (FCM)- hoje Nova Medical School – da Universidade Nova de Lisboa (UNL), iniciou-se o ensino pré-graduado no HDE em ligação à UNL;

– a formação de pediatras generalistas em obediência au programa nacional de internato

complementar – hoje chamado de formação específica – que evoluiu de 3 para 5 anos e passou a estar estruturado, com mobilidade dos internos por diversas instituições (podendo ser estrangeiras), e incluindo estágios em cuidados primários;

– a formação de pediatras com subespecialidades englobando o treino em técnicas e a frequência de ciclos de estudos especiais, desde a hematologia e neonatologia à gastrenterologia, nefrologia, pneumologia e pedopsiquiatria;

– a informatização dos serviços, abrangendo o desenvolvimento de processos clínicos electrónicos e rede de intranet;

– a criação de um centro de simulação em técnicas;

– a criação do núcleo iconográfico, acervo imagiológico com material de extraordinário valor pedagógico e científico, divulgado periodicamente;

– a criação do Núcleo de Estudos Pediátricos (NEP), propiciando bolsas de estudo para internos e   englobando a edição periódica de revista científica, antes designada Actualidades Pediátricas e, actualmente, Notas de Pediatria. Nas décadas de 80-90 publicava-se a revista Arquivos do HDE cuja publicação cessou por dificuldades de financiamento;

– a criação duma plataforma electrónica de acesso via internet.

Sobre os concursos da carreira médica para provimento de vagas – uma “marca” de prestígio reconhecida globalmente, pioneira no País e exclusiva dos HCL (e, portanto, do HDE), muito haveria a dizer. Com efeito, a partir de meados da década de 70, a legislação deixou de incluir o modelo que constava de provas clínicas teóricas e práticas eliminatórias, tradicionalmente com elevadíssimo grau de exigência; outro modelo surgiu, generalizado a todo o País (aspecto que considero positivo), com a adopção de prova curricular apenas (aspecto negativo).

Testemunhei, ao tempo, a oposição frontal de personalidades de prestígio da medicina portuguesa (incluindo da pediatria) contra esta mudança. Não posso esquecer os argumentos de figuras hierárquicas de topo, com carreira feita nos HCL, contra a situação oficial imposta pela tutela que, em autêntica campanha se estendeu ao HDE: era afirmado inequivocamente que o modelo sem provas clínicas “era um erro”, pois “o candidato é confrontado com documentos e não com doentes”, sendo “avaliado mais o técnico do que o clínico”… “sem permitir avaliar a componente estritamente individual de destreza clínica”.

Quanto à investigação, o panorama também mudou muito. Assisti e continuo a assistir ao entusiasmo crescente das novas gerações de investigadores realizando estágios em centros nacionais e estrangeiros, e publicando os resultados de estudos em revistas indexadas, de projecção internacional. A este respeito importa salientar que na última década foi criado um centro de investigação e um laboratório de nutrição, realizando trabalho notável de investigação de translação e de serviço prestado à comunidade.

Ainda no campo da investigação, indissociável da formação e da assistência, cumpre dar o devido a relevo à organização de eventos científicos, e ao chamado Anuário do HDE (fazendo parte do Núcleo de Estudos Pediátricos – NEP/HDE), funcionando há quase um quarto de século: repositório de estudos realizados anualmente e ulteriormente divulgados, com atribuição de prémios segundo regulamento.

Falar sobre factos históricos no âmbito do tópico em análise, importa uma referência obrigatória à Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP) e às suas secções/sociedades satélites, devotadas às subespecialidades pediátricas; a mesma, ao longo dos anos tem integrado pediatras do HDE.  Pugnando pela concepção da Pediatria como medicina integral de um grupo etário e, considerando a lógica da subespecialização a partir da medicina pediátrica, a SPP tem estabelecido pontes com congéneres estrangeiras e constituído um pilar fundamental para o crescimento e desenvolvimento da Pediatria Nacional.

Importa dizer, por fim, que esta filosofia de intercâmbio e de relacionamento científico sempre foi apanágio do HDE pela mão dos mestres e figuras cimeiras a que me referirei na segunda parte deste escrito. O Núcleo Museológico é fértil em documentação fotográfica, referente a décadas anteriores à minha estadia no HDE, sobre grandes ícones da pediatria da Europa e da América do Sul. Lembro-me de observar fotos com Debré, Fanconi, Ballabriga, Manuel Cordeiro Ferreira, Nuno Cordeiro Ferreira, Mateus Marques e Fernando Sabido observando e discutindo casos de doentes no tempo em que os recursos quanto a exames complementares eram escassos. Por outro lado, já “no meu tempo”, testemunhando a vitalidade da Escola Pediátrica do HDE, protagonizei inúmeras reuniões científicas agregando pediatras de todo o país, em que participavam os mestres, os internos e, também convidados estrangeiros fazendo conferências.

 

Continua…