Autor: Rita Aguiar, Médica Interna de Formação Específica em MGF (USF Bom Porto)
Na (auto-)avaliação da nossa prática clínica, a questão do sobrediagnóstico é, de facto, um aspeto a refletir. Este conceito refere-se à situação em que é diagnosticada uma alteração/doença que não iria, no futuro, trazer qualquer queixa ou dano. Ou seja, existe um diagnóstico correto, no sentido em que se deteta uma verdadeira anomalia, mas este não iria causar nenhum problema se não tivesse sido identificado.
Isto, por si só, representa um problema – Porquê investir tempo e recursos à procura de diagnósticos que não vão beneficiar o doente? Não estaremos, desta forma, a desviar recursos valiosos num Serviço Nacional de Saúde que já tem dificuldades de sustentabilidade? Nos Estados Unidos da América, por exemplo, estima-se que os custos com o sobrediagnóstico, e sobretratamento daí decorrente, se situem entre os 158 e 226 biliões de dólares/ano.
Não menos importante é o facto de que esta situação, mais do que não trazer benefício, pode mesmo prejudicar o doente pela cascata diagnóstica e/ ou terapêutica que frequentemente implica. As consequências físicas são talvez as mais fáceis de identificar, como é o caso da incontinência urinária ou disfunção erétil secundárias a tratamento cirúrgico da neoplasia prostática. No entanto, podem também surgir importantes consequências psicológicas, uma vez que o diagnóstico de uma determinada patologia está quase sempre associado uma carga emocional negativa. Além disso, o “rótulo” de doente altera muitas vezes a perceção que a pessoa tem de si própria, da sua saúde e, até, do seu papel na sociedade.
São várias as causas apontadas para este problema. A prática de medicina defensiva é uma delas, podendo ser explicada por diversos fatores, como a dificuldade do médico na gestão da incerteza, o receio de litígio e a noção de que “é melhor pecar por excesso do que por defeito”. A falta de tempo na consulta e os constrangimentos na agenda, que dificultam uma avaliação completa do utente e são um obstáculo à continuidade de cuidados, são outros fatores contribuidores a ter em consideração. Também a baixa literacia em saúde da população desempenha aqui um papel – quem nunca ouviu em consulta o “Peça-me exames a tudo!”? Por fim, a indústria farmacêutica pode contribuir para este problema, tanto através de estratégias de marketing dirigidas diretamente ao consumidor, como também, de forma mais dissimulada, ao condicionar conflitos de interesse nos elementos que integram painéis de decisão clínica, dos quais surgem orientações diagnósticas e terapêuticas.
Faz, por isso, sentido combater este problema, sendo várias as estratégias possíveis. Algumas irão depender essencialmente do esforço de entidades com poder de decisão – investir em campanhas de informação para a população, regulamentar a publicidade da indústria farmacêutica, promover investigação com end-points clinicamente relevantes, incentivar a qualidade do ato médico em detrimento da quantidade, rever cut-offs de diagnóstico e guidelines de atuação, bem como fiscalizar eventuais conflitos de interesse por parte da indústria farmacêutica.
Contudo, no nosso dia-a-dia como médicos de família, há igualmente muito a fazer – interpretar de forma crítica a informação científica, aceder a plataformas de apoio à decisão clínica com reconhecida qualidade (a iniciativa Choosing Wisely tem já uma página no site da Ordem dos Médicos), partilhar a tomada de decisão clínica com o utente e divulgar plataformas de informação para a saúde dirigidas à população (a plataforma METIS é um bom exemplo).
Por fim, diria que, se tivermos presente o nosso papel de advogado do doente e o famoso princípio hipocrático primun non nocere, o problema do sobrediagnóstico poderá certamente ser minorado.
Bibliografia:
1) Kale Minal S, Korenstein Deborah. Overdiagnosis in primary care: framing the problem and finding solutions BMJ 2018; 362 :k2820.
2) Overdiagnosis: How Our Compulsion for Diagnosis May Be Harming Children. Eric R. Coon, Ricardo A. Quinonez, Virginia A. Moyer and Alan R. Schroeder. Pediatrics; originally published online October 6, 2014.
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4) Graves JM, Fulton-Kehoe D, Jarvik JG, Franklin GM. Early imaging for acute low back pain: one-year health and disability outcomes among Washington State workers.
5) Moynihan RN, Cooke GP, Doust JA, Bero L, Hill S, Glasziou PP. Expanding disease definitions in guidelines and expert panel ties to industry: a cross-sectional study of common conditions in the United States. PLoS Med. 2013;10(8):e1001500