AUTOR: Francisco Moita Flores, escritor
‘Saúde para Todos’ – discurso proferido dia 5 de abril 2023 no Infarmed, por ocasião da antecipação do Dia Mundial da Saúde (que se celebra todos os anos a 7 de abril)
Foi com surpresa que recebi o convite para falar de ‘Saúde para Todos’ perante uma plateia de sábios, de cientistas, de investigadores, de profissionais de Saúde, celebrando uma data com uma força simbólica poderosa para todos quantos dedicaram, e dedicam as suas vidas, ao serviço dos seus concidadãos a partir de uma panóplia de lugares que vão do laboratório ao hospital, da farmácia ao posto de saúde, da Universidade até ao técnico menos especializado.
Não venho de nenhum desses lugares. Venho do sítio onde estão aqueles – e são milhões – que vos procuram quando a doença inquieta, quando o bem estar é perturbado por alguma anomalia física ou psíquica.
Nem sei como me chamo. Neste tempo de especialização, já fui tratado por doente, por paciente, por pessoa com doença, por utente dos serviços de Saúde. E digo bem, serviços de Saúde, porque venho desse lugar anónimo, habitado por multidões de gente sem rosto, cujo nome só é dito quando se encontra doente, e logo transformado em número, – número do balcão de atendimento, número de utente, número de segurança social – quando tem necessidade de cuidados médicos sem se preocupar que se trate de Saúde Pública ou de Saúde Privada.
Venho de um tempo e de um lugar antigo. De uma vila longínqua a quem foi dado o estatuto de cidade quando já perdera metade da população, já ficara sem a ferrovia e, nessa leva, também perdera o seu hospital, gerido por freiras carmelitas. A minha parteira foi a irmã Florinda. Não podia saber nessa idade inicial e fundadora do meu percurso de vida, que cerca de 40 anos depois, faria seminários destinados às primeiras licenciaturas em enfermagem, onde o grau de exigência e saber anunciava o futuro que, é hoje, o nosso presente.
As primeiras idas ao médico foram iniciadas nas antigas Casas do Povo e o meu primeiro médico, o Dr. Fialho, não era pediatra mas sim o médico das crianças. Venho do lugar onde, na minha meninice, ir a uma farmácia era uma viagem mágica onde se conheciam os aparatos laboratoriais. Eram poucos os medicamentos, como hoje os conhecemos, embalados, com rótulos, com indicações e contraindicações. A farmácia era o espaço do fantástico mundo que deixava adivinhar a ciência, com coleções de pipetas, de buretas, de provetas, de balanças afinadíssimas, com enormes frascos de compostos ou de elementos químicos com que se fabricava a prescrição médica.
Na minha adolescência vi morrer outro hospital. O de Beja. Este morreu de morte natural quando foi construído o novo hospital José Joaquim Fernandes. Estive na sua inauguração e lembro-me das críticas da altura. Era uma unidade hospitalar excessiva, gigante, para as necessidades da população. Passaram mais de cinquenta anos sobre esse dia de festa e, hoje, uma das críticas mais vulgares é o hospital não ser suficiente, nem tão pouco a quantidade de profissionais que nele trabalham.
Testemunhei a criação do Serviço Nacional de Saúde, a ideia de António Arnaut transformada em realidade, que a vida, mais tarde, me deu o privilégio de conhecer e de sermos amigos. Foi no Alentejo que começou a experiência piloto e ainda recordo o jovem Francisco George e outros jovens médicos que assumiram como seu, esse poderoso sonho que comandava as vidas daqueles profissionais, solidários, inteiros, criando cuidados de Saúde, esperança de vida, afastando para mais longe as lágrimas, os lutos e os cemitérios.
Possivelmente, foi esta história de vida que motivou o honroso convite que Sua Excelência, o senhor Ministro da Saúde me dirigiu, para estar aqui, numa tribuna a que não pertenço, e ser uma voz da multidão anónima de doentes, de pacientes, de utentes que reconhecem a Saúde como a principal prioridade das suas vidas.
Como sublinha Edgar Morin, todos nós somos, na dimensão ontológica mais profunda, a contradição entre o desejo e a finalidade. Desejamos ter nascido para a imortalidade e, ao mesmo tempo, sabemos que em dia e hora que desconhecemos, todos iremos morrer. Para os mais necessitados de metafísica e do transcendente, como reconhece Jankelévitch, ambiciona-se pelo momento em que a nossa imortalidade se confunde com a Eternidade.
Na euforia cientificista dos finais do séc. XIX, impulsionada pela revolução pasteureana e a fabulosa descoberta da microbiologia, a medicina conseguiu impor, o primado da ciência sob a fé, as crenças e as superstições, sob a batuta de homens geniais como Ricardo Jorge e Bissaya Barreto, Francisco Rocha e Sobral Cid, ou Francisco Gentil e Egas Moniz, e que teve em Miguel Bombarda, para além de brilhante médico, o grande apóstolo de que a Medicina e os saberes hipocráticos, fundados na racionalidade, na experimentação, no cuidado assistencial, seriam o advento de uma nova Idade. Aquela Idade, onde se acreditava que a barreira à força avassaladora da Morte teria a sua maior eficácia. E nós, gerações do séc. XX, acreditámos.
Pierre Guillaume, um dos pensadores de renome mundial, que tem trabalhado os temas da transferência da fé, no quadro da secularização do Estado, di-lo com convicção. O medicalismo que se expandiu, e democratizou, ao longo do último século, provocou uma transumância de símbolos e de reconhecimento identitário que reconverteu os territórios do antigo Sagrado, através da investidura sacral dos profissionais de Saúde. Santos laicos, é certo, mas imbuídos de uma luminosidade de esperança e de crença salvífica. Só assim se compreende o culto religioso a Sousa Martins tal como a multiplicação de bustos e de outra estatuária pública aos grandes detentores do conhecimento e da experiência médica.
No próprio linguajar comum existe evidência desta transfiguração do Sagrado. Eu próprio, ao saber das condições em que fui salvo de uma morte súbita por enfarte agudo do miocárdio, na Feira do Livro de Lisboa, graças à pronta intervenção de três médicos que andavam por ali a comprar livros, não fui capaz, embora não os conhecesse, de evitar a terminologia religiosa. As primeiras palavras que consegui escrever após o acidente cardíaco, foram dirigidas aos meus Anjos da Guarda.
Se o séc. XX viu nascer e confirmar o império avassalador dos serviços de Saúde contra a Morte e apresenta no currículo números impressionantes para legitimar esse poder, como o aumento substancial da esperança média de vida, a massificação das vacinas, a redução da mortalidade neonatal, entre muitas vitórias, o séc. XXI exige mais de todos nós. Entendemos que, afinal, a Ciência não é a verdade absoluta. Como refere Karl Popper, cada problema resolvido é uma pergunta sobre um novo problema, integrado uma cadeia epistémica infinita.
Veja-se o meu caso.
A morte súbita, por motivos que bem conhecem, está no topo das estatísticas de mortalidade. A maioria dos acidentes acontece longe do controlo médico e quando a vítima chega ao hospital, ou centro de saúde, apenas resta confirmar o óbito. Graças aos avanços no domínio das doenças cardiovasculares, hoje é possível salvar muitos doentes se estiver construída uma rede informal de cidadãos que saibam fazer as manobras de reanimação, que conheçam os protocolos simples fornecidos pelo 112 e se houver desfibrilhadores por perto.
O meu caso, devido ao lugar onde aconteceu e à visibilidade que lhe foi entregue, e diga-se, por causa do enorme susto que provocou em muita gente, fez com que este ano, antes da próxima Feira do Livro que começa nos finais de Maio, a entidade organizadora da Feira, tenha assegurado formação aos colaboradores para a reanimação e aplicação das medidas protocolares de apoio de urgência medica. E é do senso comum que este tipo de iniciativas devem espalhar-se por empresas, instituições públicas e privadas, associações humanitárias e de voluntariado.
Se é certo que a medicina preventiva contribui decisivamente para a retração das doenças vasculares, estes pequenos gestos que têm na multidão de onde venho, os seus principais instrumentos de ação, casa de forma indelével a ideia de Saúde para todos com outra bem mais envolvente, que é de todos pela Saúde.
Minhas senhoras e meus senhores
Termino como comecei. Tive o privilégio de ser testemunha e ator de um tempo que se abriu à Vida, que está a viver um dos mais importantes momentos das Civilizações e Culturas. O tempo da Saúde para todos.
A velha farmácia da minha terra já não tem buretas, nem pipetas, nem balanças. É uma formidável montra de medicamentos cientificamente rigorosos e que nos atende quando lhe estendemos o telemóvel, pois a receita em papel morreu. O hospital de Santa Marta, onde o professor doutor José Fragata e a sua equipa me recompuseram o coração, está entre a elite dos profissionais de saúde que se dedicam à cirurgia torácica. A eletrocardiograma, o RX, a RM ou a ecografia deixaram de ser um acontecimento, mas instrumentos vulgares para a compreensão do corpo com a profundidade desejada. As análises clínicas são rotinas e os Serviços de Saúde abrem-nos as portas com a determinação dos sábios.
Os antigos caminhos, deram lugares aos novos caminhos que, agora, trilhamos, e sabemos que outros se abrem para serem andados. A Saúde é esse rio infinito que as nossas mãos não conseguem interromper.
É certo que falta muita coisa. Expandem-se as necessidades assim como se expandem as nossas expetativas. Com contradições profundas, e por vezes, injustas. E porque as políticas de saúde não são imunes à propaganda, o cancro corruptor da utopia democrática, por vezes, a grande multidão anónima sente-se desiludida, revoltada, incomodada porque a grandes profecias enunciadas por Miguel Bombarda e os seus seguidores, ainda não estão cumpridas. Pode-se, até, falar de profecias mais recentes, agora escorreitamente designadas por medidas.
Em 2007 foi encenado e divulgado o início da construção do Hospital de Todos os Santos. Os velhos hospitais de Lisboa sairiam de antigos conventos para serem acolhidos por esta mega e moderna estrutura. Veio a troyka e a austeridade e a obra não passou do lançamento da primeira pedra. Em 2016, virada a página da austeridade, outro governante anunciou pomposamente que até 2022, não seria apenas o Hospital de Todos os Santos, mas também outro hospital em Évora e mais outro no Seixal. Estamos a caminho de 2024 e nem sinal existe sobre estas tão propaladas medidas e, em Santa Marta, tal como noutros hospitais conventuais, a medicina que cuida da saúde para todos trabalha, salva vidas, em condições materiais que só podem ser possíveis do território dos milagres. Milagres laicos, é certo, que multiplicam vidas como se multiplicassem pães.
Por isso, senhor Ministro, que lhe peça que desbaste as ervas daninhas da propaganda, e sobre o seu restolho, faça surgir os tão prometidos hospitais para que a História e os serviços de saúde guardem de V. Exa a memória grata de que todos nos orgulharemos e, seguramente, aplaudiremos.
Para terminar, desejo sublinhar um profundo sentimento de gratidão por todos quantos construíram este caminho. Quer na Saúde privada, quer no Serviço Nacional de Saúde. Quero dar testemunho do apreço pela competência, pelo profissionalismo, e sobretudo pela humanidade com que médicos, enfermeiros, técnicos, pessoal auxiliar cumprem as suas vocações. Apesar da grande revolução técnico-científica, são os homens e as mulheres que constituem os Serviços de Saúde, a verdadeira exemplaridade cívica e profissional que nos ajuda nos piores momentos das nossas vidas. São zeladores, são cuidadores, são a palavra, o cumprimento, o sorriso, a serenidade, com que nos interrompem as lágrimas ou a ansiedade, a dor e a solidão.
Desejo-vos muitas felicidades. São os herdeiros de uma obra honrada e digna ao serviço das populações. Transportam convosco, por mais ruim que seja o tempo, a luz da esperança e a sabedoria dos alquimistas. E bem sabemos que tudo quanto fazem tem, nas finalidades últimas, o ideal de ‘Saúde para todos’ que este dia convoca para ser celebrado.
Bem hajam!
Muito obrigado.