Autor: Carlos M. Costa Almeida, Ex-Director de Serviço de Cirurgia do HG-CHUC, Professor da Faculdade de Medicina de Coimbra.
Mais uma manifestação de rua pela Saúde em Coimbra e na Região Centro, defendendo a autonomia do Hospital dos Covões e a manutenção das suas funções como Hospital Geral Central. Desta vez uma marcha da Praça da Canção até à Praça 8 de Maio, unindo as margens que alguns teimam que o Mondego separe em Coimbra. Uma marcha pelo Hospital construído na margem esquerda, que trouxe a esta cidade e à região uma capacidade e uma notoriedade em Saúde nunca tidas antes, enchendo ao mesmo tempo o coração dos seus utentes, que por ele se continuam a bater, pelos bons resultados e o humanismo no trato. O que fez com que a sua morte anunciada se venha arrastando tanto no tempo, tendo os executores contratados tanta dificuldade em inventar uma desculpa qualquer para o seu desaparecimento enquanto Hospital. Ou, então, dito de forma simples, porque faz uma falta fundamental à Saúde em Coimbra e na Região Centro.
Tantas manifestações populares, nas ruas (já é a quinta) e no Facebook, com uma página dedicada que vai com mais de 35.000 membros; uma petição pública à Assembleia da República com 4500 assinaturas (porque 4000 é o número mínimo para ser aceite, fossem necessárias mais e mais seriam), em apreciação pela Comissão Parlamentar de Saúde e posterior votação em plenário (como já houve duas outras anteriormente); declarações públicas, orais e por escrito, repetidas, das várias forças políticas na cidade, incluindo do partido no governo, bem como de Câmaras Municipais e Juntas de Freguesia, isoladas e em associação; interpelações à ministra da saúde sobre o tema por deputados de partidos da oposição, incluindo componentes da Comissão de Saúde. Tudo no mesmo sentido. Tudo em vão até agora.
Poder-se-á compreender um dia esta indiferença absoluta do ministério da saúde e do governo?! Porque não se trata duma cidade que quer ter mais um pavilhão gimnodesportivo e o governo não pode ceder a essas exigências!… Ou dum problema laboral numa empresa cuja responsabilidade é apenas da gerência… Trata-se dum Hospital Geral Central existente e totalmente equipado e funcionante desde 1973, com provas dadas e qualidade reconhecida, que tratou com eficiência milhares de doentes e formou milhares de profissionais! E que querem simplesmente desmantelar! Onde se tratou a primeira onda de Covid-19 em Coimbra… e agora se desactiva antes que a segunda chegue… Como se não fizesse falta, e pudesse ser substituído pelos vários hospitais privados, franchisings de várias marcas, entretanto construídos em Coimbra!
A par disto assiste-se ao outro Hospital Central em Coimbra, o Hospital da Universidade de Coimbra, onde se concentrou tudo e todos, completamente assoberbado, bloqueado no acesso rodoviário e no estacionamento, mas sobretudo no trabalho que tem e na quantidade de pessoas que por ele circulam, com a resposta cada vez mais difícil, com aumento enorme das listas de espera para consultas, exames, tratamentos médicos e cirurgias, apesar da exaustão de quem lá está e se esforça. Com o excesso acumulado de trabalho de rotina, sai, naturalmente, penalizado tudo o resto, a diferenciação e a investigação, que deveriam ser fulcrais num hospital universitário e de ensino pré e pós-graduado. E vai-se assistindo a uma debandada de profissionais, mostrando outros pouca apetência para os substituir, seja como formadores seja como formandos.
Quer dizer, duma fusão de dois Hospitais, feita sem qualquer necessidade ou indicação, e sem nenhum plano, resultou a destruição de um e a deterioração do funcionamento do outro, com afastamento de profissionais, de formandos e de doentes. E que levou a uma verdadeira crise no SNS hospitalar em Coimbra, com repercussão na Região Centro. Com manifestações populares por causa disso, exigindo o que tinham anteriormente a essa fusão. Isto é evidente para todos, menos, ao que parece, para os responsáveis pela gestão da saúde e pela situação criada. Que teimosamente insistem nela. E que acham que falar no passado não adianta… quando o penoso presente resulta de em apenas nove anos terem destruído a riqueza duma herança de quarenta e cinco!…
Se alguém pensa que a democracia consiste em votar de quatro em quatro anos, está enganado. Se acharem que de quatro em quatro anos se vota numa ditadura para esses anos, estão enganados. Quem governa tem de estar constantemente atento às necessidades das pessoas, aos seus anseios, às suas dificuldades, e tomar atempadamente as medidas necessárias. Com clareza e limpidez. Em democracia, se os políticos desprezarem o povo, o povo rapidamente se afastará deles. Como dizia Mário Soares, o povo tem direito à indignação. E é indignação o que em Coimbra se tem gritado alto e bom som, sobre uma fusão que desmantelou um Hospital público e colocou outro em dificuldades. Alguns políticos há muito que a ouviram, outros fazem que não a ouvem. Veremos até quando.
Essa indignação tem sido bem transmitida pelos meios de comunicação locais, jornais e rádios, que têm desempenhado o seu papel de informar, de modo empenhado e profissional, sobre o que se passa na Saúde hospitalar em Coimbra. Mas a que os meios de comunicação social nacional não querem dar relevo, e nem sequer noticiam, como se o que se passa nos Hospitais do SNS em Coimbra fosse algo que pouco afecta ou interessa o país. Ou foi o que lhes disseram. Claro que se fosse um médico acusado de qualquer coisa isso seria notícia em todos os noticiários durante um dia ou dois, pelo menos! Dizia Joseph Pulitzer, extraordinário jornalista americano falecido em 1911 e cujo nome foi dado a um prémio mundial de grande prestígio para o jornalismo de qualidade: “Com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta formará um público tão vil como ela mesma”. Esta profecia foi feita há mais de 110 anos… Felizmente que há jornalistas que lhe vão resistindo.