Autor: José M D Poças, Especialista em Medicina Interna e Infeciologia; Diretor do Serviço de Doenças Infeciosas do CHS de Setúbal
(“Arrependimento é um intervalo entre dois pecados”, Paul Eldrige, 1888-1982, escritor norte-americano)
Corria um certo domingo do ano de 2003 e eu ia entrar de urgência interna ao setor da Medicina, não adivinhando que me iria ter que deparar com uma situação clínica de todo invulgar. Dirigi-me, como é hábito, por volta das 9.00h da manhã, para levantar o telemóvel adstrito a essa função e para me inteirar do que de mais importante havia para tratar do ponto de vista clínico. Mal tinha acabado de colocar a minha mala no quarto reservado ao médico escalado e vestido a bata, quando fui logo alertado pela enfermeira responsável, nessa altura, por um dos quartos do Serviço de Neurologia, onde estava internado um doente proveniente do SU, entrado na madrugada do dia anterior. Este havia sido transferido com suspeita de uma encefalite, mas ficara com um quadro clínico caracterizado por febre e progressiva dificuldade respiratória que já não era corrigida com O2 administrado por cânula nasal a uma percentagem elevada.
Imediatamente me dirigi para esse quarto e verifiquei que na cama indicada se encontrava um doente em exaustão respiratória, quase peri-paragem cardiorrespiratória. Imediatamente o entubei oro-traquealmente e ventilei com ambu, após o que coloquei um cateter central na veia jugular interna direita, tendo solicitado de imediato análises de urgência e um Rx de Tórax. Reanimado e estabilizado o doente, havia que o transferir para uma Unidade de Cuidados Intensivos. Felizmente, havia uma vaga na da instituição, pelo que eu próprio, com a mesma enfermeira e uma auxiliar de ação médica, o acompanhei até lá, tendo aí chegado sem mais intercorrências. Ao fazer a passagem do caso clínico ao meu colega ali escalado, comentei, depois de ver a película do tórax, onde era evidente um padrão de pneumonia intersticial bilateral, que deveria tratar-se de mais um caso não previamente identificado como sendo portador de uma imunodeficiência adquirida complicada por uma pneumocistose oportunista, como imensas vezes constatei ao longo dos últimos 30 anos. Sugeri que se solicitassem as serologias virais e que se aguardassem os resultados das análises solicitadas, antes de avançar imediatamente com qualquer terapêutica empírica, já o doente estava conectado ao ventilador, com boas saturações periféricas de O2 e com situação hemodinâmica controlada.
Como nada de mais urgente havia para fazer nesse momento, e dado que estava permanentemente contactável através do telefone, dirigi-me ao bar para tomar um café, exclamando que voltaria daí a uns minutos para acompanhar a evolução daquele estranho caso e discutir o que seria melhor fazer, em função dos resultados analíticos pendentes Quando me preparava para me sentar numa das mesas disponíveis, vi um colega anestesiologista a acenar, dizendo-me de seguida para eu me sentar junto dele, embora estivesse acompanhado por alguém que eu desconhecia.
Sentei-me, e o meu colega fez a apresentação do seu acompanhante, acrescentando logo que ainda bem que me encontrava, pois até poderia ser que ajudasse a esclarecer o estranho caso do pai desse seu angustiado amigo, que o procurara minutos antes, pois sabia que o mesmo iria entrar de banco, depois de lhe ter ligado para o seu telemóvel. Dispus-me imediatamente a ajudar, caso isso estivesse efetivamente ao meu alcance, pedindo para este me explicar o que se passava afinal. Notoriamente ansioso, explicou, de rajada, que o seu pai tinha passado essa semana inteira a vir diariamente ao SU do hospital, estando cada vez pior e só na véspera tinha sido internado, mas ainda não tinha conseguido saber, ao certo, qual o diagnóstico, nem se ainda se encontraria no SU ou se já havia sido transferido para alguma enfermaria. Acrescentou, logo de seguida, que o mesmo tinha começado com uns sintomas que sugeriam uma simples conjuntivite, mas a que se seguiu um quadro febril, primeiro, e sintomatologia respiratória, depois. Concluiu, exclamando que o doente chamara insistentemente à atenção dos médicos que o iam observando dia após dia no setor da triagem do SU, para o facto das aves que tinha no galinheiro estarem todas a morrer, pelo que perguntava insistentemente se não poderia haver uma qualquer relação entre este facto e a sua situação clínica, cada vez mais precária, ao que lhes respondiam sempre que não, que fosse para casa descansado, pois as análises realizadas diariamente nada mostravam de preocupante. Ao perceber que se tratava do mesmo doente que eu próprio tinha acabado de reanimar e de transferir para a UCI, sem ainda ter provado sequer o café, exclamei de imediato: Esperem aqui um pouco que eu já venho. Percecionei tê-los deixado verdadeira e logicamente atónitos… Mas a verdade era que não havia tempo a perder. Haveria de poder explicar-lhes depois tal inusitada atitude, tal como o fiz volvidos alguns minutos.
Corri, ofegante, escada acima, e informei o meu colega António Messias o que ouvira do Jorge Cortez, e de que a minha suspeita era, agora, a de uma pneumonia viral consequente a uma possível gripe aviária, o que foi cimentado por ter sido informado que o teste rápido para o HIV requisitado, tinha revelado um resultado negativo, tal como posteriormente se veio a confirmar. O meu colega parecia incrédulo, mas eu acrescentei que acompanho diariamente, por interesse e por obrigação, tudo o que se passa no domínio das doenças emergentes, e que tinha tomado conhecimento que um veterinário holandês tinha falecido na semana anterior, por uma pneumonia consequente a uma infeção pela estirpe H7N7 do vírus influenza e cujo quadro clínico tinha-se iniciado precisamente por uma conjuntivite. Como não tivéssemos disponível nenhum tratamento antiviral específico e perante a extrema gravidade clínica, não havia melhor alternativa do que iniciar de imediato uma terapêutica off lable com Ribavirina (um medicamento antiviral de largo espectro, o único eficaz contra algumas infeções virais menos comuns, de tal maneira que se tornou reconhecidamente legítima a sua utilização em caso de ausência de outro tratamento farmacológico aprovado, como digo na aula sobre “antí-víricos” que anualmente ministro num conceituado curso de atualização em doenças infeciosas, desde há alguns anos). Não havia tempo para notificar, nem a Comissão de Ética, nem a de Farmácia e Terapêutica, ou tampouco o Infarmed, e como o doente não estava consciente para que lho explicasse, seria mais do que lógico presumir que, se se pudesse expressar, diria certamente, de imediato: “Doutor, dê-me o que entenda que tem hipótese para tratar e curar a minha doença”, como muitas vezes já ouvi a outros doentes, mas sem que, infelizmente, exista sempre essa possibilidade. Foi isso que expliquei à farmacêutica de serviço, no sentido de a sensibilizar a libertar algumas cápsulas que, na altura, estavam exclusivamente reservadas para o tratamento da Hepatite C, o que fez sem questionar, tal como depois pude comunicar ao seu filho, com a sua óbvia concordância.
No dia seguinte, fiz chegar produtos biológicos do doente para o centro nacional da gripe no INSA, dirigido por Helena Rebelo de Andrade, tendo combinado com a mesma, fazer-lhe chegar, logo que possível, produto biológico de uma das aves do galinheiro do doente, uma vez que ainda não havia, nessa altura, um laboratório nacional de investigação veterinária disponível (que só em 2015 viria a ser inaugurado em Oeiras!). Para isso, notifiquei o delegado de saúde de Palmela que me informou que iria articular depois com o seu congénere do setor veterinário dos serviços camarários, para satisfazer esta importante solicitação. Qual não foi o meu espanto, quando a família do doente me informou que nada tinha sido colhido para a referida análise molecular, conforme solicitei, mas que “alguém responsável” havia decidido que o melhor seria incendiar o referido galinheiro e queimar todos os animais (vivos ou mortos), como o fizeram sem adicionais explicações e sem a autorização necessária dos respetivos donos.
A infeção por uma estirpe de vírus da gripe aviária foi confirmada no INSA de Lisboa e reconfirmada por um laboratório de referência europeu sediado em Inglaterra, mas decidi não efetuar qualquer publicação científica, precisamente pela falta de confirmação do produto biológico de origem animal. O doente lá recuperou completamente, tendo ido a algumas consultas depois da alta hospitalar, completamente reabilitado, lamentando o que lhe haviam feito ao galinheiro que se situava numa quinta que lhe pertencia, dizendo-se eternamente agradecido à minha pessoa, ao que eu lhe respondi, como sempre faço em circunstâncias idênticas: Só fiz aquilo que é a minha estrita obrigação profissional. Ser médico de corpo inteiro, é isto mesmo.
A razão por que decidi escrever e publicar esta história clínica agora, como facilmente se depreenderá, tem a ver com a presente pandemia de infeção pela nova estirpe de coronavírus, sobre a qual entendo ser oportuno transmitir algumas mensagens, a primeira das quais é que esta não foi a primeira, nem será a última que irá afetar a humanidade e o nosso país.
Portugal, como é facilmente constatável, em certos aspetos, tem evoluído bastante, no sentido positivo, no que às respostas aos problemas de saúde diz respeito. Contudo, muitas ameaças se perfilam no futuro e alguns retrocessos são igualmente indesmentíveis. Em concreto, entendo ser oportuno transmitir resumidamente o seguinte:
A)- É extremamente perigoso e, mesmo, algo irresponsável, a adoção cega, com tudo o que isso pode implicar, em eventual cenário de crise mundial de saúde pública, não acautelar previamente reservas suficientes de medicamentos, de meios de proteção individual e de certo tipo de dispositivos e meios tecnológicos imprescindíveis que são para fazer adequadamente face a este tipo de problemas;
B)- A desarticulação sucessiva de camas hospitalares, a par da manutenção de hospitais públicos com instalações profundamente degradadas e insuficientemente equipados, torna extremamente difícil a implementação das respostas que se revelam necessárias e, mesmo, imprescindíveis;
C)- A renovação dos quadros de pessoal do Ministério da Saúde não foi acautelada, e existe um notório envelhecimento no setor médico, uma gritante falta de enfermeiros, de auxiliares de ação médica e de administrativos que dificulta sobremaneira as atividades assistenciais;
D)- Não se discutiu atempadamente o Plano Nacional de Emergência com as estruturas que seria importante ter envolvido desde o início, como a Ordem dos Médicos, com os respetivos colégios de especialidade, bem como as respetivas Sociedades Médicas, nem tampouco o mesmo é do domínio público, assistindo-se pela televisão à sua divulgação avulsa e a conta-gotas.
Muito mais haveria para comentar, mas entendo que há coisas que se devem dizer apenas num círculo mais fechado, pois não é adequado que se digam publicamente antes de o fazer a quem de direito. A história que contei, verídica e com o final feliz, encerra alguns ensinamentos que importaria ter em conta no presente. Como disse o político alemão, Emanuel Wertheimer, falecido em 1916, ou seja, no período em que o Mundo se confrontava com o terrífico cenário da I Guerra Mundial, a que seguiu uma das mais mortíferas pandemias que a Humanidade conheceu, a denominada Gripe Espanhola, que vitimou dez vezes mais pessoas do que aquele conflito bélico: “O arrependimento sincero é geralmente o resultado de uma oportunidade perdida”. Só espero que, no final desta crise, não tenhamos que concluir por algo idêntico.