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Responsabilidade médica

Autor: Paulo Costa Correia, Assistente Graduado Sénior de Cirurgia Geral (Unidade Local de Saúde-Guarda) // Prof. Convidado de Cirurgia da Faculdade das Ciências da Saúde da Universidade da Beira Interior

Resumo: O autor tece algumas considerações sobre responsabilidade médica cível em Hospitais Públicos/Privados, tendo por base um caso clinico: “Secção da Via Biliar Principal numa doente portadora de uma colecistite aguda e intervencionada de urgência durante uma colecistectomia laparoscópica”. Esta situação foi apresentada, pelo autor, no Curso de Pós-Graduação de Gestão e Direção em Saúde leccionado pela Universidade de Coimbra

1.    INTRODUÇÃO1

MIPT, 41 anos, sexo feminino, deu entrada no serviço de urgência do HSM 26.05.03, tendo-lhe sido feita clínica, laboratorialmente e ecograficamente o diagnóstico de colecistite aguda litiásica (ecografia: “vesícula biliar, contendo múltiplos ecos litiásicos e bílis espessa com espessamento da parietal”). Foi proposta para colecistectomia laparoscópica de urgência nesse mesmo dia.

Durante a colecistectomia, a equipa cirúrgica, apercebeu-se de uma lesão da VBP mesmo na confluência dos canais hepáticos. Convertida a cirurgia laparoscópica em cirurgia a céu aberto constatatou-se a referida lesão, tendo a equipa cirúrgica procedido a uma Hepaticojejunostomia em Y de Roux, após junção dos dois canais hepáticos deixando duas próteses perdidas, uma no canal hepático direito e outra no esquerdo. O canal colédoco tinha sido seccionado, com avulsão do mesmo a montante de uma laqueação, acontecendo o mesmo ao canal hepático comum, Os dois canais hepáticos foram encontrados saindo bílis pelos mesms.

A doente evoluiu favoravelmente no pós-operatório, ocorrendo uma pequena fístula biliar resolvida com terapêutica médica conservadora em cerca de 5 dias. A doente teve alta hospitalar assintomática e com a complicação resolvida.

Cerca de dois meses após alta hospitalar, é apresentada queixa-crime no Ministério Público contra o cirurgião principal, por má prática e negligência médica.

O regime da responsabilidade civil em hospitais públicos ou em clínicas e/ou consultórios privados é diverso. Os tribunais administrativos são competentes para julgar os litígios relativos a hospitais públicos e o diploma aplicável é a Lei n.º 67/2007, de 31/12, que aprovou o novo Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas.

Tanto nas decisões dos Tribunais, como na esmagadora maioria da doutrina portuguesa entendia-se, pacificamente, que a relação que se estabelece entre o hospital público e o utente particular (que lá se dirige, seja para ser sujeito a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento médico específico pré-programado, seja para realizar uma simples visita ambulatória, v.g. uma consulta médica), constitui uma relação de serviço público. Assume-se que os respetivos atos médicos, são atos de gestão pública, uma vez que são praticados no exercício de poderes públicos, com vista à realização do interesse público2.

É maioritária a posição que perfilha o entendimento de que a prestação de serviços médicos nos hospitais públicos não se enquadra no contrato de prestação de serviços previsto no Código Civil, no art.º1154. e seguintes. Assume-se, uma simples prestação de serviço público, em que como regra, o médico é desconhecedor da pessoa do doente e este, da pessoa do médico, surgido acidentalmente, ignorando as suas qualidades técnicas, de quem espera o melhor desempenho na aplicação dos melhores e mais oportunos conhecimentos da sua ciência e que não recebe do beneficiário ordens ou instruções, gozando de uma quase total ou, total independência.

Assim sendo, tendo a vinculação do médico ao hospital público a natureza de uma relação de serviço público, a responsabilidade em que incorre é de carácter extracontratual. Trata-se de uma responsabilidade de natureza extracontratual, em que a obrigação de indemnizar nasce da violação de uma disposição legal ou de um direito absoluto. Esta é a concepção que melhor se adapta à essência dos serviços públicos ou de interesse público, em que qualquer pessoa, indistintamente, pode utilizá-los, nas condições gerais e impessoais dos respetivos estatutos e regulamentos, sem possibilidade da sua recusa ou da negociação de cláusulas particulares3.

 

2.   RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA EXTRACONTRATUAL: MÁ PRÁTICA MÉDICA

A partir de 30/01/2008 – data em que o diploma entrou em vigor, o regime de responsabilidade aplicável a este tipo de relações, que se estabelecem entre os hospitais públicos integrados no SNS e os respectivos utentes é, necessariamente, o da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, relativa ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas. Desta forma, o hospital público responde (extracontratualmente) − e “exclusivamente” − pelos danos causados pelos médicos com “culpa leve” (cfr. art. 7.º, n.º 1 do regime).

Por outro lado, no âmbito de uma actuação médica praticada em clínica privada, os tribunais judiciais são os competentes e vigoram as normas do Código Civil, incluindo as regras sobre o contrato de prestação de serviços (arts. 1154º seguintes).

Tendo em consideração o regime geral aplicável à responsabilidade civil médica, podemos inferir que relativamente ao ato médico, ilícito, perpetrado pelo profissional de saúde existem dois tipos de situações: (a) a má prática médica ou erro técnico ou (b) a violação dos direitos dos pacientes, nomeadamente à sua liberdade, autonomia e autodeterminação nos cuidados de saúde que lhe são prestados, por violação do consentimento informado6.

A responsabilidade por má prática médica está frequentemente associada ao erro médico e irá consubstanciar-se numa acção ou omissão que viola as “leges artis”, provocando um resultado danoso no paciente. Esta responsabilidade encontra-se, muitas vezes, no campo da negligência, embora possam tratar-se de situações de falta de perícia ou de prudência. Por outro lado, ainda que se verifique um erro médico, nem sempre haverá imputação de responsabilidade civil, pois para tal devem estar verificados todos os seus pressupostos. No âmbito da responsabilidade civil extracontratual é indubitável que sejam  preenchidos os pressupostos legais previstos no artigo 483.º do Código Civil. Os cinco requisitos são: facto voluntário do agente, culpa7, ilicitude, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano8. No que concerne ao facto praticado este tem que ser controlável pela vontade do seu agente (voluntário). Tal voluntariedade não invalida a responsabilidade do agente pelas suas omissões. O médico que, consciente do dever de acompanhar o paciente no pós- operatório de uma cirurgia complexa abandona as imediações sem deixar qualquer instrução aos restantes auxiliares médicos, pratica um facto que, por omissão, poderá vir a ser valorado no âmbito da responsabilidade civil9. O segundo pressuposto indicado, a culpa, é um elemento essencial para que se consubstancie a responsabilidade civil médica. O nosso ordenamento jurídico não acolheu a teoria do risco profissional, pelo que a inexistência de culpa dá lugar, necessariamente, à inexistência da responsabilidade do médico. A culpa seja por dolo ou negligência, exprime o juízo reprovável da conduta do profissional que não só podia actuar de forma diversa como o deveria ter feito. Na responsabilidade civil médica não se pretende valorar o erro per si, nem mesmo a seriedade do dano provocado. O que está em causa é a existência, ou não, de culpa do agente, aquando do diagnóstico ou tratamento. Pretende-se, assim, aferir se o médico tinha à sua disposição outros meios, considerados indicados, para chegar a um diagnóstico diferente ou terapêuticas mais seguras ou adequadas, em alternativa àquelas que utilizou. É fundamental compreender o médico como um agente humano, e por isso falível, que trabalha, numa base diária, com uma ciência que não é exata10.

Apenas será aceitável responsabilizá-lo nos casos em que se verifique uma falta grave e inadmissível. Só existirá responsabilidade da sua parte quando é cometida uma “falta técnica, por ação ou omissão dos deveres de cuidado, conformes aos dados adquiridos da ciência, implicando o uso de meios humanos ou técnicos necessários à obtenção do melhor tratamento”11. Já a ilicitude consubstancia, de forma genérica, uma contrariedade ao direito, um juízo de desvalor que se concretiza na violação do direito de um terceiro ou de normativo  legal que proteja interesses que lhe sejam alheios. O dano consiste no prejuízo que se provoca na esfera de um terceiro. O dano patrimonial é sempre ressarcível e encontram-se aqui enquadrados os danos emergentes e os lucros cessantes. Os danos não patrimoniais, como são os morais, tantas vezes reclamados em pleito de responsabilidade civil médica, serão apenas compensados, por não poderem ser avaliados. Por fim, o nexo de causalidade implica que o facto ilícito e culposo praticado seja condição necessária para o resultado obtido – o dano. Quando se encontram reunidos os pressupostos enunciados temos fundamentada uma situação de responsabilidade civil médica. O médico possui autonomia para determinar qual a melhor terapêutica e quais os procedimentos a que o paciente deve ser submetido pois possui a preparação técnica para avaliar a situação clínica do paciente e decidir pelas regras da arte, a evolução da ciência e os meios disponíveis de tratamento, qual a metodologia a seguir12. Certamente que poder-se-á fazer um juízo a posteriori e verificar, após o tratamento, que este não apresentou o resultado expectável. Contudo, o momento para a averiguar a existência de negligência do médico é o momento da intervenção. É esse o momento de referência que deverá ser utilizado para se verificar se foram ou não cumpridas as “leges artis”13. A culpa do agente poderá ter lugar de duas formas, seja a título de dolo, seja a título da “mera culpa”, designada também por negligência. O critério para apreciação da culpa estabelecido na lei será o do homem médio, representado pela “diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso”, nos termos do artigo 487.º, n.º 2 do Código Civil. A referência às circunstâncias de cada caso concreto não deve ser descurada. A diligência exigida a um profissional qualificado nos atos relacionados com a sua actividade é superior àquela que é exigida a qualquer pessoa não qualificada que por qualquer circunstância se encontre na mesma situação, por exemplo, um transeunte que preste primeiros socorros a alguém na rua. O médico deverá cumprir com as técnicas e utilizar os meios que a ciência indica como mais indicados para o tratamento da patologia que esteja em causa, designadas como “leges artis” ou regras da arte, com a diligência específica de um médico médio, tendo em conta a sua posição específica como especialista, ou a falta dela, e ainda os meios que estão ao seu alcance naquele momento e naquele lugar.

O médico médio será aquele que se rege pelo mesmo padrão de conduta pelo qual se rege o médico sensato, razoável e competente14. A responsabilidade originada na prática de um ato médico é normalmente tratada no âmbito da negligência deste profissional e não do dolo, embora não se exclua a hipótese de tal poder vir a acontecer. Actuará com negligência o médico que não é zeloso, que não utiliza a globalidade dos seus conhecimentos e capacidade técnica e científica para prestar os cuidados ao paciente, o que descura as regras básicas exigidas pela praxis. No que tange à definição do conteúdo material das “leges artis”, realce-se o contributo da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina (vigente em Portugal desde 1.12.2001) que veio dispor no seu artigo 4º que “Qualquer intervenção na área da saúde, incluindo a investigação, deve ser efetuada na observância das normas e obrigações profissionais, bem como as regras de conduta aplicáveis ao caso concreto”. Daqui decorre o reforço do valor jurídico dos “Protocolos”, “Guidelines” e das “Reuniões de Consenso”, os quais consubstanciam documentos criados pelos médicos que contribuem directamente para a definição das regras de conduta a que se deverá subordinar a sua actividade. Deste modo, tais documentos colhem uma aplicação indirecta. A respectiva violação faz presumir uma violação das “leges artis”17.

 

3.   DA RESPONSABILIDADE POR MÁ PRÁTICA MÉDICA À VIOLAÇÃO DO CONSENTIMENTO INFORMADO

Na vertente do consentimento informado, o médico tem para com o paciente o dever de informar: sobre a doença, o procedimento terapêutico que pretende optar, outros procedimentos praticáveis, quais os seus riscos, potenciais efeitos secundários, taxas de sucesso do tratamento adoptado e esclarecer o melhor que conseguir acerca das questões que possam sobrevir. O paciente, no âmbito da sua autonomia terá o direito de manter o seu consentimento, levantá-lo, ou exigir uma segunda opinião.

A extensão concreta do dever de informar deve ser analisada casuisticamente, sendo certo, que não obriga ao médico a uma informação absoluta, o que seria além de manifestamente complexo para o profissional, também contraproducente para o paciente, que sem a preparação técnica específica não conseguirá tomar uma posição. Por outro lado, o excesso de informação levará necessariamente à desinformação. É recomendável o uso de uma linguagem comum na relação com o paciente de modo a que este consiga compreender o que lhe é exposto.

Historicamente, surgiram primeiro as acções de responsabilidade por má prática médica. No entanto, no último século começou-se a reconhecer ao paciente o seu direito à autodeterminação nos cuidados de saúde em oposição ao paternalismo Hipocrático.

O dever de prestação de informação e esclarecimento também tem relevância penal, encontrando-se tipificado no artigo 156.º do Código Penal – o crime por intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos realizados sem o consentimento do paciente, para cuja eficácia o artigo 157.º do mesmo diploma estabelece o dever de esclarecimento por parte do médico ao paciente “sobre o diagnóstico e a índole, alcance, envergadura e possíveis consequências da intervenção ou do tratamento” excepcionando-se apenas as “circunstâncias que, a serem conhecidas pelo paciente, poriam em perigo a sua vida ou seriam susceptíveis de lhe causar grave dano à saúde, física ou psíquica”.

Por outro lado, poderá ocorrer situações em que o paciente se encontre inconsciente ou incapaz de dar o seu consentimento. Perante a necessidade de uma resposta rápida e imediata por parte do médico, sob pena de risco grave para a vida ou saúde do paciente, foi desenvolvida a tese do consentimento presumido, prevista na lei penal, no artigo 39.º, n.º 2 do Código Penal, bem como na lei civil, no artigo 340.º, n.º 3 do Código Civil. Trata-se de uma suposição, um juízo “ex ante”, daquilo que o doente quereria se soubesse e pudesse no momento exprimir-se quanto ao procedimento efetuado, antes da intervenção. Uma vez que é necessário recorrer a um critério objectivo  para efectuar tal juízo, a jurisprudência e a doutrina entendem aplicar o critério do “bonus pater famílias” (conceito jurídico do homem médio), colocado na posição do paciente e com os especiais conhecimentos que este possui18.

A tese do consentimento hipotético, acolhida pela jurisprudência, pensada para os casos em que há necessidade de intervenção imediata para salvaguardar a vida ou a saúde do paciente (como no caso clínico), mas em que o médico se depara com uma situação em que não consegue obter o seu consentimento, por estar inconsciente, e para evitar uma segunda intervenção, que as “leges artis” e a ética médica desaconselham, este atua como se o consentimento tivesse sido prestado19. São pressupostos da existência deste consentimento: “que tenha sido fornecida ao paciente um mínimo de informação; que haja a fundada presunção de que o paciente não teria recusado a intervenção se tivesse sido devidamente informado; que a intervenção fosse, 1) medicamente indicada, 2) conduzisse a uma melhoria da saúde do paciente, 3) visasse afastar um perigo grave; e que a recusa do paciente não fosse objectivamente irrazoável, de acordo com o critério do paciente concreto20.

À semelhança da responsabilidade gerada por má prática médica também a omissão de prestação da informação e violação do consentimento informado necessitam que se verifiquem os restantes pressupostos da responsabilidade (voluntariedade, ilicitude dessa acção ou omissão, o dano, a culpa, e o nexo de causalidade).

 

4.   APLICAÇÃO DO CONSENTIMENTO INFORMADO COM RESPEITO PELA ÉTICA

 Uma das razões fundamentais para a existência de consentimento informado é o respeito pela pessoa. É um dado adquirido que cada um de nós é detentor de um conjunto de princípios e características que o torna um ser único, cuja dignidade passa por poder assumir a sua individualidade. A individualidade do ser humano está associada ao conceito de autonomia, que neste âmbito não pode ser dissociada da capacidade de escolha e autodeterminação. Uma vez reconhecido o direito à autonomia, entendida como a capacidade de determinar eticamente a sua forma de vida, seria uma violação ética inaceitável condicionar a sua liberdade de escolha, induzindo escolhas ou recusando a sua participação ativa na tomada de decisões que podem afectar o seu futuro.

Todo o doente objecto de uma determinada atitude terapêutica é detentor de um património de relações pessoais, sociais, familiares e institucionais que devem ser consideradas na tomada de decisão. Resulta que o fator tempo tem um papel determinante na tomada de decisão por parte do doente. A decisão deve, sempre que possível, ser objeto de consenso dentro do meio em que o doente se insere. Deve criar-se a oportunidade para que o doente informe os que lhe são importantes.

Cumpridos estes requisitos, o consentimento informado transforma-se não só num meio de promoção da participação dos doentes no seu próprio tratamento, mas também num instrumento de promoção de uma nova forma de relação médico-doente, na qual o respeito pela autonomia não pode, em caso algum, significar que um médico está obrigado a aplicar um tratamento que considere inadequado. Com efeito, apesar da decisão do doente ser respeitada esta não pode ser vinculativa.

Um elemento importante neste processo de avaliação é definir a liberdade do doente. Esta liberdade não deve ser incompatível com a possibilidade de o médico usar argumentos que favoreçam uma escolha em detrimento de outra.

As recomendações médicas, desde que não explanadas de forma coerciva, não violam os requisitos do consentimento médico e, pelo contrário, reafirmam uma prática médica de qualidade21.

O consentimento baseia-se no fornecimento e partilha de informação e na sua interpretação pelo profissional de saúde, com o imperativo ético de respeitar a verdade.

Na obtenção do consentimento informado a comunicação tem um papel central, seja a comunicação entre o doente e o médico, seja a comunicação entre os elementos que compõem a equipa médica responsável pelo tratamento de um determinado doente, seja a comunicação com a família do doente, quando tal for apropriado. O facto de o processo assentar numa boa comunicação faz do consentimento um procedimento que se pode modificar e evoluir ao longo do tratamento.

As limitações que se colocam a este processo têm origem no “ruído” que se pode estabelecer na comunicação. Este obstáculo pode ter origem na falta de tempo para discutir a doença com o doente, que se pode verificar com facilidade face à pressão da produtividade nas estruturas de saúde, na relação de autoridade que se pode estabelecer entre médico e doente, face a contextos sociais que sobrevalorizam o papel dos médicos na sociedade e que podem transferir-se para a relação clínica, no insuficiente desenvolvimento da capacidade de comunicação ao longo do processo de formação dos médicos, na existência de barreiras linguísticas entre médicos e pacientes e na existência de situações de stress que dificultam a comunicação, e que podem estar presentes de ambos os lados. A existência de condições para uma comunicação correta deve ser preocupação das estruturas de saúde, que devem desenvolver planos para uma melhoria constante.

 

5. CONCLUSÃO

No âmbito da responsabilidade civil médica, tendo a vinculação do médico ao hospital público a natureza de uma relação de serviço público, determina uma responsabilidade de carácter extracontratual. A responsabilidade civil médica poderá associar-se a dois tipos de situações: a má prática médica ou a violação dos direitos dos pacientes.22 A imputação de responsabilidade civil médica implica a verificação de cinco pressupostos fundamentais: facto voluntário do agente, culpa, ilicitude, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano. No caso descrito não foi interposto um processo civil que dependeria sempre da iniciativa expressa da lesada – é ao lesado que incumbe provar a culpa, provar que o médico não respeitou as “leges artis”.

Neste caso em concreto, a doente recorreu ao Direito Penal por interposição de um processo-crime. É importante referir que o Direito Penal é um ramo do direito de intervenção subsidiária, de última ratio – só intervém quando os bens em causa não puderem ser suficientemente tutelados por outro ramo do direito (como o Direito Civil). Do ponto de vista do Direito Penal23, mesmo quando o médico comete um erro que provoca uma ofensa ao doente, tal não significa que o médico venha a ser criminalmente responsabilizado, uma vez que o erro médico não é sinónimo de negligência médica. Só os erros médicos decorrentes da violação das regras normais de actuação poderão fundamentar a responsabilidade do médico a título de negligência. Por outro lado, nem todos os comportamentos que violam as regras normais de actuação e que causam uma ofensa ao paciente serão punidos – pode actuar, no caso concreto, uma causa de exclusão da ilicitude ou uma causa de exclusão da culpa, aspectos que absolveram o médico no caso clínico descrito.

Neste caso, o médico agiu segundo a “leges artis ” pois agiu a luz dos conhecimentos actuais, dominando a técnica cirúrgica, conforme o demonstrou na justiça exibindo certificados de cursos Nacionais e Estrangeiros, conforme tem experiência com a mesma.

Agradecimentos: O autor agradece aos colegas do Curso de Gestão e Direcção em Saúde leccionado na Universidade de Coimbra, Dr.ª Marília Rodrigues e Paula Caetano, pela colaboração dada.

 

Referências

  1. Caso Clínico Publicado na Revista de Saúde Amato Lusitano – 1ª Trimestre de 2004 ano VIII –“Iatrogenia da Via Biliar Principal na Colecistectomia Laparoscópica” da autoria de Paulo Costa Correia.
  2. , neste sentido, nomeadamente, FREITAS DO AMARAL (in “Natureza da Responsabilidade Civil por Atos Médicos. Praticados em Estabelecimentos Públicos de Saúde”, in Direito da Saúde e da Bioética, Lisboa, 1991, pp. 121 e ss).
  3. Vaz Serra, Responsabilidade Civil do Estado – BMJ, n.º 85, 476.
  4. Presume-se culpa do devedor (art. 799/1).
  5. 20 anos na responsabilidade contratual (art. 309) e 3 anos (regra) na delitual (art. 498).
  6. PEREIRA, André Gonçalo Dias. Responsabilidade médica e consentimento informado. Ónus da prova e nexo de causalidade. Centro de Formação Jurídica e Judiciária, 2010.
  7. Nos termos gerais a culpa trata-se de um juízo de censura pela ordem jurídica sobre o comportamento do agente que será considerado reprovável, com base no agente conhecer ou não poder desconhecer o desvalor da sua conduta e na sua capacidade de orientar o seu comportamento com base nesse juízo, tratando-se da capacidade “de entender ou querer” referida no artigo 488.º, n.º 1 do C.C.
  8. Deve ser analisada segundo critérios jurídicos e não puramente naturalísticos.
  9. Ac. do Tribunal da RL de 09/03/2010.
  10. João ÁLVARO DIAS -Revista Portuguesa do Dano Corporal, Ano IV, no 5, págs. 21 e 23.
  11. do STJ, de 4/3/2008, (Processo nº 08A183).
  12. RAPOSO, Vera Lúcia, op. cit., pp. 17.
  13. Ibidem.
  14. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 1 de outubro de 2012, processo n.º 1585/06.3TCSNT.L1-1, Relator Rui Vouga.
  15. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.9.2007, Alves Velho, CJ 2007 – III, pp.54-57.
  16. ANDRÉ DIAS PEREIRA, Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, 2015, p. 712.
  17. ANDRÉ GONÇALVES DIAS PEREIRA, Lex Medicinae, Ano 4, Nº 7, Jan- Jun (2007), p. 59.
  18. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Fevereiro de 2015, processo n.º 1263/06.3TVPRT.P1.S1, Relator Maria Clara Sottomayor.
  19. Ibidem.
  20. PEREIRA, André Gonçalo Dias – Responsabilidade civil dos médicos, Coimbra (2005), p. 485.
  21. Consentimento Informado – Relatório Final – Entidade Reguladora da Saúde, Maio de 2009, p.p. 4-7.
  22. PEREIRA, André Gonçalo Dias. Responsabilidade médica e consentimento informado. Ónus da prova e nexo de causalidade. Centro de Formação Jurídica e Judiciária, 2010.
  23. SÓNIA FIDALGO, Responsabilidade Penal Médica por Negligência. Gestão Hospitalar (2019).