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Reconciliação da medicação – temos feito o possível?

Autora: Carla Matos, médica interna de Formação Especifica em Medicina Geral e Familiar (USF Ramalde – Aces Porto Ocidental)

 

A abordagem abrangente e holística do doente pressupõe a sua avaliação em múltiplas áreas. A avaliação da medicação que lhe foi prescrita deve reger-se pelo mesmo princípio. O envelhecimento da população portuguesa fez aumentar a coexistência de patologias e co morbilidades, e a lista de medicamentos que o doente nos traz é frequentemente extensa, sendo estes administrados em horários díspares, o que conduz ao erro e à falta de adesão. Devemos também ter em conta que o doente que avaliamos na consulta não recorre apenas ao seu médico para obter alívio para as suas maleitas: recorre a outros médicos, ao enfermeiro, ao farmacêutico, aos seus amigos e conhecidos, e até aos anúncios de televisão. Encontra um sem número de formulações de venda livre nas para-farmácias, ervanárias, supermercados e on-line, de acesso sem intermediação por um profissional de saúde, nem regulação pelo Infarmed. Episódios de recurso ao Serviço de Urgência, de internamentos ou de cirurgias electivas podem acarretar alterações na medicação, de curta duração ou crónica, que causam ainda mais entropia. Muitas vezes a capacidade cognitiva do doente, a sua idade, ou a ansiedade associada à sua situação clínica ou ao ato médico, impedem que o doente compreenda cabalmente as modificações que foram introduzidas na lista dos seus medicamentos. Segundo a DGS, “10 a 70% das histórias medicamentosas contêm pelo menos um erro e até 1/3 desses erros têm o potencial de causar dano ao doente”.1

A Direção Geral da Saúde (DGS) define reconciliação da medicação como o processo de manter atualizada a lista da medicação de cada doente, com o objectivo de evitar discrepâncias entre a sua medicação habitual e a medicação instituída em cada momento de transição de cuidados, nomeadamente “omissões, duplicações ou doses inadequadas, promovendo a adesão à medicação e contribuindo para a prevenção de incidentes relacionados com a medicação”.1 Assim, a reconciliação da medicação, regida pela Norma 018/2016 da DGS1, veio estabelecer os princípios que devem ser atendidos quando se faz a verificação dos medicamentos que o doente está a tomar, um procedimento que deve ser efetuado com uma periodicidade regular. Este ato é de suma importância, e deve ser realizado com o cuidado e a profundidade necessários, pois só assim podemos descobrir interações com produtos considerados “naturais”, como “chá de hipericão” (Hypericum perforatum), usado como antidepressivo, mas que é um forte indutor do Citocromo P450 e apresenta interacções farmacológicas com muitos outros fármacos, ou o chá verde (Camelia sinensis), de uso difundido, que funciona como inibidor desse citocromo.2

O médico deve ter o cuidado de avaliar, discutir e organizar por escrito e esquematicamente toda a medicação, incluindo suplementos, em conjunto com o doente, tarefa que requer tempo e esforço, bem como boa capacidade de comunicação e confiança mútua. Não nos devemos restringir à informação fornecida pelo sistema informático, mas questionar o doente sobre medicamentos e formulações aconselhadas em outros locais, que muitas vezes ficam escondidas ou esquecidas. Podemos optar por dedicar uma consulta apenas a este assunto, pedindo ao doente para trazer toda a medicação que faz, reforçando que deve incluir inaladores (muitas vezes não considerados pelo doente como verdadeiros medicamentos), chás e outros produtos de envanária, medicamentos adquiridos sem receita médica e medicamentos de venda livre (OTC- “Over the counter”). A educação do doente deve ser um foco fundamental de trabalho: o doente deve ser informado da razão por que lhe foi prescrito cada fármaco, e trazer sempre consigo uma listagem atualizada da medicação. A informação pode ser recolhida de forma padronizada mediante o uso de um formulário próprio, adotado por alguns hospitais e Unidades Familiares, onde devem também constar outros dados do doente, como alergias, comorbilidades e motivo do internamento, e deve estar registada e ser de fácil acesso para outros médicos, pelo que deve constar do processo clínico do doente.

O cumprimento destes objectivos assenta numa comunicação eficaz entre médico e doente, baseada não apenas na comunicação verbal, mas também numa linguagem não verbal, que tem uma relevância fulcral na transmissão da informação. Nesta conjuntura que atravessamos, a teleconsulta tomou uma importância muito marcada (por telefone, por videochamada ou outros meios de comunicação), e todos constatamos como se tornou mais difícil a “leitura” de mensagens subliminares e a criação de empatia e de confiança com o doente, para as quais a interação direta e presencial se torna fundamental. Devemos aproveitar todos os momentos de eventual interação presencial com o doente para tentar aferir a informação recolhida.

A reconciliação da medicação é um processo multidisciplinar e centrado no doente. É uma preocupação que deve envolver todos os profissionais de saúde que lidam com o doente (médicos, enfermeiros, farmacêuticos hospitalares e comunitários), em colaboração com o próprio doente e, se necessário, os seus familiares, para evitar que, segundo a “teoria do queijo suíço”3, o doente atravesse as falhas dos diversos níveis de controlo, e o erro se manifeste. A implementação desta norma deverá incluir a definição clara dos papéis e responsabilidades dos profissionais, a promoção de formação e atualização dos profissionais e a monitorização do processo de reconciliação da medicação. É fundamental ainda intensificar a literacia em saúde do doente, co-responsabilizando-o a manter actualizada a informação sobre a sua medicação. Assim, devemos implementar e intensificar a Reconciliação da Medicação, o que vai exigir um esforço acrescido na consulta à distância, contribuindo para a minimização do erro e para ganhos em saúde.

 

Referências:

  1. Norma 018/2016 da Direção Geral de Saúde. Reconciliação da medicação.
  2. Ana Carolina da Silva AC (2013). Uma actualização sobre a influência das plantas medicinais em tratamentos de quimioterapia. Dissertação do Mestrado em Farmacologia Aplicada, Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra
  3. James Reason J. (1990). Human error: models and management. West J Med. 2000 Jun; 172(6): 393–396. doi: 10.1136/ewjm.172.6.393