Autor: José M D Poças, Diretor do Serviço de Doenças Infeciosas do CHS
“Sempre considerei as ações dos homens como as melhores intérpretes dos seus pensamentos”, (John Locke, 1632-1704, filósofo e médico inglês)
“Uma verdade sem interesse pode ser eclipsada por uma mentira emocionante”, (Aldous Huxley, 1894-1963, escritor inglês)
“Nem todos os futuros são para desejar, porque há muitos futuros para temer”, (Padre António Vieira, 1608-1697, sacerdote e pensador português)
Costuma ouvir dizer-se que a História se repete, o que, algumas vezes, assim é, de facto. Os exemplos, ao longo dos tempos, são de natureza diversa, mas cabe aqui recordar o episódio ocorrido após a denominada Revolução de Outubro, quando reinava a incerteza de quem viria a ser o sucessor de Lenine, após este ter tido um AVC, do qual sobreviveu ainda durante alguns anos, mas com sequelas fortemente limitativas e, logo, incompatíveis com a liderança politica do seu país, então imerso numa enorme convulsão social. Dos dois putativos candidatos, José Estaline e Leon Trotsky, acabou por ser o primeiro a tomar as rédeas do poder, o que obrigou ao consequente exílio forçado do segundo pouco tempo depois, primeiramente na Turquia e, alguns anos após, no México. Neste último país, onde foi compagnon de route do celebérrimo casal de artistas plásticos, Diego Rivera e Frida Kahlo, acabou por ser assassinado por intermédio de brutais golpes de picareta desferidos no seu crânio, perpetrados por um agente secreto a soldo do alegado mandante, nem mais, nem menos, do que o seu eterno rival político na liderança do partido que então governava a Rússia, pois tal era considerado pelo establishment reinante, como uma condição básica para se exterminar definitivamente a oposição interna que ameaçava a estabilidade política necessária para fazerem face, com êxito, ao enorme desafio de enfrentar a esperada invasão militar da besta nazi, pois a II Guerra Mundial tinha começado no teatro europeu. Napoleão já fizera o mesmo no início do sec. XIX e fora (também) derrotado. Segundo alguns autores consagrados, com base em documentos escritos posteriormente desclassificados, teria sido da vontade de Lenine que tivesse sido antes Trotsky, e não Estaline, a tomar o seu lugar de líder do processo revolucionário, mas as intrigas palacianas e a eterna sede insaciável pelo poder, assaz comuns em circunstâncias históricas semelhantes em muitos países, determinaram que o rumo dos acontecimentos fosse bem outro. A atitude de se tentar reescrever a história, alterando os factos, foi levada, neste caso, ao extremo, pois só muitos anos depois foi possível provar a falsificação levada meticulosamente a cabo e que se centrou em vários documentos oficiais essenciais, de entre os quais muitos registos fotográficos, onde a cara do suposto dileto sucessor foi literalmente apagada da entourage que ladeava, nos áureos tempos de luta, o seu grande timoneiro.
Se, neste contexto histórico, prevaleceu a coragem (e a desfaçatez) de literalmente branquear as provas que poderiam ter dado aso a que o curso dos acontecimentos tivesse sido outro e a sua leitura crítica realizada pelos cidadãos pudesse ser bem diversa, assistimos hoje, com preocupante frequência, a uma encapotada atitude de não se querer assumir as consequências daquilo que se diz estar a planear fazer, tentando que fique apenas registado para a posteridade a mera intensão de agir, mas nunca a responsabilização pelo ónus das suas consequências, se acaso, do anunciado rol de intentos, resultar daí alguma consequência prática. Ou seja, que da leitura imediata da fotografia, seja apenas possível reter a nobilíssima carta de intenções, e nada mais, como se esta fosse já a concretização prática de si mesma.
Os exemplos, no nosso país, no que se refere ao rumo atual dos acontecimentos resultantes da implementação das políticas governamentais no setor da saúde são alguns, indo-me apenas referir, neste escrito, por mera questão de espaço e de oportunidade, ao que diz respeito à iniciativa denominada de “Fast Track Cities” da ONUSIDA. Esta, que vem na sequência de uma outra, conhecida por “90/90/90%” e que mereceu também o apoio incondicional das estruturas ministeriais do nosso país, tem por base o conhecimento epidemiológico, bem como de inúmeros e credíveis estudos de modelação matemática, segundo os quais a transmissão da infeção VIH está, ao nível mundial, concentrada sobretudo nas cidades, e de que a grande maioria das novas infeções são contraídas a partir de pessoas que não sabem estar infetadas no seio de cada comunidade. Para além disso, a OMS tem a decorrer uma outra campanha, intitulada “0 = 0”, que pretende passar a mensagem de que se pode assumir com razoável convicção a “certeza” que alguém que passe a ter carga viral suprimida, deixa depois de transmitir sexualmente a infeção ao seu parceiro (e talvez, mesmo, ao próprio recém-nascido, através do aleitamento materno).
Como consequência, se se implementasse uma estratégia de realização disseminada do teste serológico que permitisse a identificação da quase totalidade dos infetados e se os trouxéssemos até às estruturas competentes de saúde capazes de assegurar o seu adequado tratamento e monitorização clínicolaboratorial, logo a partir dessa altura e durante toda a vida de cada um dos portadores do VIH, seria então possível transformar a pandemia numa endemia residual e sem a esmagadora expressão epidemiológica planetária que hoje possui. Mais, se esta estratégia fosse alargada às hepatites víricas, sobretudo à “C”, que hoje tem uma taxa de cura superior a 95%, mercê da extrema eficácia dos novos antivíricos que passamos a utilizar recentemente, poderíamos almejar então, não só acabar com outra terrível pandemia, mas ainda de antever a sua quase extinção. Não serão suficientemente nobres estes desígnios civilizacionais, capazes de justificarem a reunião de todos os que, de forma genuína, com eles quiserem colaborar, perguntar-se-á? Certamente que sim, diria eu, e certamente todos os cidadãos de todo o mundo. Então, quais serão os obstáculos concretos que se colocam neste espinhoso caminho na realidade atual portuguesa?… Respondo!
A capacidade dos serviços especializados para acolherem um súbito e significativo aumento do número de doentes, não é fácil de gerir ou de garantir no contexto hospitalar vigente, pois a carga de trabalho exigida sofreu recentemente um grande incremento, dado terem passado a ser responsáveis, para além de tudo o que já faziam anteriormente, pelas consultas de PrEP (Profilaxia Pré-Exposição para o VIH), pela deslocação aos estabelecimentos prisionais para atendimento clínico a esta difícil população de doentes, pelas atividades das Comissões de Controlo de Infeção e pelos PAPA (Programas de Apoio à Prescrição de Antibióticos) dos hospitais, num contexto de bem conhecidos constrangimentos à renovação dos quadros de pessoal, sabendo-se que os mesmos estão generalizadamente envelhecidos no setor médico.
Por sua vez, as administrações hospitalares encaram estas políticas de saúde públicas com notórias reservas, porque para elas, cada doente que entra através deste tipo de programas, o défice financeiro institucional aumenta, o que posteriormente lhes é “atirado à cara” aquando da monitorização cíclica da execução dos Contratos-Programa anuais, ou aquando da sua negociação inicial com os organismos responsáveis da tutela (ARSs e ACSS). Pior. Não apreciam “logicamente” serem confrontados com os gráficos que alegadamente traduzem esse mesmo défice, e muito menos dos benchmarkings que supostamente deveriam comparar, com equidade, o desempenho dos diferentes hospitais entre si, mas que não traduzem a realidade efetiva dos factos, pois por mais que se lhes seja dito, uns transmitem o gasto com o dispêndio em medicamentos sem contabilizar os descontos que a IF faz no final do ano, ao passo que outros o fazem desde o início, e assim conseguem ficar bem na “fotografia” e aos olhos “cegos” e aos ouvidos “surdos” da hierarquia. A realidade é que as verbas dos atuais programas verticais de financiamento não chegam para pagar os custos dos exames auxiliares de diagnóstico necessários ao seu seguimento clínico adequado, e no que se refere à infeção por VIH, não chegam também para pagar o que se despende com todas as terapêuticas que os muitos milhares de doentes não naive, muitas vezes por intolerância, toxicidade ou resistências aos fármacos de primeira linha, têm de fazer.
Neste cenário, cheio de incertezas e hesitações, perguntar-se-á como é que se pretende efetivamente implementar as estratégias que permitam uma adesão consequente à aludida iniciativa da ONUSIDA? Será que se persiste em ignorar que milhares de testes rápidos colocados nos Cuidados de Saúde Primários foram até agora desperdiçados, porque passaram de prazo, dado que, entre outras razões, os CSs foram transformadas literalmente em linhas de montagem de ver doentes, os seus profissionais estão com elevadíssimos níveis de burnout e não têm literalmente, nem tempo, nem energia física ou mental, para despenderem o pouquíssimo que lhes resta com este tipo de iniciativas, pois as suas prioridades são certamente outras, neste dificílimo e anacrónico contexto? Porque é se finge ignorar que há a possibilidade de acolher iniciativas de índole mecenática que permitiriam dar um sério contributo para a concretização destes desígnios? Só porque têm origem na IF, pergunto? E se a iniciativa partisse de um qualquer magnata com negócios na indústria de material informático (ex: Bill Gates) ou de um antigo Presidente da República (ex: Bill Clinton) seria diferente? Não seremos NÓS capazes de separar os interesses de quem se prontifica a fornecer os testes, mesmo sabendo que daí irá resultar obviamente um maior consumo de fármacos, através de um protocolo entre as partes envolvidas que assegurasse a independência das opções terapêuticas a empreender posteriormente? E essa realidade não seria exatamente a mesma se o mecenas nada tivesse a ver com a IF? Ou preferirá antes o MS ficar com a responsabilidade direta dessa (considerável) despesa? Porque é que, pelo menos um hospital português sob administração PPP, decidiu (e muito bem!) não questionar a bondade desta iniciativa e já a pôs em execução, e os que têm regime jurídico EPE, não se sentem confortáveis em dar esse passo?
Na segunda semana de outubro do corrente ano, Portugal irá acolher uma reunião internacional de âmbito Europeu acerca desta problemática e irá decorrer uma cerimónia na AR em que várias edilidades foram instadas a ir assinar um protocolo de compromisso com a iniciativa da ONUSIDA, com a pompa que é habitual em circunstâncias semelhantes. Será apenas para a fotografia, é pertinente questionar? Se não formos efetivamente consequentes com esta nobre causa neste preciso momento histórico e, tendo a possibilidade prática de tomar nas nossas mãos (e consciências) a aplicação das estratégias que efetivamente temos ao nosso alcance e das quais conhecemos os enormes impactos favoráveis, ainda que com o recurso à ajuda de quem se quiser juntar com a necessária transparência de intenções, porque a magnitude dos ganhos para toda a Humanidade são disso justificação suficiente, como é que queremos ser vistos pelos vindouros na fotografia que os tabloides e os órgãos oficiais se encarregarão de difundir com meteórica celeridade? Da mesma forma que aconteceu na grande pátria dos sovietes? Espero, sinceramente, que não!!!