Perante a suspeita da prática do crime de usurpação de funções (previsto e punível pelo Art.º 358.º do Código Penal) e do crime de ofensas à integridade física por negligência, o Colégio de Dermatovenerologia foi questionado se o ato praticado sob a designação “LIPO ENZIMÁTICA” deve, ou não, ser considerado uma prática terapêutica, necessitando por isso (em caso afirmativo) de prescrição/indicação e de supervisão médicas, o Colégio emitiu um parecer que passamos a divulgar:
Cumpre informar, em resposta ao quesito de V. Excelência ao Colégio de Dermatovenereologia da Ordem dos Médicos, no âmbito do processo-crime …:
a) Se o ato praticado e denunciado nos autos “LIPO ENZIMÁTICA” (do qual resultaram lesões físicas na denunciante), deve, ou não, ser considerado uma prática terapêutica, necessitando por isso (em caso afirmativo) de prescrição/indicação e de supervisão médicas?
Os procedimentos divulgados e comercializados como “Lipo Enzimática” constituem, na quase totalidade dos casos, procedimentos de mesoterapia, isto é, de procedimentos em que é administrada uma substância, por via injectável, na espessura da pele, para obter determinado resultado. No caso das “Lipos Enzimáticas” podem ser administrados vários produtos, com composições variadas e, nos casos menos recomendáveis, absolutamente desconhecidas, com o objectivo de destruição dos adipócitos, vulgo células de gordura, a fim de obter uma redução do tecido adiposo (gordura) em determinada localização. Este efeito pode ser obtido de várias formas, uma das mais frequentes das quais é o efeito detergente que leva à destruição da membrana celular destas células, provocando uma reacção inflamatória local.
Desta breve exposição resulta que:
i) a administração do produto deve ser feito com técnica asséptica;
ii) deve ser administrada com uma técnica precisa e correcta, para que o produto seja administrado na camada da pele correcta, e não noutra, onde pode conduzir a efeitos adversos graves;
iii) devem ser utilizados produtos de nível farmacêutico, estéreis, com composição adequada ao fim proposto e ao doente concreto, e devidamente certificado para a utilização a que se destina;
iv) deve ser feito um diagnóstico preciso do problema a tratar, visto que a gordura localizada, como é vulgarmente conhecida, pode ser devida a várias causas, onde se incluem neoplasias benignas (lipomas), malignas (lipossarcomas) e reacções adversas medicamentosas (lipodistrofias);
v) deve ser utilizada após colheita de história clínica detalhada, com identificação de doenças relevantes, medicação actual, história de alergias medicamentosas, e realização de exame objectivo rigoroso, para identificar os casos em que este tipo de terapêutica está contra-indicada.
Por força de razão, e das disposições legais, fica claro que apenas um médico poderá diagnosticar a causa da alteração corporal que o utente visa corrigir, bem como apreciar, de forma válida e rigorosa, o perfil de comorbilidades do doente, e eventuais diagnósticos que contra-indiquem o procedimento, e no caso de se optar pela sua realização, de escolher a formulação mais apropriada para obter os resultados desejados, com a minimização dos riscos do procedimento.
Portanto, é indiscutível, a nosso ver, que os procedimentos de mesoterapia, onde se inclui a “Lipo Enzimática”, só podem ser realizados sob supervisão médica estrita, após avaliação por Médico com autonomia para o exercício das funções que lhe são inerentes, reconhecida pela Ordem dos Médicos, em território nacional. Contudo, não é obrigatório que a administração do produto seja feita por Médico, sendo atendível que a mesma seja realizada por outro profissional de saúde, nomeadamente Enfermeiro, com os conhecimentos necessários à administração terapêutica, no exercício das funções que lhe são inerentes, e para os quais está capacitado pela Ordem Profissional correspondente, desde que por indicação (e sob supervisão) médica.
De forma a clarificar este parecer, cumpre-me apresentar alguns dos riscos potenciais a V. Exa. da não observância do disposto:
– Infecção do local, por bactérias, fungos ou micobactérias, com risco de vida e de deformação permanente e irreversível.
– Reacção alérgica, com potencial fatal.
– Hemorragias e hematomas.
– Hiperpigmentação (pele mais escura).
– Destruição anómala do tecido adiposo, com paniculite e lipodistrofia sequelar permanente (muitas vezes expressa como “covas” na pele).
– Risco de necrose (morte) da pele, na área tratada – este risco é particularmente alto quando se realizam estes procedimentos nas pernas.
– Tireotoxicose (hipertiroidismo), nas administrações com hormonas tiroideias.
– Agravamento de outras doenças de base, como a psoríase (fenómeno de Koebner).
– Reacções adversas sistémicas graves, particularmente nas formulações impuras e sem as devidas certificações.
O parecer ora emitido encontra-se fundamentado no conhecimento científico disponível e na literatura publicada.
Para informações adicionais, poderá ser consultada, entre outras, a seguinte referência:
Tosti, Antonella; Beer, Kenneth; De Padova, Maria Pia (2012). Management of Complications of Cosmetic Procedures || Complications of Mesotherapy. , 10.1007/978-3-642-28415-1(Chapter 9), 77–81. doi:10.1007/978-3-642-28415-1_9
Lisboa, 11 de Abril de 2022