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Princípios do Controlo de Sintomas, um pilar dos Cuidados Paliativos

Autora: Isabel Galriça Neto, Presidente da Competência de Medicina Paliativa da Ordem Médicos; Directora da UCCPaliativos do Hospital Luz-Lisboa; Docente da FML


| Palavras-Chave: cuidados paliativos, controlo sintomático, objetivos de cuidados
| Resumo:
Os Cuidados Paliativos são cuidados de saúde que intervêm no sofrimento das pessoas com doenças graves e em fim de vida. Baseiam-se num rigoroso controlo sintomático, mas também na comunicação adequada, no apoio à família e no trabalho em equipa. O controlo sintomático tem princípios consensualizados mas nem sempre aplicados na prática diária, com consequências danosas para os pacientes. Estes princípios são válidos quer para a prática de ações paliativas básicas, quer para a prática de Cuidados Paliativos a um nível especializado.

Este artigo pretende revisitar essa matéria, tão determinante para a redução do sofrimento das pessoas em fim de vida e para a sua qualidade de vida.

Enquadramento:

De acordo com as definições de referência da OMS (2002) e da CAPC (Center for Advance Palliative Care-USA, 2014) e com o que figura no Plano Estratégico nacional 2017-2018, os Cuidados Paliativos, correspondem a cuidados de saúde ativos que visam reduzir o sofrimento das pessoas com doenças graves – que ameaçam a vida – incuráveis (mas não necessariamente) e progressivas, através de uma abordagem global do mesmo nas suas múltiplas vertentes, efetuada por uma equipa multidisciplinar. Incluem obrigatoriamente o tratamento dos sintomas físicos, mas vão para além dele, estendendo-se ao apoio à família e ao período do luto. Convirá sublinhar que a intervenção dos Cuidados Paliativos se faz para responder a um conjunto de necessidades determinadas pelo sofrimento na doença avançada e pelas múltiplas perdas que esta determina, e não com base num prognóstico ou num diagnóstico.

Este tipo de cuidados de saúde é dirigido a um grupo numeroso de doentes de todas as idades, com patologia oncológica e não oncológica (insuficiências de órgão, demências, doenças neuromusculares, doenças congénitas), e vai muito para além do doente em fim de vida (últimos 12 meses de vida), do doente terminal (por definição, o doente com 3 a 6 meses de vida) ou do doente agónico ou moribundo (doente com horas ou dias de vida). Se a intervenção dos Cuidados Paliativos for tardia, deixaremos de fora muitos milhares de doentes e famílias que poderiam ser ajudados em devido tempo e que assim sofrem desnecessariamente.

O controlo sintomático é um dos pilares da intervenção dos Cuidados Paliativos. Estes não se esgotam de forma alguma nisso, o mesmo é dizer, fazer Cuidados Paliativos não pode deixar de integrar o controlo impecável dos sintomas mas inclui obrigatoriamente a correta abordagem das outras dimensões que causam sofrimento no paciente e sua família. A investigação evidencia que os doentes valorizam de forma inequívoca esta dimensão das intervenções clínicas.

Convirá ter presente que um inadequado controlo sintomático, para além de agravar claramente o sofrimento, pode ter um efeito adverso na progressão da doença. Ainda hoje se tem uma certa perspetiva de que o controlo sintomático é uma área menor na intervenção clínica, relegada para segundo plano, também porque aquilo que erradamente se sobrevaloriza é apenas a obtenção da cura. Continuamos hoje a ter doentes que curamos e outros que não curamos, e este segundo grupo não pode ser relegado para segundo plano, até porque o fim da Medicina é acompanhar os doentes, quer eles se curem ou não. Da aplicação dos princípios éticos fundamentais da Medicina e ciências da saúde – “primum non nocere” – e da necessidade de gerar benefício nas pessoas com doença irreversível, decorre a necessidade de redefinir objetivos de cuidados e de se adequar o esforço terapêutico em função dos mesmos. Esta adequação não deve ser vista como uma desistência, um “baixar de braços”, mas antes como um investimento no conforto e a adequada resposta às necessidades que este numeroso grupo de doentes apresenta.

O que não deve acontecer é prolongar a vida à custa de mais sofrimento ou desconforto. Assim sendo, e não sendo a população dos doentes com necessidade de Cuidados Paliativos homogénea e nela se distinguindo várias tipologias – o certo é que estamos obrigados, também pelo nosso Código Deontológico, a não praticar obstinação terapêutica. Quer dizer, os médicos estão obrigados nesta população de pessoas em fim de vida a fazer tudo o que é devido, mas não tudo o que podem: não devem enveredar pela futilidade terapêutica ou diagnóstica, que são consideradas má prática.

É neste enquadramento ético-clínico que se deve avançar para o tratamento dos sintomas, tendo subjacente o correto modelo de decisão, ponderando sempre as intervenções em função dos objetivos de cuidados, dos valores do doente e dos benefícios gerados. Não serão os tratamentos que serão em si mesmos agressivos ou desproporcionados, eles sê-lo-ão sim, mas no contexto de cada doente, da fase da trajetória da doença e do que representam ou não de benefício para um doente. De sublinhar que nenhum médico está obrigado a sugerir a um doente uma medida que entende que não lhe trará benefício.

A valorização da carga sintomática

Do que hoje se conhece através de evidência consistente, a carga sintomática (conjunto de sintomas observados num dado doente) varia nos doentes oncológicos e não oncológicos, mas há alguns sintomas em comum. Se no cancro a dor pode ser muito prevalente, já na DPOC e na insuficiência cardíaca a dispneia é o mais frequente. Importa ressaltar que, globalmente, a dor não é de todo o sintoma mais prevalente na população de doentes em fim de vida – ainda que possa ser o mais estudado -, e esse lugar é detido pela astenia/fadiga. Dor e fadiga assumem-se como altamente prevalentes e presentes em praticamente todas as patologias avançadas estudadas. Outros sintomas como a dispneia, as náuseas e vómitos, a anorexia, o delirium, a insónia, a obstipação ou a diarreia, são relevantes para este grupo de doentes e necessitam de tratamento adequado.

De qualquer forma, a valorização e hierarquização dos sintomas é sempre individual, muda de doente para doente mesmo dentro do mesmo grupo de patologia base. Queremos com isto alertar os clínicos que há muito mais a tratar para além da dor, e os outros sintomas não podem ser negligenciados, e também que se exige uma resposta terapêutica rápida, em contraste com uma atitude incorreta que tolera e banaliza a presença de sintomas nestes doentes.

Cada doente poderá apresentar mais de 5-6 sintomas e isso está associado a maior complexidade clínica, que exige resposta adequada e muito rigor na intervenção a tomar. Há sintomas que, por si só, também conferem maior complexidade à situação global: é o caso da hemorragia, da depressão, dos sintomas resultantes de quadros de oclusão e se associados (dor, náusea ou vómito, obstipação), da compressão medular ou da ameaça de asfixia.

 

Princípios Gerais do Controlo sintomático

Tratar adequadamente os sintomas inclui a consideração de diferentes aspetos e alguns princípios gerais, que passaremos a elencar.

O correto tratamento de um sintoma desde logo tem por base a sua correta avaliação e valorização pela equipa interdisciplinar, numa abordagem centrada no paciente. A avaliação do sintoma é o passo crucial para o bom tratamento e faz-se com base numa eventual check-list em que se caracterizam, entre outros fatores, a intensidade, a localização, os fatores de agravamento, a medicação em curso (com as respetivas doses) e o impacto nas atividades de vida diária.

Figura 1 – Resumo dos Princípios do controlo sintomático

·         Avaliar corretamente os sintomas (“avaliar, avaliar, avaliar”)

·         Monitorizar regularmente os sintomas, de preferência com recurso a escalas

·         Delinear um plano terapêutico misto (com medidas farmacológicas e não farmacológicas)

·         Incentivar uma atitude preventiva, construindo plano terapêutico com medicação regular e pautada, e deixando também prescrição em sos

·         Adequar a via de administração, privilegiando a via menos invasiva

·         Estabelecer planos de cuidados com o doente e a família

·         Estar atento aos detalhes do plano de tratamento

A valorização baseia-se sempre que possível numa auto-avaliação feita pelo doente, através do recurso a escalas construídas para esse efeito. Uma das mais antigas é a M.D. Anderson Symptom Inventory (MDASI). Aquela que é hoje consensualmente mais utilizada é a Edmonton Symptom Assessment System (ESAS) (figura 2) e foi revista mais recentemente em 2010, tendo a sua versão mais recente na ESAS-r, que contém variante para ambulatório e internamento. A sua aplicação pode fazer-se com diferente periodicidade (diária, de dois em dois ou 3 em 3 dias), mas pressupõe a realização de um registo regular, com vista a aferir quer da carga sintomática, quer do impacto e eficácia das medidas terapêuticas aplicadas no bem-estar do paciente.

Figura 2 – Exemplo do preenchimento de 1 ESAS em internamento:

No diário clínico – médico e de enfermagem – deste grupo de doentes deve obrigatoriamente constar o registo da presença ou ausência dos sintomas, evidenciando-se se o doente está ou não confortável. Esse objectivo pode ser avaliado pela magnitude do controlo sintomático, pelo bem-estar psicológico e pela qualidade do sono, as chamadas constantes de conforto.

No caso dos doentes não colaborantes, impõe-se uma avaliação mais minuciosa por parte dos profissionais de saúde. É muito importante reter que a valorização de sintomas feita por familiares pode distorcer a realidade, já que estes projetam, de alguma forma, o seu próprio sofrimento e incrementam o peso que os sintomas têm para o doente.

Esta valorização dos sintomas deve conduzir inevitavelmente à aplicação de medidas terapêuticas, utilizando uma estratégia terapêutica mista, em que se incluem medidas farmacológicas e não farmacológicas.

No âmbito, das medidas farmacológicas vale a pena sublinhar que elas não se esgotam de forma alguma na utilização de opioides, muito menos no recurso á morfina. Os diferentes fármacos dirigem-se aos principias sintomas que os doentes, oncológicos e não oncológicos, apresentam em fim de vida. Nesta medida, convém reter aquilo que a evidência nos apresenta: a carga sintomática dos diferentes grupos de doentes paliativos é elevada, com uma média de 6 sintomas, em que se destacam a astenia, a caquexia, a dor e a dispneia, o delirium e a agitação psicomotora. Daqui resulta que os grupos terapêuticos mais frequentemente utilizados vão desde os opioides, aos neurolépticos e benzodiazepinas, os antieméticos e os corticoides. Os profissionais de Cuidados Paliativos devem deter conhecimentos precisos sobre os múltiplos fármacos a que recorrem e ter a possibilidade de se aconselhar com um farmacêutico qualificado que possa colaborar na supervisão de eventuais interações medicamentosas e na otimização dos regimes terapêuticos.

Uma vez avaliado um doente e a respetiva carga sintomática, é urgente que se defina um plano de cuidados, em que o plano terapêutico é parte imprescindível. O que se pretende é que o controlo sintomático efetivo possa acontecer rapidamente (nas primeiras 48h-72h), sob pena do doente se manter desconfortável, não confiar na equipa que o cuida e de se hipotecar a relação terapêutica. O doente deve, sempre que isso seja viável, ser envolvido no processo de tomada de decisões, num modelo de relação assente na aliança terapêutica, em que o médico e a restante equipa ajudam o doente a ajudar-se. Há sempre que considerar os valores do doente, assumir os vários cenários clínicos e as consequências das opções em causa, não esquecendo que ao doente em situação avançada e irreversível podem ter que se suspender ou não iniciar certas medidas e ele poderá mesmo recusar algumas, quando devidamente esclarecido das suas consequências.

Exige-se uma reavaliação regular dos sintomas e do seu tratamento, e um regime terapêutico bem concebido implica medicação que é deixada de forma pautada – a horas certas – dirigida aos principais sintomas. Uma atitude preventiva no tratamento dos sintomas antecipa as possíveis crises sintomáticas e objetiva-se na indicação de medicação em SOS para cada um deles e a indicação do número de vezes que poderão ser utilizados. Será em função do maior ou menor recurso aos sos’s e ao aparecimento de novos sintomas que se procederá a uma revisão diária do regime terapêutico, revisão essa que pode ter que ser mais apertada – da manhã para a tarde, por exemplo – nomeadamente, num doente instável e em internamento. Na prática, o médico deve sempre ter em conta quantos sos’s realizou o doente nas últimas 24h e isso atestará da qualidade do controlo sintomático e da eventual necessidade de ajustes terapêuticos.

A reavaliação regular do regime terapêutico implica também desprescrever determinados fármacos que, em função do prognóstico estimado e do objetivo de conforto, deixaram de se revelar úteis para o doente, como por exemplo o caso das estatinas nos doentes terminais, ou das heparinas de baixo peso molecular nas últimas semanas/dias de vida.

Para se enveredar por um regime farmacológico haverá que selecionar a via de administração mais adequada para o tratamento. A via prioritária é a via oral, que assegura a eficácia terapêutica de um regime com tomas regulares, é a menos invasiva e garante maior autonomia para o doente. No entanto, no caso de o doente não ter via oral disponível, a via alternativa para doentes frágeis e em fim de vida será desejavelmente a via subcutânea, ou em alternativa a esta, no caso do doente evidenciar má absorção, a via intra-venosa. A aplicação da via transdérmica faz-se em doentes com doses estabilizadas e não como medida de primeira linha e em doentes instáveis.

O que se pretende é assegurar eficácia terapêutica com a menor invasibilidade e maior conforto possíveis. A via subcutânea está cada vez mais difundida, garante eficácia terapêutica e, ainda que não seja de utilização universal, está acessível para inúmeros fármacos e também soros. A administração dos fármacos pode fazer-se por bólus ou eventualmente, numa opção não de primeira linha e para uma minoria de doentes, em perfusão contínua. A regra básica é que se proceda a uma desejável titulação de fármacos e só no caso de as medidas de primeira linha e administração em bólus não se revelarem eficazes, passaremos a uma administração contínua. Uma perfusão contínua garante, à partida, maior estabilidade nas doses em circulação mas nunca será uma intervenção de primeira linha, carece de monitorização apertada dos sinais de toxicidade e revisões diárias por parte de uma equipa preparada.

Existem inúmeros fármacos passíveis de serem miscíveis e de poderem estar numa mesma perfusão contínua, subcutânea ou intravenosa. Há fármacos que não são miscíveis e que exigem uma perfusão isolada, como é o caso da furosemida. O Palliative Care Formulary é uma ferramenta essencial para garantir uma completa informação sobre a utilização dos medicamentos em Cuidados Paliativos e sobre a segurança na administração dos fármacos, complementada pelo sítio igualmente de referência – palliativedrugs.com.

Em conclusão:

O controlo sintomático detém um papel imprescindível e central na intervenção global no sofrimento das pessoas com doença avançada e incurável. Essa intervenção dos Cuidados Paliativos deve integrar-se num plano mais alargado que se destina às diferentes dimensões afetadas da pessoa doente. Deve fazer-se a correta valorização dos sintomas e estabelecer os objetivos de cuidados adequados, com particular ênfase para a obtenção do conforto. A intervenção a delinear deve conter medidas farmacológicas e não farmacológicas e ser regularmente monitorizada com instrumentos devidamente validados e adaptados a esse fim.

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