A análise da pronúncia da ARS do Alentejo (ARSA) sobre o Relatório da Comissão de Inquérito da Ordem dos Médicos sobre o Lar da FMIVPS de Reguengos de Monsaraz revela que o Presidente do Conselho Diretivo da ARSA, Dr. José Robalo, assume a responsabilidade pelas deficiências encontradas pela Comissão de Inquérito, ao não contestar de forma fundamentada as principais conclusões do Relatório da Auditoria realizada.
Na verdade, não é possível contestar:
•As precárias condições das instalações do Lar;
•A inexistência de condições no Lar para cumprir as orientações básicas da DGS, como o isolamento diferenciado para os idosos infetados ou o distanciamento social para os casos suspeitos;
•Que a definição de circuitos de limpos e sujos foi feita apenas 9 dias após o primeiro caso confirmado;
•Que a falta das referidas condições não permitiu delimitar a transmissão na fase mais crítica;
•Que os recursos humanos foram insuficientes para a prestação de cuidados adequados no Lar com consequências negativas relacionadas com a preparação e administração das terapêuticas habituais;
•Que o processo inicial de rastreio demorou cerca de 3 dias, período de tempo em que os potencialmente infetados conviviam e partilhavam espaços, criando condições para rápida disseminação;
•Que a subordinação da liderança clínica às intervenções superiores administrativas teve como consequência a descoordenação logística de meios, desorganização e consequente prejuízo para os doentes;
•Que a Autoridade de Saúde Pública não visitou o Lar para avaliar localmente estas circunstâncias, e mesmo com o alerta dos profissionais, os responsáveis não agiram atempadamente e em conformidade, mantendo os doentes em circunstâncias penosas, facilitando o crescimento do surto, antes da transferência para o pavilhão;
•Que não nos foi apresentado até à finalização do Relatório qualquer plano de contingência interno da instituição na fase anterior ao surto nem evidência de que os funcionários do Lar tiveram formação nessa matéria;
•Que a decisão de transferir todos os infetados para um “alojamento sanitário” no pavilhão só ocorreu mais de duas semanas depois do início do surto, quando já se contabilizavam 8 mortos e 138 casos ativos, medida que devia ter sido tomada de imediato no início do surto;
•Que mesmo em melhores condições, a falta de coordenação e gestão das autoridades competentes continuou a impedir que os doentes, os profissionais e os voluntários estivessem em ambiente seguro;
•Que o “alojamento sanitário” nunca foi um “hospital de campanha” nem tinha condições para ser considerado um hospital, apesar de os responsáveis pelo pavilhão exigirem a presença de médicos e enfermeiros em permanência nas instalações, assumindo a gravidade clínica da situação e consequente desvio de profissionais de saúde dos seus locais habituais de trabalho, mantendo os doentes num local inapropriado para a realização de cuidados diferenciados.
Nesta medida, o Primeiro-Ministro, ao afirmar que a responsabilidade pelo que aconteceu no Lar da FMIVPS foi dos médicos, errou por ter falado no plural (os médicos). Na verdade, o que o Primeiro-Ministro queria dizer é que a responsabilidade foi do médico, o médico Dr. José Robalo, Presidente do Conselho Diretivo da ARS do Alentejo.
O Dr. José Robalo, violando a lei em vigor, as regras éticas e deontológicas e os direitos humanos, ameaçou com processos disciplinares (como o próprio admitiu publicamente e na pronúncia por ele realizada) os médicos do SNS para que fossem prestar cuidados de saúde em permanência no setor privado (Lar e pavilhão), admitindo que os idosos com a doença COVID-19 necessitavam de vigilância médica permanente (24 horas).
É incompreensível a postura do médico Dr. José Robalo, Presidente da ARS do Alentejo, desconhecendo que, se os doentes com COVID-19 necessitavam de vigilância médica permanente, deveriam então ter sido internados num hospital onde teriam acesso aos necessários cuidados médicos diferenciados e às condições essenciais para poderem ser tratados de acordo com as boas práticas médicas e as normas definidas pela DGS. Um erro grave que pode ter tido consequências irreversíveis na morbilidade e mortalidade dos doentes.
Os médicos, contrariamente ao que foi afirmado pelo Senhor Primeiro-Ministro, não se recusaram ao cumprimento de quaisquer deveres, laborais ou deontológicos, antes os honraram. Os médicos não deixaram de chamar de forma veemente a atenção para a falta de condições do Lar e do Pavilhão e os vários atropelos existentes, defendendo claramente os doentes. Afirmar que os médicos não cumpriram o seu dever de assistência é, pois, calunioso e revela uma clara tentativa de escamotear a realidade dos fatos.
Os médicos exerceram sim o seu dever de denúncia num país em que a coragem para provocar o poder instituído é cada vez mais uma raridade. Não se esqueça Senhor Primeiro-Ministro, que o que está em jogo é a vida e a morte de alguns dos mais carenciados de entre todos.
As ameaças proferidas pelo Dr. José Robalo aos médicos, estenderam-se de forma inaceitável à presidente do Conselho Sub-Regional de Évora, na pronúncia por ele assinada. Esta situação, que configura uma violação clara dos direitos humanos, irá merecer da nossa parte uma resposta clara e inequívoca que não permita que as regras democráticas sejam violadas de forma tão grosseira, com a complacência de alguns órgãos de soberania. A Ordem dos Médicos e os seus dirigentes pautam a sua atuação por uma permanente defesa da saúde, dos doentes e dos direitos constitucionais à saúde e à proteção da doença. Em estrito respeito pelos princípios éticos da profissão, existentes há milhares de anos.
O sucedido em Reguengos de Monsaraz é inaceitável.
Os Lares, como estruturas residenciais para pessoas idosas, portadoras de doenças crónicas e com limites na sua autonomia, estão identificados como locais muito sensíveis às epidemias sazonais. No caso da COVID-19, dada a grave repercussão clínica nos grupos de risco desta pandemia, os utentes dos Lares estão identificados como particularmente vulneráveis e devem ser alvo de proteção especial. E este deve ser um desígnio nacional. Temos todos a obrigação de cuidar melhor de quem contribuiu para construir Portugal, os nossos idosos.
Os médicos construíram o SNS, edificaram as bases do Serviço de Saúde em Portugal, estiveram e estão na linha da frente do combate à pandemia provocada pelo novo coronavírus, e merecem ser respeitados e valorizados pelo Governo de Portugal, tanto mais quando estão a defender a vida dos mais desprotegidos e dos idosos que ajudaram a construir este país.
Mas mais grave é se tudo correr sem que tiremos ilações e mudemos a nossa atitude para corrigir oque não está bem.
A postura de negação e de desresponsabilização, associada à soberba e arrogância, por parte do Dr. José Robalo, é técnica e humanamente inaceitável, preferindo atacar a forma e os autores da auditoria, em detrimento de aproveitar o trabalho e as conclusões para que Reguengos não se repita.
A dimensão da Insensibilidade e da incapacidade em perceber o sucedido, demonstrada pela Sr.ª Ministra do Trabalho, da Solidariedade e Segurança Social, é claramente percebida quando o Sr. Primeiro-ministro sente a necessidade de vir a terreiro em sua defesa.
A dimensão da ausência de qualquer comentário da Sr.ª Ministra da Saúde sobre o tema da dimensão clínica na atividade dos lares é igualmente de realçar.
E a fuga do Sr. Primeiro-ministro relativamente ao sucedido, atacando a classe médica é por demais inaceitável. Os médicos continuarão a tratar os seus doentes como sempre o fizeram, na linha da frente como sempre o fizeram, nos momentos mais difíceis e mais agrestes.
A isso nos obriga o nosso Juramento.
Lisboa, 19 de agosto de 2020
O bastonário da Ordem dos Médicos
O Presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos