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Prescrição racional de semaglutido – Posição do Colégio de Farmacologia Clínica

Prescrição racional de Ozempic® (semaglutido)

Posição do Colégio de Farmacologia Clínica da Ordem dos Médicos

 

O fármaco semaglutido

Semaglutido é um agonista dos recetores do GLP-1 (péptido-1 semelhante ao glucagom). O GLP-1 é uma hormona fisiológica que tem múltiplas ações na regulação do apetite e da glicose. Os efeitos no apetite e na glicose são mediados pelos recetores do GLP-1 no pâncreas e no cérebro. O semaglutido reduz a glicemia de uma forma dependente da glicose, estimulando a secreção da insulina e reduzindo a secreção de glucagom quando a glicemia está elevada. O semaglutido reduz o peso corporal e a massa de gordura corporal através da diminuição da necessidade de aporte de energia, o que envolve uma redução geral do apetite. Além disso, o semaglutido reduz a preferência por alimentos ricos em gordura.

 

O medicamento Ozempic[1]

Ozempic é um medicamento que contem semaglutido na forma farmacêutica de solução injetável em caneta pré-cheia. Estão atualmente comercializadas em Portugal as doses de 0,25mg, 0,5 mg e 1 mg.

Ozempic está indicado no tratamento de adultos com diabetes mellitus tipo 2 insuficientemente controlada, como adjuvante à dieta e exercício.

De acordo com o relatório público da avaliação da comparticipação de Ozempic ao abrigo do Decreto-Lei n.º 97/2015, de 1 de junho, na sua redação atual, a indicação financiada de Ozempic é o tratamento de adultos com diabetes mellitus tipo 2 insuficientemente controlada com Índice de Massa Corporal (IMC) igual ou superior a 35 kg/m2, como adjuvante à dieta e exercício, em adição a outros medicamentos para o tratamento da diabetes, para ser utilizado em 2ª e 3ª linhas terapêuticas.

 

Utilização racional de Ozempic

A eficácia de Ozempic na diabetes mellitus tipo 2 foi avaliado num extenso conjunto de ensaios clínicos. Em particular, num ensaio (estudo SUSTAIN-6)[2] desenhado para avaliar a não inferioridade em termos de segurança cardiovascular de semaglutido (0,5mg ou 1mg uma vez por semana) versus placebo em cerca de 3.300 doentes com diabetes mellitus tipo 2, foi verificada, ao fim de cerca de 2 anos de tratamento, uma redução, em média, de 26% do risco de um resultado clínico composto de morte cardiovascular, enfarte agudo do miocárdio ou acidente vascular cerebral não fatais (razão de riscos: 0.74; Intervalo de confiança de 95%: 0,58 a 0,95; P<0.001 para não inferioridade). Em termos absolutos, a taxa de eventos entre os doentes tratados com semaglutido (0,5mg ou 1mg) e com placebo foi de 6,6% e 8,9%, respetivamente. O benefício neste resultado clínico foi, em termos absolutos, maior no subgrupo de cerca 2.700 doentes com doença cardiovascular estabelecida, doença renal crónica, ou ambas (taxa de eventos entre os doentes tratados com semaglutido e com placebo: 5,4% versus 9,9%).

Em termos de avaliação fármaco-terapêutica e fármaco-económica, o INFARMED – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P, considerou que Ozempic mostrou ser custo-efetivo (versus liraglutido) na sub-população de doentes adultos com diabetes mellitus tipo 2 insuficientemente controlada com IMC igual ou superior a 35 kg/m2, para ser utilizado em 2ª e 3ª linhas terapêuticas.[3] Neste contexto, Ozempic foi apenas comparticipado pelo Estado para esta sub-população de doentes com diabetes mellitus tipo 2, ao abrigo do escalão A (90%)[4].

A racionalidade terapêutica e a prescrição racional de medicamentos incluem, não só a adequação do mecanismo de ação (farmacodinamia) do fármaco ao alvo fisiopatológico no qual se pretende intervir, mas também a existência de provas científicas robustas que documentem a existência de um favorável balanço benefício/risco da intervenção nas populações e no doente individual.

Por esta razão, a prescrição racional de Ozempic inclui também a sua utilização em outras sub-populações de doentes diabéticos para além daquela para a qual está financiado. Este é aliás o posicionamento das principais normas de orientação atuais, quer internacionais[5], quer nacionais[6]. Em particular, a orientação nº 12 de março de 2022 da Comissão Nacional de Farmácia e Terapêutica para a “terapêutica farmacológica da hiperglicémia na diabetes mellitus tipo 2”, considera a utilização preferencial de agonista dos recetores do GLP-1 em associação no caso dos doentes com doença cardiovascular aterotrombótica.

A prescrição de Ozempic para outras determinadas subpopulações de doentes diabéticos não é, assim, irracional do ponto de vista terapêutico, nem é “off-label”, mesmo que a prescrição pelo SNS seja limitada a doentes com IMC ≥ 35 kg/m2, de acordo com avaliação fármaco-económica.

Já a prescrição e utilização de Ozempic para o controlo do peso, incluindo perda de peso e manutenção de peso, em doentes sem diabetes é uma prescrição “off-label” e não racional, que não deve ocorrer. É “off-label”, porque Ozempic não tem essa indicação. É não racional, porque o racional farmacodinâmico não é de todo suficiente para fazer prova da existência de um favorável balanço benefício/risco de Ozempic no controlo do peso em doentes não diabéticos. Tal apenas pode ser avaliado em ensaios clínicos, que ainda não estão disponíveis.

 

O medicamento Wegovy[7]

À semelhança de Ozempic, Wegovy é um medicamento que também contem semaglutido na forma farmacêutica de solução injetável em caneta pré-cheia.

Ao contrário de Ozempic, Wegovy está sujeito a monitorização adicional. Isto irá permitir a rápida identificação de nova informação de segurança, pedindo-se aos profissionais de saúde que notifiquem quaisquer suspeitas de reações adversas.

A data da primeira autorização de introdução no mercado de Wegovy é de 6 de janeiro de 2022, com a indicação, como complemento de uma dieta reduzida em calorias e de um aumento da atividade física, para o controlo do peso, incluindo perda de peso e manutenção de peso, em adultos com obesidade (IMC ≥30 kg/m2) ou com excesso de peso (IMC ≥27 kg/m2) desde que na presença de determinadas comorbilidades relacionadas com o peso (por exemplo, pré-diabetes ou diabetes mellitus tipo 2). A dose de manutenção de Wegovy é de 2,4 mg uma vez por semana.

A eficácia de Wegovy no controlo do peso foi avaliada em quatro ensaios clínicos de fase 3a aleatorizados, com dupla ocultação e controlados com placebo (ensaios STEP 1-4), com uma duração de 68 semanas. No total, foram incluídos cerca de 4.700 doentes nestes ensaios, tendo o tratamento com Wegovy (semaglutido 2,4 mg uma vez por semana) demonstrado estar associado a uma perda de peso superior, clinicamente significativa e sustentada em comparação com placebo em doentes com obesidade (IMC ≥30 kg/m2) ou excesso de peso (IMC ≥27 kg/m2 a <30 kg/m2) e pelo menos uma comorbilidade relacionada com o peso. Entre os doentes tratados com Wegovy nestes quatro ensaios, o peso médio no início variou entre 96,5kg e 106,9kg, e a alteração absoluta do peso variou entre -7,1kg e 16,8kg.

Ao contrário de Ozempic, Wegovy não está comercializado. Naturalmente, em Portugal, Wegovy não foi (ainda) sujeito a nenhuma avaliação fármaco-terapêutica ou fármaco-económica.

 

Utilização de Ozempic para a indicação de Wegovy

Considerando a melhor informação atualmente disponível, Ozempic não deve ser prescrito, nem utilizado, para o controlo do peso em doentes sem diabetes.

Esta posição do Colégio de Farmacologia Clínica da Ordem dos Médicos é independente da existência de quaisquer mecanismos, atuais ou futuros, que visem o controlo da prescrição médica de Ozempic.

Trata-se de uma utilização sem base científica que suporte a existência de um balanço benefício/risco favorável. A dose de semaglutido mais frequentemente utilizada no contexto da diabetes é entre 0,5 e 1mg por semana, enquanto que a dose de manutenção estudada para controlo do peso é de 2,4mg por semana. O benefício documentado nos ensaios de Wegovy não pode ser extrapolado intuitivamente para Ozempic. Existem aspetos de segurança que têm que ser monitorizados e uma utilização menos criteriosa poderá fazer pender o balanço do benefício/risco para o dano, como aconteceu no passado, por exemplo, com a utilização inadequada do medicamento Acomplia (rimonabant) no controlo do peso. Importa ainda salientar que o benefício clínico dos medicamentos dependerá, como sempre, do risco de base do doente individual, que é superior entre os doentes com diabetes mellitus tipo 2.

A prescrição médica é um acto médico, sujeito ao cumprimento do Código Deontológico da Ordem dos Médicos. Na prescrição médica medicamentosa, os princípios éticos centram-se fundamentalmente na proteção da pessoa a quem se destina a prescrição. Contudo, a prescrição médica não deve, nem pode, do ponto de vista ético, esquecer a repercussão na comunidade e na Sociedade como um todo, independentemente das questões de responsabilidade civil.

O Colégio de Farmacologia Clínica da Ordem dos Médicos apela à prescrição e utilização racional de Ozempic, a qual não inclui como destinatários pessoas com excesso de peso ou obesidade sem diabetes.

 

[1] https://www.ema.europa.eu/en/documents/product-information/ozempic-epar-product-information_pt.pdf

[2] https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/nejmoa1607141

[3] https://www.infarmed.pt/documents/15786/1437513/Relat%C3%B3rio+de+avalia%C3%A7%C3%A3o+de+financiamento+p%C3%BAblico+de+Ozempic+%28semaglutido%29+2021/35b93bad-fd79-a3ed-e5d2-f869a2846c2b?version=1.0

[4] Decreto-Lei n.º48-A/2010, de 13 de Maio, alterado pelo Decreto-Lei n.º 106-A/2010, de 1 de Outubro

[5] https://diabetesjournals.org/clinical/article/40/1/10/139035/Standards-of-Medical-Care-in-Diabetes-2022

[6] https://www.infarmed.pt/documents/15786/1816213/Recomenda%C3%A7%C3%B5es+para+a+Terap%C3%AAutica+Farmacol%C3%B3gica+da+Hiperglic%C3%A9mia+na+Diabetes+Mellitus+tipo+2/20d226f0-55d0-4c25-7d29-020adb0642c4

[7] https://www.ema.europa.eu/en/documents/product-information/wegovy-epar-product-information_pt.pdf